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Discurso de posse

DISCURSO DE D. AQUINO CORREIA

SENHORES:

Triste e paradoxal condição é, de quem entra para a imortalidade das academias, depararem-lhe, desde logo, os troféus da morte, no vestíbulo desses olimpos terrestres, onde se não devera respirar senão o perfume das coisas eternas, como as ambrosias, os néctares e os louros.

Assim é também hoje, neste salão azul, cor das atmosferas siderais, em que vejo cintilar na doce atração dos afetos superiores a mais formosa constelação de intelectuais da minha Pátria, lembrando-me o verso sagrado do florentino:

Luce intellettual piena d’amore!

Mas enquanto se me enleva o espírito, na contemplação do suave simbolismo ambiente, eis que se lhe impõe o dever de atentar numa poltrona vazia, sobre a qual pairam, niveladas aos mortais, as sombras de quatro semideuses da Academia. E eu me quedo a refletir, melancolicamente no contraste imenso que aí vai, com a divina legenda a irradiar, lado a lado, neste olímpico cenário, à maneira de via-láctea luminosa: Ad immortalitatem!

Nisto uma voz do além-túmulo, voz de um desses manes protetores desta Cadeira, murmura-me aos ouvidos os célebres carmes, conhecidos desde a infância:

Porque choras, Fileno? Enxuga o pranto,
Que rega o teu semblante, onde a amizade
De seus dedos gravou o eterno toque.

Ah! não queiras cortar minha esperança,
E de dor embeber minha alegria.
Tu cuidas que a mão fria
Da morte, congelando os frouxos membros.
Nos abismos do nada inescrutáveis,
Vai de todo afogar minha existência?
É outro o meu destino, outra a promessa
Do espírito, que em mim vive e me anima.
A horrenda sepultura
Conter não pode a luz brilhante e pura,
Que soberana rege o corpo inerte.

Nem assim, entretanto, se me tranqüiliza a mente, porquanto essa não pode ser a imortalidade, com que acenam as academias, sendo ela, como é, apanágio de todos os espíritos, tanto daqueles, sobre os quais resplandecerá numa auréola, como daqueloutros, que à semelhança de Calipso em sua ilha solitária, sentirão a desgraça da imortalidade: “malheureuse d’être immortelle”.
Lembram-me então as oitavas épicas, em que o poeta dos Lusíadas tão bem define a imortalidade conferida pelos homens. Ouçamo-lo:

As imortalidades que fingia
A antiguidade, que os ilustres ama,
Lá no estelante olimpo, a quem subia
Sobre as asas ínclitas da fama,
Por obras valorosas que fazia,
Pelo trabalho imenso que se chama
Caminho da virtude alto e fragoso,
Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso,
Não eram senão prêmios que reparte,
Por feitos imortais e soberanos,
O mundo com os varões, que esforço e arte
Divinos os fizeram, sendo humanos;
Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Enéas e Quirino, e os dous Tebanos,
Ceres, Palas e Juno com Diana,
Todos foram de fraca carne humana.

Tal é a imortalidade, que, à semelhança da árvore da vida em meio ao paraíso terreal, floresce no mundo, através dos séculos, ao bafejo da aura gloriosa da posteridade. Esta é a que também viça nesta Casa, e à sombra das suas frondes imarcescíveis, como aqueles vates que Virgílio nos pinta sob o arvoredo sempre em flor dos Campos Elíseos, vivem os grandes, que, mortos embora, a Academia sagrou com o selo da sua eleição e da sua glória.

Dentre eles avulta hoje, a figura empolgante daquele, em torno a cuja cadeira deserta, há um ano atrás, aqui se emprazavam os seus confrades, numa expressiva “sessão de saudades”, e à honra de cuja memória, hoje aqui nos achamos novamente reunidos, entre sorrisos e luzes, para o rito solene das apoteoses.

DO BERÇO À REPÚBLICA

Senhores:

O ínclito sócio, para quem hoje aqui se enflora de homenagens o panteão da Academia, parece ter já trazido no próprio nome, a predestinação aos lauréis da imortalidade: Lauro.
Saído embora de humildes origens, fez-se um nome nacional, que passou à história, glorificando o Brasil, e especialmente o céspede feliz, em que se lhe embalou o berço.
Foi este, como sabeis, o simpático Estado, que ainda hoje irradia os esplendores do nome cristão da sua história, engalanado, para sempre, em lírios de virgindade e palmas de martírio: Santa Catarina.
É a poética terra das dunas alvas, sorrindo ao sol das praias, por onde, como um solitário de esmeralda, a formosa ilha, em que floresce a Capital, se engasta ao continente, por entre o colar de pérolas das atlânticas espumas.

É a terra histórica, donde na antemanhã da nacionalidade, partiram os primeiros conquistadores, que devassaram os sertões austrais do meu Estado natal, na derrota fantástica para os sonhos do Eldorado.
Fecundado pelo sangue dos seus primeiros colonos, numa tragédia bárbara e nefanda, o solo catarinense produziu esse povo, em que se diria perdurar a têmpera rija de um dos seus antepassados, o insulano dos Açores, afeito à vida numa terra instável, que vibra em terremotos à flor dos mares infinitos. Daqui, talvez, a tenacidade e coragem dos seus filhos, imortalizada na bravura indômita dos “barrigas-verdes”; daqui talvez, a habilidade dos seus políticos, em meio aos maremotos das paixões humanas; daqui, enfim, a inspiração dos seus homens de letras, em que parece refletirem-se as amplidões marinhas, ora no brilho dos seus íris e das suas ardentias, ora na mortecor melancólica das suas tristezas insondáveis.

Assim foi que de lá saiu Luís Delfino, a derramar pelo mundo afora, como um príncipe oriental, a pedraria faiscante dos seus versos; de lá se ergueu também a musa do “poeta negro”, celebrando em vozes de vulcão, ou “vozes veladas, veludosas vozes” todas as vertigens agoniadas da sua alma; de lá surgiu, enfim, a visão legendária de Anita Garibaldi, que apesar da sua vida bordada de lamentáveis aventuras, bem revelou essas qualidades extraordinárias que fizeram dela a incomparável amazona de dois mundos.

Tal foi também a terra natal de Lauro Severiano Müller.
Filho de agricultores prussianos, nasceu ele a 8 de novembro de 1863, na vila, hoje próspera cidade de Itajaí, à beira do rio homônimo, o seu rio natal, que ele evocaria, mais tarde, nestes acentos de imensa ternura: “rio sagrado, cujas águas vi embevecido, na minha infância, correrem no seu leito natural e belo, e hoje, ausente, revejo correndo no leito, que a saudade lhe criou eterno na memória do meu coração”.
Ali cursou as primeiras letras, partindo aos 16 anos para o Rio, onde deixou o balcão do comércio, em que se iniciara, para freqüentar em Niterói os bancos do Liceu de Humanidades.
Em 1882 matriculava-se na Escola Militar, a célebre Escola, na qual, mais do que a Praia Vermelha, onde era sita, dir-se-ia que vermelhava então, ao sopro de Benjamin Constant, a frágoa juvenil das idéias de liberdade.

