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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Afrânio Peixoto

RESPOSTA DO SR. AFRÂNIO PEIXOTO

Senhor:

Vossa presença aqui nada tem de surpreendente. Consideramos que ocupais agora um dos lugares que vos devem caber, por toda a parte onde a benemerência seja acatada. Cumprimos conosco, num dever de nossa honra, antes de vos agraciarmos com uma distinção.

Podereis passar sem nós; a Academia vos requestou. Nisto ela é bem feminina – que pecado feliz! – quando procura possuir todas as jóias ao seu alcance.
E, se os que a invejam, neste momento, fingem exigir razão prática de sua escolha, ela lhes confia que não conseguiu ainda divulgar diferença essencial entre ciências e letras, a não ser que umas se fazem com as outras, e estas, pela literatura – revelação do ambiente, do povo, da ocasião – incluídas assim no determinismo científico.

CIÊNCIA E LITERATURA

Nunca essas separações foram exclusivas no passado e nem o são ainda agora. Homero é acusado de ter escrito, em versos, um guia de viagens pelo Mediterrâneo: é a Odisséia. As Geórgicas são um tratado de meteorologia aplicada, de agricultura e economia rural, pedido por Mecenas a Virgílio, como tal ministro de hoje encomendaria livro de propaganda a um entendido. O poema de Lucrécio, sobre a natureza das coisas, é o prefácio encantador da ciência contemporânea. Ensinam os sábios a escrever aos letrados: Buffon define e esclarece o estilo; no Código Civil se exercita Stendhal; e Abel Hermant, o Saint-Simon da sociedade contemporânea, aprende na Introdução ao Estudo da Medicina Experimental, de um dos vossos colegas, que não teve culpa de inspirar toda uma literatura pedante, chamada naturalista, no fim do século passado. Tudo é comum à inteligência; o folclore, ocupação de literatos até ontem, é a fama,  de agora, estudo de etnografia. Reclama a história leis científicas, para se acreditar de verossímil; toma borla e capelo a filosofia, para parecer psicologia experimental.

Taine admitiu a possibilidade de uma história natural dos espíritos, regida, como a outra, por leis positivas; estudou Brunetière a evolução dos gêneros na literatura e o nosso João Ribeiro já se preocupa com as mutações ou variações repentinas das espécies literárias. Certo que os entendereis melhor do que o maior número dos literatos de oitiva. É tão medíocre expelir as ciências de entre as letras, como seria exigir que só se considerem estilistas aos que escrevam com um estilete. Já existem obras-primas datilografadas.

A tradição, que nos serviu de exemplo, no intuito dos que fundaram esta companhia, impôs em França a certeza de que “a glória das letras faz parte integrante e necessária de um povo”, e por isso, deliberadamente, ao lado dos fidalgos, prelados, chanceleres, militares e sábios, fez sentar os poetas, romancistas, historiadores e filólogos. Por que agora, no momento em que se admitiu a dignidade da condição destes, suprimir os outros, que os dignificaram num tempo em que, por vezes, os nobres e poderosos até de saber ler e escrever se desdouravam? É esta a razão de honra por que todas as glórias nacionais têm direito a uma representação entre acadêmicos. Príncipes, cardeais, ministros, almirantes, são aí recebidos como os homens de ciência mais transcendente ou especializada... Vicq-d’Azir, d’Alembert, Flourens, Littré, Lesseps, J. B. Dumas, Bertrand, Berthellot, Poincaré... foram aí festejados... Pasteur principalmente, que nem livros de ciência escrevera, e passou a vida a fazer bem maior e a construir glória mais duradoura. E não se cuidará que naquela terra, farta, sobre todas, de grandes homens, não sobrem poetas, romancistas, oradores e homens de teatro... com que preencher grêmio tão reduzido.

Também aqui sempre pensamos assim. No passado dos vossos confrades, nestes que vedes em torno, encontrareis alguns que não cometeram novelas nem poemas? Por que exigir de vós esses atentados? Lembra Renan que não foi aquela tragédia, trazida por Claude Bernard da província, que lhe abriu as portas da Academia...

