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A morte e os impostos

 

Quando a constituição americana ficou pronta, Benjamin Franklin manifestou esperança quanto à sua adequação e permanência, mas fez a ressalva de que nada é certo nesta vida, a não ser a morte e os impostos - os famosos ''death and taxes'', que viraram uma expressão aplicável a muitas situações, inclusive metaforicamente. Deve ser usada milhares ou centenas de milhares de vezes nos Estados Unidos, todos os dias. Americano leva o dinheiro dele muito mais a sério do que nós, talvez porque roubem bem menos que a gente, em termos relativos. (Por sinal, desculpem, aceito vaias, mas para alguns de vocês deve ser novidade. Dizem que os japoneses inventaram uma fantástica máquina eletrônica de prender ladrões e começaram a fazer experiências em várias cidades do mundo. Botaram uma no aeroporto de Tóquio e, em uma hora, a máquina prendeu 56 ladrões. Botaram uma em Nova York e, também em uma hora, a máquina prendeu 205 ladrões no aeroporto. Em Paris, 176. E por aí foi, um sucesso em toda parte. Em seu caminho para o Brasil, a máquina pegou uma média de 118 ladrões/hora. Aí a botaram no aeroporto de Brasília e adivinhem no que deu? Não, não divulgaram os resultados. Na realidade, ninguém jamais saberá os resultados. Mas dessa feita não foi porque o governo escondeu, foi porque roubaram a máquina quatro minutos depois de ela ter sido instalada. Perdão.)


Sim, mas eu ia dizendo que americano respeita o dinheiro dele muito mais do que respeitamos o nosso. Para começar não usam uma palavra hipócrita e meio fresca para designar quem paga impostos. ''Contribuinte'' não tem impacto nenhum, parece descrever quem botou dinheiro na caixinha de alguma instituição em penúria. Eles lá são diretos, dizem logo ''taxpayer'', que literalmente quer dizer ''pagador de impostos''. Tenho certeza de que, se usássemos uma palavra semelhante, ou até ''pagador de impostos'' mesmo, teríamos bem mais consciência de nossa condição. Ainda mais brasileiro, que todo dia tem um imposto novo para pagar. Seria bem mais fácil ver a verdade sobre nós, o povo: um rebanho de otários vivendo parcialmente para pagar impostos e sem direito a receber de volta nada, ou quase nada, que preste.


E outra prática muito boa que eles têm por lá é cobrar o imposto separadamente do preço da mercadoria. Quem já foi a Nova York, ou seja, todo mundo, sabe disso. O troço custa dez, mais o imposto, cobrado à parte. Aqui já tentaram instituir coisa semelhante, como pelo menos quanto de imposto se está pagando pelo produto estampado em algum lugar bem visível. Mas nada disso foi adiante, nem irá. Claro que iriam inventar logo diversas mutretas para furtar usando os novos mecanismos, mas pelo menos diminuiria o número imenso de brasileiros que pensa que não paga impostos. Acho até que, nos anúncios de voz, deviam dizer o preço e, separadamente, o total de imposto que vai cair nas costas do infeliz. Quem manda ter tanto analfabeto? Os analfabetos também são filhos de Deus e merecem saber o que estão gastando com o dinheiro cujo valor interpretam pelas cores e figuras.


Grande parte de nosso povo, uma parte enorme, pensa que não paga impostos. O pessoal mais humilde lá da ilha, que é bastante numeroso, acredita que pagar impostos é desembolsar uma quantia em dinheiro e entregá-la a um funcionário de aspecto severo, que em troca lhe dará um papel carimbado, ou qualquer coisa assim. Isso a maior parte do povo de lá nunca fez e acha que quem paga imposto é barão, eles nunca. E, se eu contasse por lá que o recém-finado Arquivo - Deus o tenha -, que não fazia nada a não ser atanazar o juízo alheio e beber cachaça, pagava imposto - e bastante, porque o imposto de cachaça é altíssimo - iam achar que professora Madalena estava certa, quando dizia que eu tinha um problema na idéia.


Maior espanto haveria entre todos, quando lhes contasse que praticamente tudo o que compram paga imposto, do feijão à farinha. E, em muitos casos, não é pouquinho. Acho que feijão, por exemplo, paga uns 40%, açúcar por aí também e assim se empilha sobre todos imposto em cima de imposto. Tudo isso, junto com o que a classe média recebe, cujo salário vem com o imposto já descontado, vai formar a imensa massa tributária brasileira, uma porcentagem imoral do nosso PIB.


Dirão que esqueci os grandes pagadores de impostos (embora haja casos de bancos com lucro não pagarem Imposto de Renda), como, por exemplo, as grandes indústrias. Sim, o dinheiro dos impostos é entregue por elas ao Estado (melhor dizendo, ao governo, que as pessoas entendem melhor e espelha melhor nossa realidade), mas quem paga não são eles. Pois que, como é verdade desde que o mundo é mundo, quem paga imposto é quem está na ponta final da linha. Barão, portanto, não paga imposto, barão repassa. Quem paga imposto é quem consome alguma coisa e quem tem dinheiro retido na fonte.


Por conseguinte, grande chute populista do pelego que ora nos preside (o maior da História deste país e um dos mais bem-sucedidos do mundo), quando berra que está havendo distribuição de renda, com o Bolsa-Família e caridades semelhantes. Não está havendo distribuição de renda nenhuma, porque os ricos na verdade pagam pouquíssimo imposto, quando pagam, e eu mesmo tenho amigos ricos que recebem restituição do Imposto de Renda. O que está havendo é o empobrecimento da classe média (de vez em quando execrada, porque malhá-la é intelectualmente chique) e o fato patético de que a maior parte do que o povo recebe ''de graça'' é paga por ele mesmo e cada vez mais por ele mesmo. E, ao contrário do que diz o liquidificador nunca antes possuído, o certo mesmo em sua vida são a morte e os impostos.


O Globo (RJ) 25/5/2008