Assim foi que ali, aluno, alferes-aluno, engenheiro militar e bacharel em ciências físicas e matemáticas, desabrocharam-se-lhe no cérebro os ideais da Abolição e da República, floração bizarra da democracia em sua alma de teuto-brasileiro.

A alvorada republicana de 15 de novembro de 1889 veio encontrá-lo no seu posto, ao lado da histórica figura eqüestre do Marechal Deodoro, como jovem escudeiro medieval de olhos azuis e cabelos louros, na plena realização dos sonhos de uma nova cavalaria.

A MUSA DA SUA VIDA

Pode-se dizer que data daquele dia, a vida pública de Lauro Müler.
Nela reconhecem todos que a política foi a egéria do seu pensamento, o cerne da sua atividade, o pano de fundo no proscênio de seus triunfos.

Nem todos, porém, acordam num juízo definitivo acerca de seu sistema político.
Para alguns foi ele a “raposa de espada à cinta”, tipo da astúcia envolvente e perigosa, modelo de habilidade pouco escrupulosa no escolher processos para chegar ao fim, uma como encarnação republicana do herói de Maquiavel, o príncipe aperfeiçoado à sombra das liberdades do barrete frígio.
Nada mais justo, ao contrário, pelo que li e aprendi de Lauro Müller, do que alongar da sua memória tão caluniosos conceitos. Bem sei que não é fácil manter uma consciência de vestal, em meio aos lenocínios da política. É possível, pois, tenha ele sabido dissimular para reinar, de acordo com a máxima célebre: qui nescit dissimulare, nescit regnare. Possível é que nem sempre tenha dito toda a verdade, e até mesmo, no uso de um estratagema político, preconizado já por Talleyrand, se tenha servido da palavra para encobrir o pensamento. Quase certo é também, tenha tido muitas vezes que fazer vista grossa aos erros dos amigos, multiplicando-lhes ademais os favores, e fazendo pesar a justiça sobre os adversários. Destes e outros recursos, havidos por inocentes em política, e dos quais não são muitos os que hoje se escandalizam, é bem possível tenha-se ele valido para adaptar-se ao meio.
 
Disso que aí fica, distam ainda muito, como se sabe, os processos do maquiavelismo, que adotando a perfídia e o crime, quando pareçam consultar aos interesses do Estado, arvora em bandeira a famigerada teoria de que o fim justifica os meios, e não hesita em sacrificar-lhe os mais legítimos e sagrados princípios de consciência humana, uma vez que se oponham na prática, à execução do plano político.

Lauro Müller, ao invés, foi um semeador de princípios. Basta ler o seu belo discurso, hoje conhecido justamente pelo título: Ideais Republicanos. Dele extraio a esmo e vos ofereço aqui estas sentenças, em que bem se reflete a sua escola política:

“A subordinação aos deveres cívicos, diz ele, é o maior título de merecimento para o cidadão de uma pátria livre.” “No regime, que adotamos, o governo é o exercício de uma delegação temporária. A essência dessa delegação está no voto. Fraudá-lo deveria ser o maior dos crimes políticos. Mas não é, e antes, constitui, se não a glória de alguns, ao menos a razão da existência política de outros.” “É a intolerância que nos desgoverna, ou venha ela do exagero partidário, ou nasça da ambição de conservar ou adquirir o mando. É dela que nascem os governos prepotentes e as oposições facciosas: dois extremos que se confundem na obra comum de destruição das liberdades políticas.” “Só é salutar o progresso que brota do desenvolvimento da ordem. Para que exista, é mister que haja justiça, não a que se decreta, mas a que se observa.”

E alhures, no seu discurso de recepção nesta Casa, deixou ainda esta sentença moralizadora:
“Nem noutra realidade assenta a grandeza de um homem de Estado, senão na fortaleza de ânimo para afastar de si mesmo as suas e as alheias paixões pessoais, desbravar o caminho de todos os perturbadores, para identificar-se com as aspirações e nobres ambições da coletividade.”
E melhor ainda, na conferência realizada, a 15 de novembro de 1921, em sessão solene da Liga da Defesa Nacional:

“Para servi-lo (o regime republicano) os seus homens precisam de ter ambições, não de subir às posições elevadas, mas de elevar-se no conceito de si próprios e na estima dos seus concidadãos; não na grandeza material, que é a ambição dos instintos inferiores, mas no aperfeiçoamento de sua vida moral, que é a suprema força dos moços e o supremo consolo dos velhos.”
Firmado nestes princípios, Lauro Müller, venceu na política, pela vivacidade e finura do seu espírito, pelo conhecimento que tinha dos homens e das coisas, pelos amavios da sua palavra, pela sua elegância na luta, o que fez Assis Chateaubriand compará-lo a um jogador de florete; mas sobretudo, pela ciência profunda e rara, se não única, dos problemas nacionais e da nossa evolução política, estudada por ele, não com o olho da crônica, que, como ele próprio diz, “vê as datas na sua expressão material de medida do tempo”, mas à luz da história, que as considera “na alma dos acontecimentos, de que são elas a síntese culminante”.

“FAZER ENGENHARIA”

Senhores:

Tão modestos foram os inícios da vida terrena de Lauro Müller, quão brilhantes os da sua vida pública. Surgiu ele na parada triunfal do primeiro 15 de novembro, para ir logo em seguida, aos sós 26 anos de idade, chefiar o governo provisório da sua província natal. E “o menino tirou distinção”. Nestes termos, ao menos, dizem que se referiu Deodoro à administração do precoce estadista.
Nem desceu mais dessas culminâncias, senão para se bater na planura como soldado, pela defesa e consolidação do regime. Da Assembléia Constituinte ao Congresso Federal, como deputado e senador, do governo constitucional do seu Estado aos Ministérios da República, a sua carreira política se manteve daí por diante, e sempre, nessa cumeada, onde, entretanto, dois cimos se destacam em relevo, num diagrama expressivo. São eles os dois períodos da sua atuação como ministro de Estado: o da Viação e o das Relações Exteriores.

Abre-se-lhe o primeiro em 1902. O Brasil emergia de uma longa época de transição, com as suas fases de abalos, demolições e reconstruções. No quadriênio anterior, Campos Sales, auxiliado poderosamente pelo gênio de um mato-grossense, Joaquim Murtinho, reconstituíra as finanças. O País refeito podia assim retomar serenamente o rumo do seu destino
“talhado para as grandezas,
para crescer, criar, subir”.