Possuís talento mais raro e talvez melhor. A humanidade é agradecida, com excesso bem explicável, aos que a divertem. Nessa glória ruidosa dos artistas vai implicitamente a confissão da decepção e do tédio que vivem num mundo áspero e triste. Eles nos distraem com as suas imagens, figuras, enredos, rimas e melodias. conduzindo-nos fora da vida quotidiana, para a realidade melhor do sonho em que vive o nosso desejo. E tanto mais sentimos que o engano foi grande, porque o sonho é magnífico, mais nos deliciamos, e somos reconhecidos a esses sedutores que nos fazem crer um momento na ilusão.

Entretanto, ela esquece, ou não lhes rende a tempo a justiça da gratidão, àqueles que lhe preparam uma vida mais fácil e quase benigna, pela dominação de todas as forças naturais postas ao seu serviço, pela posse de todas as riquezas e proveitos do mundo ao alcance de sua utilidade, pelo conforto, saúde, segurança, com que, ao invés de um prazer efêmero, se tem uma tranqüilidade permanente. Chegará, porém, o tempo dos vossos. Quando, enfim, ela tiver consciência, volvendo os olhos para trás, essa humanidade doida que ainda agora se esquece numa festa breve e tumultuosa, refletirá sobre o que deve a vós, homens de ação.

Então, os que inventaram imagens e fábulas, e acharam algumas palavras, telas ou bronzes para as exprimir, valerão menos talvez do que os que lhe criaram a felicidade. Nesse dia, por vingança, não os excluireis: eles são o ornato da vida, necessário sempre, ainda quando sobra a abundância dos meios, a confiança da paz e a alegria da saúde.

DONS DE SENSIBILIDADE E DE CARÁTER

Quis a Academia Brasileira fazer esta justiça desde já. Por isso, tão solícita, vos acolheu.
Sucedeis a um poeta: até nisso ela marcou o propósito de firmar que se abrem aqui sucessões à inteligência e não à herança de colaterais ou de descendentes, na semelhança do espírito, como na ordem civil. Aliás, não seria difícil justificar uma contradição, tão da índole humana, como um sábio é o parente próximo de um poeta. No amor da natureza, e nas ânsias por seduzi-la ou por compreendê-la, há entre os dois apenas a diversidade dos meios. E não raro eles se encontram: Goethe não será exemplo singular. O vosso discurso é agora revelação nova. Vós sois, porém, como os grandes poetas que não fazem versos: nem sempre estes têm poesia e ela sobeja na vossa vida e na vossa obra.

Sois sentimental: basta ver-vos, para sentir que tendes coração terno e sentidos delicados.
Tendes a piedade religiosa que já fugiu do comum dos homens; chegais até ao fetichismo, e às vezes à superstição, que as mesmas mulheres do nosso tempo vão esquecendo. Enquanto resolveis difícil problema sanitário, na paz do vosso gabinete de trabalho, guarnecido de móveis de gosto e de quadros escolhidos, de um incensório oriental escapam-se meadas de fumo, que descrevem volutas azuis e arabescos caprichosos, e seduzem pelos sentidos a um deliqüescente bem-estar, e pela imaginação levam para a distância comprida do sonho; só vos prendeis à realidade se vos dão esse ambiente de poesia.

Por isso, do vosso instituto, perdido numa restinga de mangue, fizestes palácio encantado, como a fantasia dos califas nunca realizou algum no Oriente; na maravilha da construção arquitetônica não faltam entretanto os mínimos requintes de comodidade e de técnica: ele é o vosso grande retrato, objetivo e espiritual, traçado com a sinceridade dos que pensam realizar apenas uma idéia e refletem nas coisas a própria natureza. É nesse cenário, que preparastes para a vossa família intelectual, os discípulos, que passais os vossos mil e um dias, embevecidos e extáticos, na pesquisa da verdade e na contemplação da ciência.

