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Ainda Cony, inesgotável

 

Carlos Heitor Cony morreu deixando de propósito a imagem de que era pessimista, cético, cínico e, como revelou no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, anarquista. Gozador, deve estar se divertindo por ter conseguido que acreditassem nisso. Mas será que esse Cony correspondia ao real, de carne e osso? Pelo menos seu amigo Otto Maria Carpeaux achava que não. Há mais de 40 anos, o grande crítico advertia: “Cony esconde atrás da máscara de um cinismo feroz seu sentimentalismo inato”.

Bastaria lembrar o que o cronista expressou publicamente sobre Mila. Um trechinho: “Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas vezes juntos, a patinha dela em cima de meu ombro”. É difícil imaginar um cínico capaz de se enternecer e chorar de saudade a perda de uma cadelinha.

A mesma contradição se encontra nesse anarquista obediente aos rituais. Foi ele quem revelou: “Estudei em seminário não por um sentido místico, mas porque a liturgia me atraía”. Quer dizer: o que o fascinava nos dez anos de internato não era a fé, mas os ritos da religião.

Dois mecanismos foram importantes na formação de Cony. O primeiro, de compensação. Aos 5 anos, quando começou a articular palavras, ele misturava letras, o que o levou a se refugiar na escrita. Escrevendo, não trocava, por exemplo, o “g” pelo “d” em “fogão” como fazia ao falar, provocando bullying dos colegas.

O segundo mecanismo foi o de defesa — “um modo de não se deslumbrar” — e de proteção contra o niilismo e o desespero. Caminhando sempre entre paradoxos, ele às vezes se mostrava tão cético que parecia não acreditar nem no ceticismo.

Em 1958, Luiz Garcia e eu éramos editores do suplemento literário da “Tribuna da Imprensa” de Carlos Lacerda, quando apareceu na redação um desconhecido com um envelope: “São os originais de meu livro. Não sei se vale uma resenha”. Era Cony, com o “Ventre”. Valia, e como.

Já estava nesse romance de estreia com imagens fortes e uma inesperada contundência de linguagem um pouco da dissonância que iria marcar sua vida e obra — uma espécie de espírito de contradição que gostava de contestar expectativas óbvias e de não se permitir estacionar numa posição ideológica. Chegou a ser flagrado na esquerda, na direita e no centro, mas não por muito tempo.

Uma vez ele escreveu que, vizinhos de bairro, só nos encontrávamos nos aeroportos ou fora do Brasil. Num desses encontros a caminho de alguma palestra, perguntei que máscara ele ia usar na sua fala. Como não aceitava provocação nem de brincadeira, retrucou: “Eu uso a máscara do pessimismo e você, a do otimismo. Cada um se defende como pode da tentação contrária”.

À sua maneira, ele concordava enfim com o diagnóstico de Carpeaux.

O Globo, 10/01/2018