Raiou então no horizonte político a presidência gloriosa de Rodrigues Alves, aureolada por uma verdadeira constelação de ministros e auxiliares.

Aí é que Lauro Müller entrou desde logo a brilhar como estrela de primeira grandeza. Ao assumir a pasta da Indústria, Viação e Obras Públicas, cifrara ele o seu programa em duas palavras: “fazer engenharia”. E foi o que fez. Mas é que a sua engenharia tinha o bafejo superior das inspirações do homem de Estado. Tão grandioso fora, por vezes, o seu plano, que parecia raiar pela utopia. Mas dele, como bem notou o Sr. Coelho Neto, poder-se-ia repetir o que de si mesmo dizia Lesseps, a quem foi ele já tantas vezes comparado: “julgaram-me um sonhador, mas provei que sou um homem prático”.

E viu-se efetivamente o desenvolvimento extraordinário, com que ele soube impulsionar todos os serviços a seu cargo, desde a viação ferroviária e telegráfica até as obras públicas, em que resolveu problemas seculares da maior relevância, como o cais do porto desta soberba metrópole.
Ninguém melhor do que o Dr. Miguel Calmon, seu imediato sucessor naquele Ministério, podia resumir a gestão de Lauro Müller, como o fez, quando lhe disse numa síntese eloqüente: “imprimistes ao País, das margens do Madeira e do Mamoré à barra do Rio Grande do Sul, a vibração de uma energia privilegiada, pois não houve faixa do seu solo, trecho das suas águas e, mesmo, digamos assim, parte da sua atmosfera, a que não beneficiasse a vossa ação administrativa, tantas foram as estradas de ferro, os portos, as linhas de navegação e os fios telegráficos, com que o dotastes”.

Mas a obra-prima da engenharia de Lauro Müller, a sua obra de ciclope, em que abatendo seiscentos prédios, transformou como por encanto, saneando e embelezando, a velha cidade do Rio de Janeiro, foi certamente a Avenida Central, a que mais tarde, completando assim o pensamento do seu planeador, que a imaginara um como pórtico das nossas relações internacionais, foi dado o simbólico nome de Rio Branco.

Ele próprio em tanto a prezava, que a punha na altura de uma conquista republicana, chamando-lhe “a Avenida que a República fez”.

Senhores: nesta hora em que vos falo, essa avenida esplende e se alonga, de mar a mar, numa galáxia de ouro por sobre a terra. Está toda estrelada, rivalizando com o firmamento.
Nela os edifícios públicos ostentam a sua arquitetura imponente. O comércio rebrilha nas suas vitrinas de luxo. Há um gorjear de óperas no espaço. Os cinematógrafos fervilham. Mil carros rodam num corso incessante. Acotovelam-se representantes de todas as raças. Soam línguas de todos os povos. Sente-se, enfim, uma civilização feliz, que passa cantando em marcha luminosa.
É o sonho patriótico de Lauro MüIler, que ali se concretiza. É a epopéia do seu trabalho, que ali palpita. É o monumento da sua glória, que ali refulge, iluminando a Pátria.

SUCESSÃO GLORIOSA

Cinco anos havia que Lauro MüIler deixara aquele Ministério, quando a nação se viu dolorosamente envolvida no crepe do mais pesado luto. E não só a bandeira da Pátria, senão que, bem se pode dizer, abatiam-se em funeral os pavilhões de todos os países.
É que o Brasil acabava de perder o seu grande chanceler, Rio Branco, personificação augusta da sua diplomacia perante o mundo.

A repercussão no Itamarati foi a de um soçobro sísmico. Deixemos que no-la conte um, que a sentiu de perto, o Sr. Hélio Lobo: “todos na casa, diz ele, veteranos e noviços, tremeram pelo desconhecido, que assim se nos abria. Nove anos de labuta tinham colocado o meneio das coisas exteriores, entre nós, num nível tão alto, que difícil fora achar-lhe continuador cabal. E é glória de Lauro Müller dizer que seus ombros sustentaram galhardamente a herança, que não desmereceu, e antes avultou em lustre.”
Aí está, em poucas palavras, todo o elogio da política internacional de Lauro Müller, chamado nessa hora à sucessão de Rio Branco. Suceder ao barão, sem quebra de continuidade, teria sido já uma grande glória. Mas Lauro Müller fez mais ainda.

Sabido é como, nos últimos anos de Rio Branco, a organização de nossa defesa nacional fora algures mal interpretada, envolvendo em nuvens de antipatia e desconfiança a nossa diplomacia no continente.
Foi o que Lauro Müller procurou desde logo desfazer, não só por meio das missões Campos Sales e Júlio Roca, em que “os dois povos (brasileiros e argentinos) foram solidários com os seus governos, secundando e consagrando as intenções destes, com as mais expressivas demonstrações de simpatia e entusiasmo”, como também pela celebração do tratado do A.B.C., assim designado na história como sabeis, pelas iniciais dos nomes das nações, que o firmaram: Argentina, Brasil e Chile.
Verdade é que este pacto de amizade não foi mantido oficialmente, em conseqüência de vicissitudes da política interna. Pode-se mesmo discutir em tese, o critério diplomático, em que se inspirou no promovê-lo o seu ilustre patrono.

O que não há negar, são os nobres intuitos de concórdia, em que levara a mira, e os efeitos imediatos que surtiu, testemunhados para sempre, estes e aqueles, nos três carvalhos, que então cada um dos representantes dos países contraentes plantou em Buenos Aires, ao lado um dos outros, três monumentos em um só, num simbolismo grandíloquo de união e fraternidade.

Razão teve, pois, o Sr. Félix Pacheco, para chamar a Lauro Müller “símbolo vivo de união” entre as Repúblicas sul-americanas. E não menos o Sr. Ministro Ramos Monteiro, quando, referindo-se ao discurso do embaixador Lauro Müller no Paço Legislativo de Montevidéu, por ocasião das festas centenárias da independência do Uruguai, disse que “o eco dos ecos das suas palavras se repete e repetirá naquele recinto, como um cântico sagrado à liberdade e à confraternização da América”.
Ia assim Lauro Müller honrando as tradições gloriosas da diplomacia brasileira, também no manejo quotidiano dos seus importantes negócios e na efetivação de várias iniciativas, entre as quais as consolidações das leis do Corpo Diplomático e Consular e, principalmente, a reunião levada a efeito no Rio de Janeiro, da Comissão Internacional de Jurisconsultos, encarregados de codificar o direito americano, público e privado.

Eis senão quando se conflagra a Europa, alastrando-se a guerra em proporções inauditas e formidáveis. Delicadíssima era a situação de todos os chanceleres, mas a do brasileiro sentia-se agravada, querer ou não, pelo seu caráter de teuto-brasileiro, em face do papel, que no conflito assumira a Alemanha.
Ele cumpre o seu dever, interessa-se patrioticamente pela sorte dos brasileiros na Europa, faz ouvir, em notas imparciais e brilhantes, a voz do direito contra os abusos da guerra, mas pensa, com toda a convicção de sua alma, que em dada fase da luta, o Brasil não devesse ir além da ruptura das suas relações diplomáticas e comerciais com a Alemanha, nem da posse fiscal dos navios alemães surtos em portos brasileiros.