Todo vós, na aparência externa e manifesta, esquiva e desprendida; bem trajado, mas sem propositado apuro no vestir; o precioso chapéu de palha desabado; os olhos tímidos e profundos, que olham de longe em cintilações; a palavra rara e sugestiva, mandando sem apelo, como quem aconselha e suplica; o perfil nítido e voluntário; a cabeleira basta, empoada precocemente pelo tempo... vos dão aspecto romântico e aventuroso, que contrasta com as certezas positivas de vossa vida de sábio, provocante como paradoxo vivo. É que sois um poeta desgarrado na ação, provando a plasticidade maravilhosa desse plasma do entendimento que nos faz o que queremos e dos outros o que soubermos querer.

É uma das vossas idéias favoritas, e pelas quais tendes triunfado na vida, que a vontade eficaz basta para suprir a todas as insuficiências das coisas e dos homens. Não escolheis os vossos comandados pelo favor enganoso do sentimento ou pelo concurso de provas falíveis; quaisquer que eles sejam, e os acasos da vida vo-los deparem, vós os fazeis bons, dedicados, inteligentes e capazes.

Não que o não fossem, ou não o sejam de antes, mas o faríeis, se até não fossem. É o método seguro das grandes vontades. Jesus elegeu em quaisquer os seus apóstolos. Improvisou Bonaparte os seus marechais. Tendes um seminário de sábios, que o não eram, não o seriam provavelmente, mas os fizestes, como vos fizestes, mudando talvez as vossas primeiras inclinações, denunciadas ainda nas aparências da vossa obra e até no aspecto de vossa pessoa.

Este poder absoluto da vontade, em que acreditais e que exerceis, é a vossa força e dela vos veio a glória. Falta-nos competência para discuti-la, no que tem de técnico; os nossos sapientes vizinhos da Academia de Medicina vos conferiram certamente essa honra, com os seus aplausos. Retemos apenas o traço forte de vontade, com que libertastes a nossa pátria do flagelo que mais de uma centena de milhar de vidas lhe consumira e por mais de meio século a injuriava diante do mundo civilizado; retenho o epíteto que vos conferiu nesse momento histórico o assombro e a admiração de alguém que vos compreendeu.

A CAMPANHA DO SANEAMENTO

Depois de guerrilhas intermináveis, de doestos e represálias, em que nos vimos sempre humilhados, as suas conveniências econômicas moveram os nossos vizinhos do Prata a procurar conciliação sanitária, de onde viriam outras, já que os novos processos de saneamento pareciam restituir a salubridade do Rio de Janeiro. Veio então enviada uma missão científica, para negociar. Os nossos representantes, e fostes um deles, asseguravam pela eficácia da profilaxia recente e recusavam as práticas antigas de desinfecção, nesse caso incômodas, onerosas e ineficazes. Os estrangeiros não achavam, numa campanha ainda em prova, elementos para tanta opinião. Como nos julgaram incapazes de tanta leviandade ou má-fé, devíamos ter razões cabais; e pois que não as declarávamos, cumpria obtê-las a todo o transe. A sós, convosco, um deles, em momento azado, vos interpelou sisudamente, sobre o mistério da vossa fé. Vós lhe destes então o vosso segredo. Ele é terrível, e está guardado até hoje. Pois que é a verdade, e ela vos honra, só conhecendo a grandeza do sacrifício que fizestes por nós, é que poderemos vos louvar, como mereceis, pelo benefício prestado.

Pretendia um sábio cubano que eram os mosquitos os agentes propagadores da febre amarela. Quando foi da ocupação militar da grande Antilha pelos americanos, tendo de um lado as antigas doutrinas, batidas e debatidas, que se revezavam, sem dar solução útil ao problema, e do outro pista nova e esperançada, seguiram por ela e lhe confirmaram a excelência. Devia a defesa sanitária ser feita, combatendo os mosquitos e privando-os de se infeccionarem nos doentes, para depois aos sãos não transmitirem a doença. Os ensaios realizados surtiram resultado surpreendente.

