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Com o Brasil em Cannes

 

Cacá Diegues está voltando em breve a Cannes com seu “Grande circo místico”, 54 anos depois de participar do XVIII Festival de Cinema — ele, com “Ganga Zumba”; Glauber Rocha, com “Deus e o diabo na Terra do Sol”; e Nelson Pereira dos Santos, com “Vidas secas”. Eu estava lá nesse ano em que os três funcionaram como uma espécie de compensação pela vergonha do golpe militar de 1964. Pelo menos duas surpresas aguardavam Nelson. A primeira foi logo após a exibição de “Deus e o diabo”. Sem saber que cineastas como Fritz Lang e Luis Buñuel haviam adorado seu filme, Glauber estava muito nervoso, a ponto de ter um súbito desarranjo intestinal. “Não estou aguentando”, disse pra mim a seu lado, “pede ao Nelson pra me substituir na coletiva”. E voltou correndo para o hotel. Assim foi que o amigo teve que responder a jornalistas do mundo todo perguntas como esta “Quem é Deus e quem é o diabo? Será Antonio das Mortes (o matador do filme) a representação da ditadura?” quis saber um alemão. Nelson teve de explicar também que Dadá era a mulher de Corisco, não tinha nada a ver com dadaísmo, o movimento artístico.

A outra surpresa deu mais trabalho a Nelson, que chegou a ser acusado de assassinato de animais. É que uma condessa italiana ficou furiosa com a cena em que a cadela Baleia encena a sua morte graças a soníferos. “Só mesmo um povo subdesenvolvido para fazer filme em que se mata animal”, ela vociferou. A notícia da “morte” viralizou, como se diria hoje, e criou uma certa má vontade contra o filme. Foi preciso que o produtor e fotógrafo Luiz Carlos Barreto conseguisse da Air France a oferta de uma passagem de primeira classe para Baleia, que desembarcou como celebridade. Ainda assim, a tal condessa não se conformou e espalhou que, como os “vira-latas são todos iguais”, os brasileiros teriam arranjado uma cachorra qualquer para substituir a grande intérprete que, por não falar francês, não podia garantir aos repórteres presentes no aeroporto: “C’est moi-même”.

Não seria esse o único mal-entendido. À noite, na sessão de gala, Cacá atrasou-se e quando começou a subir a escadaria do Palácio do Festival, Glauber, lá em cima, começou a gritar: “Cacá, ô, Cacá, anda logo”. Uma gargalhada explodiu. “Foi a maior vergonha da minha vida”, disse depois o diretor de “Ganga Zumba”. É que Cacá em francês quer dizer “cocô”. “Sozinho, não dava para fingir que não era comigo”. Glauber continuava gritando: “Cacá, ô, Cacá”, e a turma do sereno repetindo: “Cacá, ô, Cacá”, ou seja, “cocô, ô, cocô”.

Por via das dúvidas, Cacá deve ser agora o primeiro a subir as escadarias do Palácio, junto e misturado com o público

O Globo, 25/04/2018