Entrementes, cresce a onda favorável à revogação integral da nossa neutralidade, avoluma-se, atinge o seu auge com a declaração do estado de guerra entre os Estados Unidos da América e o Governo Imperial Alemão, e irrompe finalmente, marulhando ao longo das avenidas e praças, sacudida agora pela tempestade da palavra de Rui Barbosa.

Impossível opor-se-lhe, e Lauro Müller, em carta de 2 de maio de 1917, aproveitando habilmente a abertura do Congresso Nacional, demitia-se do cargo de Ministro das Relações Exteriores.
Como quer que se ajuíze da sua atitude, nesse momento agitado da nossa diplomacia, uma verdade, como veremos, sobrepaira a todas as acusações e diatribes, de que foi vítima: o seu patriotismo.

RIO BRANCO E LAURO MÜLLER

Disse Lauro Müller em seu discurso de posse nesta Academia, que lhe cabia então, pela segunda vez, a “gloriosa humilhação” de suceder a Rio Branco.

Associemos, pois, mais uma vez, não para humilhação de um, mas glorificação de ambos, estes dois nomes ilustres, que o destino assim entrelaçou em nossa história.
Fácil não é cotejar duas figuras como essas, que, mesmo no físico, dir-se-iam aproximadas unicamente pelo contraste.
O que impressiona em Rio Branco, é a majestade, em Lauro Müller, a elegância das linhas e dos gestos.
Rio Branco foi o chanceler por excelência. Iluminou o Itamarati, durante nove anos a fio. A obra, que dele nos ficou, é quase toda diplomática, e esta não tem rival.

Lauro Müller foi menos diplomata, do que político e estadista. Não teve tempo, ou antes sazão, para desenvolver a sua ação diplomática, posta à prova em situação das mais difíceis e melindrosas.
Rio Branco veio, quase intacto, da monarquia. Foi a mais bela projeção do império na república, um como glorioso traço de união entre os dois regimes. Não fez política republicana. Foi um estranho ídolo, que a monarquia impôs à adoração dos democratas. Estava assim providencialmente talhado para, nas regiões altas e serenas da política internacional, reatar as tradições aristocráticas da diplomacia brasileira.

Lauro Müller foi, ao contrário, um produto genuíno da república. Quando subiu para o Itamarati, levava já um longo passada político, com a sua experiência, mas também com as suas inevitáveis taras e desvantagens.
Rio Branco imortalizou-se numa diplomacia luminosa de estudos, toda emoldurada em cartas geográficas e documentos históricos, sob a irradiação de talentos como Euclides da Cunha, que se gloriavam de ser “satélites na órbita de um imortal”.
Lauro Müller não foi homem de livros; confiava mais nas subtilezas do seu espírito e na habilidade incontestável da sua política.

Rio Branco, removendo triunfantemente as questões de limites territoriais, lançou bases as mais sólidas e largas à nossa política externa.
Lauro Müller se propusera a construir sobre esses alicerces, o edifício da nossa expansão e grandeza diplomática.
Rio Branco foi sagrado pelo gênio de Rui Barbosa, em deus Término das fronteiras da Pátria.
Lauro Müller, com o programa edificante de paz e confraternização que esboçara, teria talvez encarnado nos fastos da nossa chancelaria, o Hermes grego, o deus ágil das relações pacíficas e civilizadoras.

“AD IMMORTALITATEM”

Começara apenas Lauro Müller a gerir a pasta das Relações Exteriores, quando a Academia Brasileira o elegeu em um dos seus imortais a 14 de setembro de 1912, exatamente para a Cadeira vaga pela morte de Rio Branco, a quem já ele sucedera nas elevadas funções daquele Ministério.
Só tomou posse, porém, a 16 de agosto de 1917, quase cinco anos mais tarde.
Muito se tem dito e escrito em torno a essa consagração do seu nome, no supremo areópago das nossas letras. Murmurou-se que não era letrado, e só entrara para a Academia como expoente da política ou da engenharia, acrescentando-se maliciosamente que levara por único título as obras do porto.

Na própria sessão, em que se lhe ia sufragar o nome, a mais agitada talvez das eleições da Academia, trovejava contra ele o verbo de Salvador de Mendonça, declarando perentoriamente: “ou a Academia tem hoje as suas Termópilas, ou abre-se a porta à invasão da Hélada”, segundo rejeitasse ou não, a candidatura do ministro. Mas este venceu, por vinte e dois votos contra quinze.
Força é reconhecer que Lauro Müller não podia competir, em credenciais literárias, com o seu preclaro contendor, o Dr. Ramiz Galvão. Deve-se mesmo convir em que não foi ele um homem de letras, tal como são aqueles que no dizer de Rui Barbosa, passam a vida “na contemplação do belo, nos laboratórios da arte, no culto das letras pelas letras”.

Neste sentido, porém, o próprio Rui, como sabeis, não se tinha a si mesmo em conta de literato, porquanto na sua vida, assevera ele, “as letras entram apenas como a forma da palavra, que reveste o pensamento, como a eloqüência que dobra o poder das idéias, como a beleza aparente que reflete a beleza interior, como a condição de asseio, que lhe dá clareza às opiniões, que as dota de elegância, que as faz inteligíveis e amáveis”.

O mesmo, e, já se vê, com muito mais razão, pode-se afirmar de Lauro Müller. O que ele fez com os seus bordados de general fez também com o verde bácaro das lides literárias: preferiu-lhes a atividade política.
Dele escreveu o Sr. Medeiros e Albuquerque, em sua diáfana linguagem:

Era uma figura deliciosa. Pertencia a uma raça de homens de valor, que gostam mais de ler homens e coisas, do que ler escritos. Porque nunca foi um grande devorador de livros.
Clemenceau, pintando a oposição entre Poincaré e Briand, dizia do primeiro que sabia tudo e não entendia nada, do segundo que não sabia nada, mas entendia tudo. Lauro estava, não exatamente nas mesmas condições, mas muito mais perto desta segunda categoria. Entendia tudo, com muito pouca leitura.

O próprio Lauro Müller, aliás, de si mesmo atestara que era “mais afeito a fazer que a dizer”.
Isto não obstante, tenho para mim que lhe não faltaram talentos intelectuais, para fazer jus a uma poltrona acadêmica: inteligência viva e cintilante, cultura não vulgar, e o que é mais, um estilo não só gramaticalmente correto, como também elegante nessa limpidez e concisão, que emprestam a muitos dos seus pensamentos um ar venerável de brocardos.