Para nós, apossados pelo mal havia tanto tempo, o caso parecia bem árduo e mais difícil. Governos passavam e desesperavam de resolvê-lo. Foi nesse momento que uma atilada perspicácia vos chamou à direção da saúde pública. Trazia o Presidente Rodrigues Alves nas suas promessas de administração a de sanear a capital do país, que dava internamente o exemplo da corrupção, e ao estrangeiro fazia justamente suspeitar de todo o Brasil. Antes de pretendermos lugar no mundo, cumpria prepararmo-nos para ele, com decência e confiança de civilizados. Qualquer sacrifício seria pequeno para tamanha aspiração. Pôs em vós o governo sua inabalável confiança e não mediu esforços nem provações para o êxito. Compreendestes logo que tais interesses em jogo e tão profunda fé em vosso critério exigiam experiência e observação que não possuíeis.

Não seria de sábio cega obstinação: só a dúvida que investiga e ensaia, para não duvidar mais, traz certezas úteis, embora às vezes relativas. Foi então que vos quisestes convencer, para convencerdes os outros, para salvardes o país da afronta e do luto. Foi então que permitistes a uma comissão de sábios europeus, que aqui viera estudar o mal, e trabalhava sob a vossa guarda, que ensaiasse, como outros já haviam feito nas Antilhas, in anima nobili. Aparecem sempre destemidos ou aventureiros que se expõem ao perigo vendo o proveito: foram informados dos riscos possíveis e prováveis, aquinhoados com um seguro material pelos azares da experiência, que seria grave e podia vir a ser funesta. Mosquitos infeccionados, que haviam picado doentes de febre amarela, foram postos à prova, nesses nobres animais de experiência. E a febre amarela, verdadeira, natural, autêntica, se declarou neles... Mais de um morreu...

“UM HOMEM...”

Até aí víeis surgir diante dos olhos pasmados uma verificação científica que vos infundia certeza prática e maior, de que seríeis capaz de redimir, por esse modo, a vossa pátria de flagelo assassino e degradante. Mas, quando se ultimou o sacrifício das vítimas imo¬ladas em holocausto a esse novo ídolo, feroz e canibal, por vezes, como os outros, a Ciência, para pesquisar ainda no cadáver as alterações estruturais que comprovam a doença e dão ao diagnóstico segurança incontrastável, esquecido que andáveis num delírio altruísta pela humanidade, tornastes à condição misérrima de homem, que sente e que sofre. Dos olhos vos escorriam lágrimas que empanavam a vista, e na mão vos tremia o bisturi de dissecção, recusando-se a prosseguir. Os vossos companheiros, sábios também, choravam e tremiam como vós... Nenhuma homenagem melhor poderíeis, homens fortes de ciência, prestar a essa humanidade, que às vezes esqueceis para servi-la melhor, do que no momento mesmo da posse da verdade salvadora de milhares de vidas, tontos de orgulho e de esperança, serdes obrigados à fraqueza do coração e ao temor da consciência, até curvar a fronte, e chorar, e tremer, pelas criaturas que sacrificastes ao bem comum.

Todos os dias reis e estadistas, industriais e aventureiros imprudentes e desastrados, causam a morte a milhares de homens na chacina bárbara das guerras, na ganância criminosa das empresas, na imprevidência tonta dos acidentes, sem responsabilidade, sem remorso. Mas vós, sacerdotes de uma religião, porque o deve ser a vossa medicina de desprendimento e de altruísmo, pelo bem de todos, pelo bem de cada um, a vós deve ter pesado muito e feito muito sofrer vos encontrardes diante da dolorosa necessidade. Estou que alguns dos vossos precoces cabelos brancos alvejaram nesse dia... A vossa consciência justa vos deve ter consolado de que éreis apenas sacrificador eleito pelo destino: fostes forçado a cumprir, uma vez mais, a velha lei da história, que exige, para a menor das conquistas na felicidade do homem, um pouco de sangue derramado. A remissão do pecado, a liberdade, a honra, a glória, a justiça, e até a mesma verdade, custam sangue... Resgate pago a uma sina violenta que nos persegue...

