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O grande fim de Lima Barreto

 

Lima vai direto à ação do homem humano, toca no osso de uma realidade que "sentimos"


NÃO PARECE , mas houve tempo em que filósofos e teólogos discutiam uma questão inquietante: os animais, além do corpo que os identifica, têm alma ou alguma coisa equivalente ao espírito humano?


Honestamente, o problema não me preocupa, eu próprio desconfio que não tenho alma, mas, diante de certas evidências, estou certo de que disponho de cultivado espírito de porco -o que me leva a acreditar que ao menos os suínos são dotados de alguma coisa aproximada a um espírito.


Falei acima em "evidências" e falei corretamente. Ao longo dos muitos anos acumulados na carcaça que abriga a possibilidade de um espírito, são numerosos os momentos em que o dito espírito se manifesta como espírito de porco -bem cevado porco que me leva a embarcar em canoas furadas, causas perdidas e opiniões alucinadas.


Agora mesmo, quando se comemora os cem anos da morte de Machado de Assis, de quem me considero devoto e vulgar imitador, decidi reler, em comovido silêncio, a obra completa de Lima Barreto, na edição da Brasiliense (São Paulo, 1956) se não me engano organizada por Antônio Houaiss e Francisco de Assis Barbosa, este último, por sinal, o grande biógrafo do autor de Policarpo Quaresma.


A crítica, tanto a oficial como a oficiosa, chegou a um lugar comum a respeito de Lima Barreto: apesar de suas imperfeições de técnica e estilo, do ressentimento que marcou a sua vida e a sua obra, é ele um dos nossos maiores romancistas, não faltando aqueles que, como eu, o colocam acima do próprio Machado enquanto autor de romances, embora o criador de Quincas Borba continue no pódio como o nosso maior escritor.


Trata-se, evidente, de manifesta expressão de um espírito de porco, essa distinção entre romancista e escritor. Vieira é o maior escritor da língua portuguesa, fez sermões e escreveu cartas, nunca tentou o romance -nem precisava.


Machado fez de quase tudo, romance, conto, crônica, crítica, poesia, traduções e muita fofoca em vida e em textos. É mesmo o nosso maior escritor.


Mas seus romances, mesmo aqueles quatro ou cinco geniais ("Dom Casmurro", "Brás Cubas", "Quincas Borba", "Memorial de Aires" e "Esaú e Jacó") são ensaísticos demais, inchados de pensamentos idos e vividos, fundas e profundas observações da alma humana, que mais o aproximam de Pascal, Montaigne, Swift, Sterne, e não de Balzac, de Stendhal, de Dickens.


Lendo Machado, ficamos encantados com a sua penetração psicológica, sua ironia rabugenta, suas provocações ao leitor.


Lima não tem nada disso, vai direto à ação do homem humano, toca no osso de uma realidade que "sentimos" mas geralmente nos recusamos a "pensar" nela.


Policarpo Quaresma foi considerado por Oliveira Lima, Monteiro Lobato, Gilberto Freyre e muitos outros como o personagem nacional mais próximo de Dom Quixote, sem apelar para a genial caricatura de Cervantes.


Isaías Caminha foi o agente de uma classe de excluídos infiltrado na sociedade culta de sua época. Gonzaga de Sá, invocando sua qualidade de possível descendente de Estácio de Sá, fundador da cidade, tinha idéias sobre o Rio e sua gente. "Sempre o conheci triste, mas de uma tristeza, por assim dizer, filosófica, geral, essa tristeza de sentir profundamente a mesquinhez da nossa condição humana."


Lima tem pelo menos dois dos maiores contos de nossa literatura: "O Homem que Sabia Javanês" e "Nova Califórnia". Contudo, Machado fica mil furos acima como contista. Sua ironia é contida, disfarçada, quase envergonhada. Diria: pasteurizada. Em Lima Barreto, explode até mesmo de forma absurda. Basta lembrar o famoso telegrama que, de seu fracassado sítio, Policarpo enviou a Floriano Peixoto durante uma sedição militar, pedindo que o presidente resistisse aos golpistas. Para maior tranqüilidade do Marechal de Ferro, avisou: "Sigo já!".


Realmente, o nosso Dom Quixote seguiu já. Lutou pelo que considerava justo e humano, terminou sacrificado pela causa que defendera. As saúvas haviam dizimado sua agricultura, pensava com ela salvar o Brasil da miséria. Os soldados de Floriano o mataram.


Folha de S. Paulo (SP) 25/7/2008