Bem pouco valeria este juízo, se não tivesse a corroborá-lo a autoridade inconteste do Sr. João Ribeiro, que assim fala: “Lauro Müller não cogitava absolutamente em ser acadêmico, ainda que as suas qualidades de espírito, de cultura e de bom gosto lhe estavam a indicar o posto, que honrou durante alguns anos.”

E o Sr. Medeiros e Albuquerque acrescenta ainda que “se Lauro quisesse fazer literatura, tê-la-ia feito com superioridade. Foi com superioridade, que fez jornalismo, quando quis entrar nele”.
Assim é que, ao recebê-lo aqui, na vossa ilustre companhia, pôde dizer-lhe, com a sua voz de oráculo das letras, o Sr. Afonso Celso:

Há em vós um fino e esclarecido amador de arte, possuidor de uma das nossas mais escolhidas galerias de pintura, o que revela apurado senso estético. Há em vós um orador fluente, elegante, comedido, sabendo dizer o que quer, como quer, só o que quer, e quando quer, do que são prova os vossos inúmeros discursos diplomáticos, nos quais jamais escapou uma frase deslocada, uma palavra dispensável ou insuficiente. Há em vós, um delicioso causeur, e a causerie verdadeira, apanágio de poucos, é modalidade artística requintada, subtil, maravilhosa. Há em vós um homem espirituoso, arguto e solerte, de quem por aí correm ditos a Talleyrand, com a malícia, mas sem a maldade deste, antes, de ordinário, impregnados da vossa substancial bondade.

A herança literária do saudoso acadêmico, não é certo vultosa, mas basta a comprovar, até mesmo pelas simples citações que vão nestas páginas, a verdade de tais assertos.

UM SONETO

Dele nos restam ainda, assinalando florescências efêmeras da sua primavera de estudos, umas poucas de produções poéticas.
Se lhe não acrescentam elas florões à coroa literária, merecem todavia lembradas, revelações interessantes, que são, do seu espírito estudioso e culto.

Delas uma se destaca, profundamente significativa, porquanto, ao invés do que se podia esperar, não representa mera flor da sua fantasia, senão antes bela expressão do seu cérebro de moço. Dir-se-iam mesmo versos de um pensador.

Aludo ao soneto, já hoje histórico, escrito em 1887, na Escola Militar, para um concurso íntimo entre colegas do curso acadêmico. O tema, dos mais transcendentais, era nada menos que a existência de Deus, a ser tratado filosoficamente nos quatorze versos de um soneto.
Três dos concorrentes deram o seu trabalho à publicidade: dois em versos decassílabos e o de Lauro em alexandrinos. Este último diz assim:

Há mundo limitado e mundo indefinido...
Quem susta o pensamento, excede a Josué!
A ciência não pode, além do conhecido,
Deter a crença humana e derrocar a fé!

Dois mundos há no mundo: o cosmo dividido...
Aqui, eis a ciência: além, sempre de pé,
O incognoscível duro, imenso, soerguido,
Esfinge perenal, foi ontem o que hoje é!

Por isso eu sinto sempre, atrás das aparências,
Acima da ciência, acima da razão,
Um ser que vem na história, a par das consciências,
Mais belo, cada vez que o homem os dotes seus
Podia melhorar, formando a concepção
Do ser misterioso, a quem chamamos Deus!

Como se vê, à parte alguma idéia menos clara ou menos ortodoxa, algum desprimor de técnica, e tal ou qual aridez inerente ao assunto, a composição não é má, e como tal, inserida pelo senhor Laudelino Freire, no seu conhecido florilégio de sonetos brasileiros.

Mas o verdadeiro valor desses versos está no refletirem a mentalidade filosófica do jovem alferes. Sabe-se, de fato, que, por aquele tempo, o materialismo de Spencer e o positivismo de Comte agitavam apaixonadamente a alma da escola. As crenças eram vivamente atacadas em nome da ciência. Triunfava em quase toda a linha o ateísmo.

Não deixa, pois, de ser notável a atitude desse moço, que ali, em pleno teatro de negações e ruínas, proclama assim, num vibrar de versos fortes, verdades como esta:

A ciência não pode, além do conhecido,
Deter a crença humana e derrocar a fé!

Tem-se aí a impressão de que, ao concluir o soneto, num ambiente de escândalo, a sua alma estava de joelhos, diante desse “ser que vem na história, a par das consciências, o ser misterioso, a quem chamamos Deus”.

CULTOR DO VERNÁCULO

Mas os versos de Lauro Müller lançam também um raio de nova luz sobre a faceta propriamente literária do seu caráter, no que concerne ao culto do vernáculo.

E a razão é que em nenhum outro exercício, como no versejar, tanto se evidencia o gosto em cultivar a língua, nem tanto se aprimora a pena no escrevê-la.
Aliás, já foi notado, em curiosa observação histórica, como a prática da própria versificação latina tenha influído beneficamente, à luz dos fatos, na escrita da língua francesa.
Verdade é que o hábito diuturno e quase exclusivo da linguagem metrificada, pode emperrar e dificultar a prosa. Mas não é menos verdade que, máxime no período da formação literária, o cultivo do verso, entremeado com o da prosa, possa aproveitar, e tenha, de fato, aproveitado aos maiores prosadores.
Escutemos a respeito a palavra de mestre do Visconde de Castilho:

Com este tão fácil como agradável tirocínio (o da versificação), diz ele, se afaz o ouvido para escrever a prosa nacional com muito mais graça e afinação: verdade esta que poderá parecer nova e tontaria a alguém, mas que era já credo velho para Maury, para La Harpe, para Rolin, para Voltaire, para Plínio, para Quintiliano, para Cícero e para os mestres de Cícero, os grandes homens da grande Atenas.

E, com efeito, a arte de versificar não somente obriga a maior cópia de vocábulos, como também adestra no manejo da lima, a que dava tanta importância o velho Horácio e com ele os grandes mestres, afeiçoa o estilo a frases lapidares, e afina o ouvido para melhor dar aos períodos da prosa essa cadência, ora suave, ora forte, mas sempre harmoniosa, de que só o verso parece ter o segredo.
Haja vista o que sucedeu a Tácito, o insigne historiador, que esmerando-se naturalmente em dar exórdio solene a esse monumento das letras romanas, que são os Anais, entoou, sem o querer, a sua primeira frase, pelo ritmo épico dos hexâmetros:

Urbem Romam a principio reges habuere.

Não há mister alongar estas considerações, para encarecer a lição que se depara nesta página da vida de Lauro Müller.
Conquanto não pensasse em professar letras, procurou ele estudar a fundo o pátrio idioma, como o prova esse tirocínio poético e a correção dos seus escritos, marchetados, por vezes, de não poucas elegâncias.