Mas porque sofrestes, tivestes o prêmio que não falta a toda sincera piedade. Do sangue das vítimas colhestes prova, que talvez faltasse de outra sorte, para conseguirdes o benefício imenso de uma redenção sanitária. Ganhastes a confiança, a tenacidade, a pertinácia, com que redimistes o Rio de Janeiro e ides redimindo todo o Brasil.

O sábio estrangeiro que, muitos anos antes destes dias felizes de hoje, vos ouvia em confissão para se convencer, quando ainda em meio da campanha já possuíeis a certeza do triunfo, só pôde traduzir o seu assombro e a sua admiração por esta palavra, que lhe ouvimos: – “Osvaldo Cruz... é um homem!”
É o epíteto mais belo, e o mais nobre, que o homem costuma dar ao seu semelhante. Talvez porque raríssimos deles o merecem.

Tem a ciência, pois, a sua poesia, áspera e forte, poesia violenta de ação, feita também às vezes de sofrimento, mas de vontade dominadora, outras muitas, diante da qual a da imaginação é frágil e efêmera, como sonho de criança.

Reunis, por conseguinte, todos os méritos que fazem grande o homem, orgulho da sua espécie: a sensibilidade com que no trato íntimo, na família, entre os amigos e os discípulos, colegas e subordinados, sois querido e venerado; a inteligência com que ides abrindo caminhos novos ao conhecimento, educando urna geração de sábios que já honram ao mestre, e serão ufania desta terra; a vontade, finalmente, com que em todos os dias de vossa vida ajuntais serviço novo e relevante aos que já nos prestastes e beneméritos, de salvação pública, por toda a parte, do Rio de Janeiro aos confins da Amazônia. Não receareis contraste.

A Academia Brasileira, que pretende ser o índice abreviado da cultura nacional, faltaria à sua nobre ambição, se não vos cobiçasse. E se vos tem hoje, não lhe deveis por isso gratidão; não o estranhará a ninguém; é porque tínheis aqui, desde muito, um lugar obrigado.

RAIMUNDO CORREIA

O poeta a quem sucedeis vos merecia. Deus fez diferentes, na aparência, as belas coisas e os grandes homens, para que a nossa faculdade de admirar não conhecesse o fastio. O coração e o es¬pírito de Raimundo Correia foram, de fato, uma das obras-primas da criação.

Alguns anos antes de Gonçalves Dias morrer, no naufrágio do Ville de Boulogne, nas costas do Maranhão, nascia por ali mesmo, a bordo do vapor S. Luís, Raimundo Correia.  Era predestinação. Se a nossa opaca inteligência não consegue achar o nexo dos acontecimentos, a simples associação deles nos impressiona como sinal persuasivo de que não é só tonto acaso que faz a sorte dos homens. Raimundo nasceu grande poeta, continuando o gênio do outro, também orgulho da sua terra.

Desde cedo se lhe revelou o estro, e tão espontâneo, que muitas vezes escrevia da escola, em verso, as cartas à família, evitando a prosa difícil, com a qual nós outros, do vulgo, mal nos entendemos. Tudo lhe era pretexto de poesia, e uma página aberta, em língua diferente, enquanto esperava aula ou fazia visita, logo era mudada em vernáculo; por isso tantas traduções se deparam entre os seus primeiros volumes, sem propósito nem preferência, impostas apenas pela força dos encontros.

Aos 19 anos publicava o livro de estréia, composto já de idade mais temporã, os Primeiros Sonhos. Pela ingenuidade da imitação, fatal de todos os começos, pela sinceridade tumultuosa e forçada da idade, talvez viesse a justiça que lhe fez o poeta, esquecendo-os, como aliás é sempre a sorte dos sonhos da puerícia; nenhum vestígio passou deles nas suas obras ulteriores.

