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O fim do recreio

 

É hoje e amanhã só. Uma pena, porque mesmo sem contar com a seleção do Brasil na fase final, a Copa acabou servindo como distração desse nosso cotidiano tão cheio de más notícias. Segundo meu instituto de pesquisa, ficamos frustrados, tristes, um pouco irritados, mas não deprimidos. De repente, todos viramos croatas ou croativics e passamos a torcer com a maior intimidade por jogadores com essa rima insólita: Modric, Rakitic, Mandzukic, Perisic, Strinic, sem saber de seus gestos e atitudes nazifascisas.

Na quarta-feira, assisti a parte do jogo com a Inglaterra num consultório médico, onde todos torciam pela Croácia. Na saída, a mesma coisa: ao passar por bares e restaurantes, comemorava-se a vitória dos ics como se fosse a de Tite. Na minha rua, a surpresa foi ainda maior: também os porteiros tinham virado croativics desde criancinhas.

No dia seguinte, o fenômeno já estava num samba-gozação. Eis alguns versos: “Se não tem vaga no SUS/ Nem remédio na farmácia/ Fala com a Márcia/ Bursite, otite, nefrite/ É tanto ite/ Parece até o time da Croácia. Será que era falácia/ Tamanha audácia?/ Foi o prefeito que disse/ Fala com a Márcia”.

A partir de segunda-feira, cairemos na real e voltaremos ao país “perplexo” de que falava Cármen Lúcia em artigo aqui ontem sobre a insegurança jurídica: “A Justiça não tem lado, preferências, protegidos nem adversários”, precisou advertir a presidente do STF para o que deveria ser óbvio. “As partes conflitam, não os juízes”, teve que explicar.

De nossa parte, já tivemos no Rio a demonstração de que preferência se compra com cargos, quando mais da metade da Câmara Municipal recusou o pedido de impeachment de Crivella, dando-lhe o sinal verde para agir acima da lei. Agora, o irmão já sabe: catarata, hemorroida, otite, qualquer coisa, não entre em fila, fala com a Márcia.

Aqui, como se sabe, é a terra do vale-tudo, onde até quem está na cadeia continua roubando, conforme concluiu o procurador da República Felipe Bogado, da recente Operação Ressonância. Segundo ele, as fraudes na área da saúde fluminense investigadas pela força-tarefa da Lava-Jato na Operação Fatura Exposta prosseguiram mesmo após a prisão de Sérgio Côrtes, ex-secretário e homem de confiança do ex-governador Sérgio Cabral.

Como daqui a pouco é que vai começar de fato a campanha eleitoral, quando mais podres costumam vir à tona, muita água ainda vai passar por debaixo dessa ponte — água suja, evidentemente.

Vamos sentir saudades da hora do recreio que a Copa nos proporcionou.

O Globo, 14/07/2018