É que bem compreendera não ser apanágio de literatos o conhecimento do vernáculo, tão útil, se não necessário ao homem público, cujas prendas e prestígio tanto realça, dando-lhe clareza às idéias, propriedade aos termos, brilho às frases, precisão ao comando, energia às ordens, nobreza aos sentimentos, distinção ao trato, suavidade às negativas, eficácia ao discurso, encanto à palestra, e, enfim, todos esses efeitos mágicos da palavra, que se admiram nos grandes condutores de opiniões e vontades.

Tal é o exemplo, por sem dúvida oportuno e proveitoso, que a todos dá Lauro Müller, mas particularmente aos homens de Estado, como ele.
Não só estes, porém, senão os próprios homens de letras têm ainda algo a aprender na psicologia do notável político.

“UTILE DULCI”

Por pouco que se estude a vida de Lauro Müller, nota-se-lhe, desde logo, um espírito voltado para a realidade das coisas, e preocupado em realizá-las.

Traço característico, ressaía-lhe até no discutir as questões, porquanto, avesso a delongas, encaminhava habilmente soluções conciliatórias e plausíveis, o que valeu às suas opiniões a alcunha pitoresca de “estampilhas”, para significar que, em geral, punham termo aos debates.
No trato das letras, como vimos, bem se pode dizer que só se utilizava delas, como quem pule e afia um instrumento para o trabalho.

Ele próprio, aliás, confessa algures de si mesmo que “não empregava em explanações de tese de governo o esforço e o tempo, que podem ser aproveitados na ação administrativa”.
Vai nisto um belo exemplo, não somente a estadistas e políticos, alcandorados muita vez no lirismo das idéias, como também aos homens de letras.

A literatura não pode reduzir-se a mero diletantismo. A “arte pela arte” é legenda vaporosa e inexpressiva. Nos horizontes diáfanos das letras há de brilhar um norte mais luminoso!
Já não falo dessa literatura que por aí vai derrancando-se obscenamente em pornografias, verdadeiro crime contra tudo quanto há de mais sagrado e caro.
Falo dessoutra, que, embora não descambe em tais excessos, contenta-se de agradar, não se importando com aproveitar aos espíritos.

Esquece-lhe que a verdadeira divisa do brasão literário foi já traçada, há dois mil anos, em duas palavras imortais: utile dulci. É preciso aliar o útil ao agradável.
Dir-se-ia que a mesma sabedoria falou aí pela boca do velho Horácio. São dessas fórmulas imutáveis como a própria essência das coisas, ideal eterno, que há de sempre merecer o sufrágio de todos os séculos: omne tulist punctum.

Das minhas leituras de adolescente, ficou-me a cantar dentro d’alma um sonoro verso italiano, tanto me impressionara ele, desde a primeira vez que o lera:

Odio il verso, que suona, e che non crea.

É como se o poeta, aliás um reacionário, dissesse que odeia o verso, e o mesmo se diga da prosa, que se esvai na melodia dos sons esflorando as almas, sem penetrá-las, para criar idéias e plasmar caracteres.

E de fato, não pode o letrado desinteressar-se da sociedade, em que vive. Ora, a moral da juventude, a santidade dos tálamos, o culto da autoridade, as grandes aspirações da alma nacional e, enfim, todos os deveres para com Deus e a Pátria, são outros tantos interesses coletivos, contra os quais conspiram incessantemente as paixões humanas.

Faz-se, pois, de mister conservar sempre alerta contra a insídia desses assaltos, as virtudes fortes, em que se apóiam a família e a pátria.
Nesta cruzada sacrossanta não pode faltar, nem nunca alhures refulgirá melhor, o dourado espadim do homem de letras.

Que perversão, pois, e que tristeza não é ver a literatura, no afã de lisonjear perigosas sensibilidades, mancomunar-se, não raro, com essas mesmas paixões, açulando instintos que não carecem de estímulo, senão antes de freios e bridas!

LUMINOSOS EXEMPLOS

Quem há, pelo contrário, que se não entusiasme ao ver um imbele poeta como foi Tirteu, arrastando exércitos à vitória, ao só poder mágico do seu estro e dos seus carmes?

E como se não agiganta a nossos olhos a figura de Castro Alves, quando põe a sua lira e a sua musa ao serviço da Abolição, pleiteando no verso uma das causas mais nobres e santas da nacionalidade!
Assim pensando, tenho para mim que uma só das orações patrióticas de Bilac, acendendo o entusiasmo pelo dever e pelo sacrifício na alma dos moços, vale mais do que todos os seus versos de ouro, fazendo-lhes fremer o sangue adolescente em amores fáceis e quiçá impuros.

Uma das obras mais gloriosas da antiguidade pagã, afigurou-se-me para logo o Hortensius, de Cícero, dês que me foi dado ler o capítulo admirável, em que Santo Agostinho nos conta como esse livro, hoje infelizmente perdido, inflamara-lhe o espírito moço no verdadeiro amor da sabedoria.
O árdego mancebo, que até ali andava esfolhando em vôo rasteiro, por entre os rosais malditos do vício, as páginas de fábulas e retóricas fofas, sente desde logo, ao influxo da nova eloqüência, desapertarem-se-lhe aquelas como asas de águia que em remígios tontos a princípio, firmaram-se-lhe em seguida, e para sempre, na mais estupenda ascensão para o sol a pino da verdade.

Era a literatura do paganismo preparando providencialmente a inteligência do futuro doutor da Igreja, até que uma voz misteriosa, como sabeis, lhe deparasse os versículos predestinados da sagrada escritura, em que, por fim, se lhe revelou a sabedoria, em todo o esplendor da verdade e em toda a energia da virtude.

Bendito e mil vezes bendito o livro pagão, que assim salvou para a humanidade o gênio transviado de um Aurélio Agostinho!
Nem sei de maior glória, a que possa aspirar homem de letras, do que esta, a de orientar a mente e o coração das gerações renascentes, para o culto da ciência e da virtude, do dever e da honra, de Deus e da Pátria.

Praza aos céus que o senso prático das realizações, distintivo do caráter de Lauro Müller, venha caracterizar também a nossa literatura, tornando-a em mentora suave dos espíritos, na odisséia gloriosa da raça pelos séculos em fora.

O SEU PATRIOTISMO

Mas entremos, senhores, o mais brilhante capítulo da vida de Lauro Müller, onde se lê no alto, em versais de ouro, a sugestiva palavra: patriotismo. São páginas claras e vibrantes, cuja sinceridade não sei como possa ter sido jamais posta em dúvida.

Refiro-me, como é fácil adivinhardes, à atitude por ele assumida no Itamarati, em face da formidável conflagração européia. Quis-se ver aí, na sua neutralidade, o influxo de tendências germanófilas, em colisão com os verdadeiros interesses da nacionalidade.