Já em 1883, um ano depois de bacharel por São Paulo, as Sinfonias eram publicadas, e Raimundo Correia, aos vinte e três anos, aclamado poeta. Machado de Assis, antes de o apresentar ao público, com a indulgência de prefaciador, sempre paraninfo e portanto suspeito de parcial, afrontava a mais exigente crítica publicando na primeira das suas páginas uma das do poeta, o “Mal secreto”, que é obra-prima. Mais outra foi divulgada pela opinião, e ganhou mundo, até os confins do Brasil e de Portugal, mil vezes reimpressa, lida, recitada, e certo por muito mais tempo ainda, enquanto existir essa formosa língua portuguesa, de cuja alma suave e melancólica ela é expressão genuína. É esse famoso soneto “As pombas”, que está agora mesmo balbuciado pela vossa saudade, dentro do coração que os sonhos abandonam de ingratos, e a que não voltam mais, como voltam as pombas aos pombais...

Outras muitas, menos famosas, mas de valor igual, em que o poeta se vai revelando, ainda sob a influência dos mestres que lhe enlevaram a adolescência poética e que lhe ensinaram a voar... Banville, o domador dos ritmos e acrobata das rimas; Gautier, o colorista que pinta quadros vivos e paisagens sonoras; Baudelaire, quase satânico, às vezes, impregnado de um relento de pessimismo e de morte; Heine, que mistura o riso às lágrimas e acaso num verso frívolo soluça uma traição... foram seus mestres. Mais tarde os do Parnaso, Leconte de Lisle, Sully Prudhomme, Coppée, Heredia, que transmitiram à mocidade do tempo o culto da forma, única essência capaz de embalsamar a idéia, num transunto incorruptível e eterno, completaram a educação de Raimundo.

O estudo que lhe consagrais nesse momento, ou a esta face da sua obra, demonstra um conhecimento literário que nos envaidece, porque é prova ainda das afinidades de espírito entre o poeta e o sábio que aqui lhe sucede.

Raimundo dessa crisálida desprendeu-se por fim, para voar sozinho, na posse do seu pensamento próprio, da sua sensibilidade natural. Escreveu e publicou, em 1887, Versos e Versões e, em 1891, as Aleluias. Nenhum deles logrou o mesmo êxito no público, embora talvez melhores, revelando, diz o poeta, modestamente, “algum progresso e mais independência”; ficara o autor das Sinfonias, e pode ser que apenas para o maior número, o poeta d’“As pombas”. A multidão, sacudida num pasmo imprevisto, ou para uma admiração nova, confere logo o prêmio de um sinal ao herói ou ao poeta que a comove, e pelo qual, daí por diante, é reconhecido como soberano, que não se julga mais, que se admira sempre. A despeito de cem batalhas de gigantes, Bonaparte continuou o herói da campanha de Itália; Sully Prudhomme, mau grado de cinco volumes de poemas profundos, de divinas expressões de sentimento, foi toda a vida o poeta do “Vase brisé”. Raimundo, como os outros, não pôde tolerar bem esse julgamento definitivo, sem apelo, a seu favor embora, mas injusto para todas as possibilidades que sentia latejando dentro de si. Talvez por isso se estancasse ou lhe derivasse, agora tênue e sem ruído, a veia poética, íntima e para o próprio gozo, pois que a opinião se contentara com os primeiros versos felizes.

ELEIÇÃO DE ARTISTA

Pôs-se a revê-los. E “como em tudo há sempre o que corrigir”, é o poeta quem o diz, naquela adorável simplicidade tão sua, deu-se agora ao labor de aperfeiçoar a própria obra, aplaudida e consagrada.
Corrigir para Raimundo não era só emendar, muitas vezes era suprimir. As suas edições são, assim, corretas e diminuídas. Refez Pascal treze vezes uma das Provinciais e se escusa de ter deixado muito longa alguma delas, porque não teve tempo de fazê-la mais breve. Desse jeito, logo que o nosso poeta teve folga, começou a encurtar o vôo e até a aparar as asas. Numa seleção de Poesias, publicada em 1898, eliminou a maior parte das que compunham os três livros anteriores, e, das que restaram e raras subseqüentes, fez esta edição, depurada, sucessivamente, nas que se lhe seguiram, em 1906 e 1910.

Todas foram aferidas por exigências crescentes de perfeição. Até “As pombas” e o “Mal secreto”, havidos unanimemente como obras-primas, não se privaram de acerto. Pouco escutava o aplauso alheio quando não coincidia com a própria sentença.

