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A derrota da voz rouca

 

Diante da confusão política dominante, uma questão se colocou para os analistas: 2016 já terminou? Não vai terminar? Nem começou? Ou já vai tarde? Honrado por ter tido o “1968 — o ano que não terminou” citado anteontem por três respeitáveis colegas — Cora Rónai, Ancelmo Gois e Ricardo Noblat —, me senti convocado a participar dessa peleja, mas avisando que, ao contrário do que disseram à Cora, não estou escrevendo “2016 — o ano que não começou”. Não teria condições. Se levei 20 anos para fazer o “1968”, precisaria do dobro para dar conta de um ano como o atual, de tempos mais difíceis e complicados, ainda que menos sofridos. De fato, hoje não temos censura, não sofremos tortura, falamos o que queremos, e as vísceras do país estão à mostra. Cheiram mal, mas estão expostas.

Em compensação, naquela época, o maniqueísmo facilitava a visão. O mal não se misturava com o bem e vice-versa, como vem acontecendo, inclusive esta semana no episódio STF x Senado. Naquele momento, o Supremo preferiu a amputação (ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva aposentados pelo AI-5) a fazer acordo com o outro lado, ainda que, agora, sob a alegação de evitar o pior com o agravamento da crise. Nem Eduardo Cunha afrontou tanto o STF quanto Renan Calheiros. Nunca um réu por peculato e alvo de outros 11 processos foi capaz de desafiar o Supremo ao desobedecer à decisão liminar que determinava seu afastamento da presidência da Casa. Não abandonou o cargo nem sequer recebeu o oficial de Justiça com a notificação. Logo depois, vencedor nessa disputa de forças, afirmou cinicamente no discurso da vitória que “decisão do Supremo se cumpre”. Disse isso, sem precisar acrescentar que, claro, quando favorável. Ele criou a necessidade de se usar aspas para “decisão patriótica” do STF. 

Como pertenço à voz rouca das ruas, me guio pelo que leio dos que são bem informados. E assim, por meio deles, descobri que para se chegar a esse acordão, desculpe, a essa “fórmula”, juntaram-se o presidente Temer, senadores do PMDB e do PSDB e os ex-presidentes José Sarney e Fernando Henrique Cardoso para pressionar, desculpe, “convencer” os seis juízes do STF que premiaram a desobediência. E assim foi decretado: para o bem geral da nação, diga ao povo que Renan fica. Mas como são políticos escolados, que sabem com quem estão lidando, tiveram a precaução de evitar que ele chegue à Presidência da República, mesmo que por pouco tempo. Confiar desconfiando. 

No final, o juiz Marco Aurélio Mello, autor da liminar, declarou-se “vencido, mas não convencido”. Como, aliás, a voz rouca das ruas.

O Globo, 10/12/2016