Nada mais falso. Pode a sua diplomacia ter errado. Mas, se errou, foi sempre cuidando de bem servir a Pátria. Nem o futuro, aliás, o convenceu do erro. Ainda em novembro de 1919, ao receber nesta Academia o Sr. Hélio Lobo, expunha ele, nestes termos cheios de convicção, o seu pensamento:

Bem merecida foi a culminância que reconhecestes na nota do nosso Ministro Taques, sobre a estadia de navios beligerantes em águas neutras, a propósito do famoso caso Alabama, de que nos saímos, como sempre, com honra para o nosso pavilhão e conceituoso relevo para o nosso renome.
Escapou-me escrever “como sempre” e já agora não me retratarei, sujeito embora à pena de vitupério, fazendo abranger no conceito os anos de neutralidade que o Brasil, em presença da mais generalizada e terrível das guerras, viveu – cauto e digno – em mórbido período, cuja convalescença, em graus diferentes para as diferentes nações, é nesta hora o pesadelo dos estadistas e os sofrimentos dos povos esgotados.

Uma falsa modéstia, que poria a pessoa antes da Pátria, não autorizaria quem quer que fosse, para esconder-se, a calar, mutilando a história, uma prolongada ação que houvesse merecido de grandes e liberais nações o conceito de modelar. Não vai nisso senão o prazer intenso e profundo de haver mantido, sem desmerecimento, uma linha de conduta já incorporada, com lustre para o nosso país, no patrimônio das suas tradições.

Nutrisse ele embora, o que era natural, simpatias pela Alemanha, o fato é que soube colocar acima delas o seu dever cívico e humanitário, como o provam as apreciadas notas antigermânicas contra o bloqueio sem restrições e contra o torpedeamento do vapor Paraná; o seu modo de encarar o incidente do Brasil com a Alemanha, na Liga das Nações, e o seu horror ao “imperialismo desenfreado, (são expressões dele em 1917), que está assassinando e incendiando a Europa e quase o mundo inteiro”.

Referindo-se a Lauro Müller, fez o Sr. Medeiros e Albuquerque a seguinte declaração, num depoimento valioso, e, como sabeis, perfeitamente insuspeito: “não tenho e nunca tive a menor dúvida de que entre o Brasil e qualquer outra nação, o seu grande, o seu real, o seu indiscutível patriotismo nunca hesitaria”.
Se isto não bastasse, aí está toda a sua vida, que foi uma vibração perene de patriotismo, perpetuado no ritmo cristalino dos seus escritos, outros tantos hinos ao Brasil e ao seu povo, ao seu passado e ao seu futuro.

LIÇÕES DE PATRIOTISMO

E o seu era um patriotismo sadio, que se não perdia em ditirambos à beleza da terra, nem, como dizia ele próprio, em “expansões equatoriais de exaltadas e imaginativas superioridades”. O a que ele aspirava, era formar a alma da Pátria, no estudo da sua gênese histórica e na consciência dos seus grandiosos destinos. Ouçamo-lo:

Bem é que o recordemos, para que os moços, que em livros universais aprendem ser a história a mestra da vida, se não esqueçam de que a história pátria lhes deve ser o mais amado dos mestres.
Cada vez mais avigorados seremos, se melhor soubermos fortalecer o sentimento de nacionalidade, em contraposição à bastarda condição de filhos sem pátria, a que se aviltam espíritos desviados por um internacionalismo amoral, adquirido em viagens de prazer, ou sorvido em leituras, que só pela face brilhante, nos fazem conhecer as coisas exóticas. Para que não caiam nessa miséria orgânica, aos moços devemos ensinar o culto da língua – tão formosa e rica – que possuímos, e nela e por ela, como nas boas famílias se pratica, dizer-lhes o que possui materialmente a sua Pátria, que é a sua família entre os povos, para que conheçam o presente; e mostrar a cada geração o que ela é e representa, contando-lhes como foram e o que representaram os seus antepassados. Sobretudo nos turbados tempos que vivemos, nada parece mais necessário do que ensinar o Brasil aos jovens brasileiros.

A preocupação suprema deve ser organizar a Nação, que não existe forte, senão fazendo fortes os seus nacionais. A primeira condição para essa realidade, é o sentimento de união entre os filhos da mesma terra natal, e o propósito, em tudo e por tudo, de lhes dar a primazia nas várias esferas da atividade, no âmbito da pátria.

Foi pela união que os nossos antepassados, desamparados da metrópole desfalecida, restauraram a integridade pátria, numa luta de 30 anos. Nessa epopéia revigoro, por vezes, o meu espírito, pelo convencimento de que a energia do nosso povo não falhará à Nação em dias infortunados.
Para que eles não voltem, é mister que, os sabendo possíveis, não os facilitemos com os nossos descuidos, e nem os provoquemos com os nossos erros. E maior não conheço eu que o de não ver que o máximo perigo, para o Brasil, seria o perigo brasileiro, resultante do progresso desordenado, órfão de uma educação nacional e falho de uma organização sólida e segura, amparada na subordinação constante de todos os brasileiros às leis liberais, que por nossa vontade nos regem, e no respeito invariável às autoridades que elas criarem.

Quanto não censurava aqueles que, no seu dizer, voltam do estrangeiro com os sentimentos nacionais “tão cobertos de contrafacções, quanto de etiquetas de hotéis as malas com que perambulam!”
O que ele desejava, era que “conservássemos a simplicidade e o comedimento das antigas maneiras, e também a de vestir da nossa gente, para que os nossos vindouros não se notabilizem no futuro pela algazarra das conversas e discussões, pelos desgarres ou arrebicados dos gestos, pela altura a que elevem os pés nas salas e salões, nem pela efeminada elegância cinturada, que faz o desespero daqueles  a quem a idade vai arredondando”.
São, como se vê, palavras de um patriota sisudo.

E era este patriotismo esclarecido, que o extremava no interesse por todas as coisas do Brasil, e para citar-vos uma reminiscência pessoal, lembra-me ainda como o ex-superior das Missões Salesianas de Mato Grosso, hoje bispo de Petrolina, o Sr. D. Mallan, contava-me, comovido, o carinho paternal, com que Lauro Müller recebera a visita de um jovem índio mato-grossense, e se empenhara eficazmente em prol da catequese.

Nem será fora de propósito afirmar que foi ainda o patriotismo, um dos sustentáculos da sua fé cristã, no meio da atmosfera revolta, em que se lhe expandiu a flor ardente da mocidade. Bem conhecia ele os vínculos históricos e naturais, que enlaçam no Brasil, a nacionalidade ao catolicismo. Dele é este formoso pensamento: “em todas as casas, ao lado da Ceia de Cristo de Leonardo, que recorda a nossa comum filiação espiritual, deveríamos alçar todos, pobres e ricos, mas irmãos no amor da mesma terra natal, a Primeira Missa, de Victor, representação comovedora dos dias, em que o Brasil recebeu o batismo da fé, com que nasceu para o convívio do mundo”.