Compreendia que há admirações humilhantes: as de toda a gente, em que o voto de mau gosto, bem numeroso, se mistura ao louvor tão raro, da capacidade. A unanimidade de aplauso é prova, certa, de mediocridade, que deixa de contentar a alguns para satisfazer a todo o mundo. Até o ouro, para circular, tem de se aviltar e diminuir em liga espúria.

Por isso o orgulho dos artistas, e são grandes somente os que têm muito, não sofra a deprimente popularidade. Renan diz de Flaubert que se consolou do êxito de Mme. Bovary, louvada universalmente, publicando a Tentação de Santo Antão, que raros podiam gostar. Na centena de poesias que escolheu, distinguiu Raimundo apenas umas dez, das que o consagraram com as Sinfonias. Machado de Assis, gosto fino e juízo difícil, entre as páginas do livro que serviam para dar o quilate do artista, cita mais de uma dezena: Raimundo, – admirai esta abnegação rara de autor que a própria obra aplaudida rejeita, se lhe descobre defeito! – não atendeu ao mesmo Machado, e delas apenas duas, entre as que lograram gabos, passaram adiante. Outras não louvadas aí estão, porém, justamente para mostrar aquele pundonor de grande artista que nem ao público que o festeja, ou ao crítico que lhe realça os melhores passos, é submisso.

Só ele é o árbitro da perfeição que deseja. Não conheço, nos nossos costumes, exemplo igual de probidade literária.
À medida que avançava na vida, experimentada a dureza dos homens e o desencontro dos sucessos, perdia a exuberância natural de se exprimir e ganhava aquela profundeza dolorosa que confere a meditação. Ia-se afinando, depurado, numa essência condensada e forte.

Há versos seus, há estrofes suas, que se desdobrariam em poema ou em dissertação filosófica. Só escreve demais quem não sabe bem o que quer dizer, pouco ou quase nada tem que dizer. Grande artista é o que dá à sua idéia a forma precisa, como túnica apenas discreta que lhe molde exatamente a nudez, antes para a denunciar do que para a esconder. O que sobra de tela, é imperfeição, se é sobejo.

POETA-FILÓSOFO

E Raimundo, além de artista raro, sincero para não recorrer ao artifício das palavras escusadas, e honesto para produzir a notação exata e devida, era ao mesmo tempo meditativo e pensador. Poeta que pensa? Parece que não é o ofício deles. Basta que produzam emoções, pelo aspecto exterior das palavras, pela cadência do metro, jogo da rima, música dos sons.
Foi Raimundo este sensitivo e aquele refletido, alternativa¬mente dominante na juventude e na madureza da sua obra.

Se, como dizeis, com tanta felicidade, existe em seus versos todo um “evangelho do amor”, o “Cântico dos Cânticos”, não está longe a dúvida e reponta a negação do Eclesiastes. Com efeito, desde os primeiros versos, se lhe descobre o vinco doloroso da meditação, que se viria a afundar, na ruga permanente que lhe trouxe a experiência do sofrimento.

A sua filosofia, se esta palavra não é presumida para natureza tão simples e tão estranha a qualquer ênfase, é a da resignação mesmo no ceticismo, ainda no pessimismo mais desenganado. A realidade quase não existe, talvez, apenas uma aparência... Assim tudo é sonho. Íxion hesita, até abraçando a figura amada:

Minha ventura, ó céus, é tão profunda,
Tão larga e tanta, que eu duvido dela!
E a dúvida só não é coerente porque, de fato, se engana! Aquele “Sonho turco” em que a Fortuna mostra e confere a um miserável Trácio adormecido todos os impérios, todos os tesouros, todos os amores, e que se esvai com o despertar, é igual daquele em que vive, acordado, o sultão de Constantinopla:

“Mal hajas tu, mendaz Fortuna! Certo,
Que enorme dita, ou desventura enorme
É tudo um sonho!” – diz Nasah enfim.
“Tu fazes que Mamu sonhe desperto
O que sonha um vil Trácio enquanto dorme,
E de ambos vives a zombar assim!”

