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O homem terminal

 

Não, não era nada, mas, com a idade, perdera a carteira de identidade e providenciara outra. Ficou admirado ao ver que, junto ao nome, havia a observação do Instituto Félix Pacheco: "Idoso".

Nunca tinha pensado nisso, mas aí estava: era um idoso, com direito a filas especiais nos bancos e a andar de ônibus sem pagar nada. Além do mais, marcara uma consulta para fazer um check-up de rotina, sentia-se bem, continuava no mercado de trabalho, por lisonja ou delicadeza, os amigos diziam que ele estava ótimo, não parecia um idoso, "o que você faz para continuar assim?".

Ele não fazia nada de especial, tomava alguns remédios, isso sim, mas procurava evitar aporrinhações, dívidas e mulheres. Foi com surpresa que, no exame com o seu clínico, descobriu que havia um ponto suspeito na base do pulmão direito.
 
Fez a biópsia de praxe, o resultado foi bom, nem por isso deixou de levar um susto, uma pequena calcificação já antiga, nenhum perigo à vista.

Chegou a sua casa e decidiu tomar providências. Não podia fazer nada contra a calcificação nem com a carteira de identidade que o discriminava como idoso.
 
Tampouco fazia questão de alterar sua vida, nunca fizera projetos para o futuro, as coisas aconteciam ou não aconteciam, não seria agora que mudaria hábitos nem convicções.
 
Olhou-se no espelho e declarou-se terminal. Poderia viver mais dez, 20 anos, mas precisava fazer qualquer coisa antes que se tornasse um terminal de verdade, na cama de um hospital, numa UTI da vida, desmotivado, talvez sedado ou entubado, na base do "não passa desta noite".

Ele queria ter direito a muitas noites ainda, lúcido e, se possível, empatado nas coisas boas e más que vivera. Fez algumas viagens que fizera antes, não como despedida, mas como reencontro consigo mesmo. Aquela tarde em Roma, o sol oblíquo batendo nas fachadas, as janelas com gerânios vermelhos na piazza Navona, o som daquele sino, pássaro de bronze que anunciava o fim do dia.

A água azulada de Positano, onde tentara ouvir as sereias que haviam enfeitiçado Virgílio, não precisou se amarrar no mastro do barco para evitar o mergulho inútil.
 
As noites cheias de pirilampos em Itaipava, tudo aquilo precisava ser visto e revisto com a liturgia quase solene das despedidas. E deixou de ler e ouvir coisas novas, reviveu a sensação com que ouvira a primeira sinfonia de Mahler e releu, sem pressa e sem espanto, os livros que o haviam marcado, aquele conto de Tchekhov que o deslumbrara, a educação sentimental de Flaubert que o ensinara a ser um deseducado na vida.

Como o peregrino cansado, mas terrivelmente lúcido, que chega ao pórtico do templo e sacode a poeira das sandálias, ele sabia que estava chegando aonde devia chegar, aonde sempre quisera chegar, mas aproveitando tudo, devorando tudo, vivendo tudo outra vez, com mais consciência de si mesmo e das coisas.

Evidente que a memória, como sempre seletiva e parcial, dava o texto final ao que merecia um texto final. Sempre ouvi dizer que, nos últimos instantes, a vida inteira passa pelos olhos que não mais se abrem, as imagens devem ser confusas e nada se aproveita delas, são pedaços esparsos que nem sempre têm a ver com o homem terminal que nem sabe que chegou realmente a um fim, está indo embora sem saber que está.

Se não estiver sedado o suficiente, talvez sinta algum tipo de dor, mas não de pena, desperdiçará o momento final pensando em coisas inúteis ou em nada, nem na vantagem que terá de não mais pagar o ônibus. Dez ou 20 anos talvez custem a passar, não serão bastante para as despedidas todas.
 
Por isso mesmo, sem fazer muita fé nesses dez ou 20 anos que talvez não tenha, o mais prudente é começar todas as viagens, todos os encontros desde já, sem uma ordem estabelecida, mas sabendo que o peregrino chegou ao templo e poderá, até como um pouco de vingança, sacudir o pó de suas sandálias.

Folha de São Paulo, 16/9/2011