E na curiosa poesia, de que nos fala o Sr. Medeiros e Albuquerque, dedicada a Pedro Álvares Cabral, e feita em colaboração por vários acadêmicos, a quadra escrita por Lauro Müller, é exatamente a única, por onde perpassa um hálito de inspiração cristã:

Foi no dia pascal dos crentes do Evangelho,
Que a Cruz veio contigo às terras do Cruzeiro:
Quando o gentio a viu, sorrindo, hospitaleiro,
Sorria o Novo Mundo ao Continente Velho.

Esta fé o acompanhou por toda a vida, e foi ela ainda o seu anjo à beira do mundo, quando, a 30 de julho de 1926, sob as bênçãos do ministro de Deus, desse mesmo Deus, cujo nome fizera timbre de gravar nos seus discursos mais solenes, exalou o grande espírito, aqui mesmo, no aconchego da terra brasileira, tal como ele sonhara ao escrever que “só na Pátria se pode morar e morrer, completando, sob o mesmo céu e a mesma paisagem, o ciclo que começou a vida”.

PERORAÇÃO

Aí tendes, Senhores, num esforço pálido embora, a figura imortal, a quem hoje me cabe a honra de suceder nesta Cadeira, patrocinada pela musa clássica do Padre Sousa Caldas, e ilustrada pelos solstícios brilhantes de Pereira da Silva e Rio Branco.

E a vós, Senhores Acadêmicos, é que devo esta honra insigne, realçada ainda mais, não só pelo sufrágio extraordinário, com que ma conferistes em primeiro escrutínio e primeira eleição, como também pela escolha feliz do nobre confrade, que em vosso nome vai receber-me nesta Casa, o Sr. Ataulfo de Paiva, em quem todos reconhecem um árbitro das elegâncias, tanto das letras como das maneiras fidalgas.

Assim é que a palavra se me enflora aqui espontaneamente na expansão dos mais vivos agradecimentos, que vos aqui deixo consignados, e dos sentimentos da mais profunda admiração e enlevo, com que hoje penetro os umbrais solenes da Academia.

E eis que uma reminiscência aqui me empolga, inspirando-me estas últimas páginas.
Não há muito que estes muros ouviram, em sessão magna, como esta, a oração blasfema daquele, que renegando os princípios da beleza espiritual do cristianismo, foi jurar aos pés de uma deusa falsa, na Acrópole de Atenas, uma profissão de fé literária, pagã e fútil.
Vazada embora em moldes helênicos, não passa toda ela de uma dança mágica de palavras à flor dos lábios, porquanto ele próprio confessa que dentro, nas profundezas da alma, como os sinos da lendária cidade de Is, submersa no mar da Bretanha, cantavam-lhe ainda as crenças de outrora, e o seu coração, bem que dilacerado pela dúvida, repetia-lhe sempre, como a lira de Orfeu, o mesmo estribilho santo dos amores cristãos da sua infância e da sua mocidade.

Permiti-me, pois, que também eu, sem o brilho do fascinante estilista francês, mas com todas as veras da minha alma, venha professar perante vós a simplicidade do meu credo literário.

ORAÇÃO NA ACRÓPOLE

Senhores:

Ao entrar para a Academia, senti que, também eu, galgava as alturas de uma acrópole, não de uma acrópole em ruínas, mas acrópole imortal, onde os Propileus não perdem a elegância ática dos seus mármores, e o Partenon cristaliza para sempre o sorriso divino da beleza. É a radiosa acrópole da nossa arte literária, da qual vós, Senhores Acadêmicos, sois as colunas vivas e gloriosas.

Tal como o peregrino do país bretão, áspero de rochedos e ventos, também eu venho de longe, mas dos sertões cheios de sol e de flores, onde o cristianismo aclimou os seus ideais de celeste poesia, tão bem como naqueles mares sombrios do norte, ou sob os céus claros e risonhos da Hélade.

Mas não venho maldizer como ele, senão antes abençoar num hino de gratidão e amor, esses “sacerdotes de estranho culto, provindo dos sírios da Palestina”, que educaram a minha juventude, e, há duzentos anos, lá vão traçando nas solidões bravias da minha terra algumas das mais fúlgidas estrofes da nossa epopéia bandeirante.

Os templos que lá eles ergueram, não são “fantasias de bárbaros, que se esboroam ao cabo de quinhentos ou seiscentos anos”; mas são desses monumentos imperecíveis no seu simbolismo eterno, cujas harmonias fundiram em lágrimas o coração do grande Agostinho de Hipona, e cuja eloqüência sobre-humana tem arrebatado a alma artística dos Huysmans, no surto maravilhoso das suas ogivas e dos seus símbolos para o azul do infinito.

Não venho como ele, apostatar desse culto, cujo encanto nem ele próprio soube negar, o doce culto à Virgem Maria, Ela, a “Estrela da manhã”, no céu da minha infância, a “Torre de marfim” dos sonhos mais puros da minha adolescência, a “Rosa mística” dos meus cantares de moço, a “Casa de ouro” das minhas esperanças; Ela, cuja formosura esplende nos séculos, através das telas incomparáveis de Rafael; Ela, a musa do Tasso, a que não coroa a fronte com os louros caducos do Helicão, mas com as estrelas imortais do céu; Ela, a suprema inspiração do Dante, no êxtase luminoso do Paraíso.
Não venho, em suma, abjurar nas aras de uma arte agonizante os cânones sublimes do cristianismo, os quais, longe de contrariarem a verdadeira arte, a espiritualizam e elevam, convencido como estou de que a mesma expressão grega da beleza, como a romana do direito, mais não foram do que o natural aperfeiçoamento da humanidade, para o batismo resplandecente do evangelho; da mesma forma que a argila bruta do éden amoldara-se nas feições do primeiro homem, para receber na fronte o sopro divino da vida.

Venho, sim, denunciar perante vós essa literatura do cepticismo e da dúvida, literatura que, por parecer original e profunda, blasfema de tudo que é sagrado e puro, de tudo que ignora ou não quer entender; literatura inconsciente, que forja frases como esta: “Ó abismo, tu és o único deus!” como se também o nada não fora um abismo.

Mas creio na literatura da razão e da fé, da esperança e do amor, da religião e do patriotismo; creio na literatura, que é uma alavanca de ouro elevando os corações para o ideal e para a virtude; creio na literatura, que, à semelhança da olímpica Hebe, propicia aos espíritos, em vasos de filigrana, os manjares da imortalidade; creio, enfim, na literatura, que à imitação dos cânticos de Moisés no deserto, acompanha, orienta e suaviza as marchas gloriosas da civilização, para a Canaã dos seus eternos destinos.