E se a dúvida não é permitida e alguma coisa existe, é a dor, que é imortal, de jeito que

... Por um só prazer, mesquinho e raro,
A desventura cobra-se tão caro,
Que aos tristes o menor prazer assusta.

E os tristes somos todos nós, o mundo todo, porque

Tristeza funda, indefinida e vaga
Que o coração te esmaga
Todos a sentem, mas ninguém a exprime...

Contudo, se a única certeza relativa é a dor, e a felicidade desejada vem da comparação de um mal menor do que o dos outros,

Entre dois homens que o fado
Juntou nenhum deles diz,
Mas cada um há porfiado
Com o outro em ser mais feliz.

Depois... nenhum deles diz,
Mas cada um, desanimado,
Já se julga bem feliz
Com ser menos desgraçado...

Não importa, a vida deve ser vivida como é; a razão que deu ao homem a consciência do sofrimento não o deve furtar ao dever de suportá-lo.
Nesta antinomia de pena imanente e de uma resignação necessária se debate todo o coração suscetível e toda a sutil inteligência de Raimundo Correia. Ele a resume nos versos com que abre o seu volume final, como uma profissão de fé:

Viver! Eu sei que a alma chora
E a vida é só dor ingrata,
Pranto, que a não alivia,
Olhos, que o estão a verter...
Sofra o coração, embora!
Sofra! Mas viva! Mas bata

Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!

Essa é a alma, resignada, de sua poesia.

SÃO RAIMUNDO

Raimundo não era, porém, só pensador cuja concepção do mundo, idealista e, portanto, cética e pessimista na realidade, o tornasse incompatível com ele ou contraditório consigo mesmo. Era um ser bom, sensível, impressionável, que temperava a visão filosófica com a piedade poética, de onde, no seu niilismo intelectual, uma resignação ativa. E nada convencerá melhor dessa complexidade de coração e espírito, exercendo-se na personalidade, do que a sua mesma história.

Não lhe foi a vida fácil nem alegre. Se logo depois de formado encontrou no coração da esposa um elemento de felicidade, a incerteza e falibilidade dos meios tranqüilos de subsistência deixavam-lhe sempre travo amargo nos melhores momentos. Lembrastes fielmente todos os acidentes e desencontros da sua carreira. Promotor público em São João da Barra, juiz municipal em Vassou¬ras e em São Gonçalo de Sapucaí, secretário da Província do Rio de Janeiro, professor da Escola de Direito de Ouro Preto, diretor de Fazenda em Minas, professor e vice-diretor do Ginásio de Petrópolis, adido à Legação brasileira em Lisboa, finalmente pretor na Capital Federal e daí, agora tranqüila e assegurada a vida, nas promoções devidas, juiz do crime e juiz do cível... Esses avatares todos, às vezes, atormentados, interrompidos por pausas de inquietação e desesperança, não raro pelo sofrimento físico... Imaginai no que seria isso para a alma boa, mansa, delicada de Raimundo. Só lhe valeu, através dos seus passos, a companheira que elegera na vida, e que foi, a um tempo, sua esposa, sua irmã e sua mãe. Protegeu-o e guiou-o na vida, contra a adversidade, consolou-o e animou-o entre os sofrimentos, e por ela e por causa dela, Raimundo viveu e se conservou para nós.

Eu sei que molesto a delicadeza de um grande sentimento na indiscrição destas palavras, mas não cumpriria a minha tarefa de louvar hoje aqui a Raimundo Correia, se não associa-se nesta homenagem aquela a quem nós todos, os que conhecemos e admiramos o poeta, rendemos o respeito que inspira e merece uma grande virtude.

Só compreendereis o que foi essa longa tortura da vida para Raimundo, se lhe lembrardes a sensibilidade extrema e suscetível... Sensibilidade que vibrava, meiga e dolorosa, pelas penas do mundo, pelas mágoas das criaturas e até pela tristeza das coisas. Vede alguns traços.
Vivia em São Paulo, ainda estudante, quando certo dia soube¬ram os seus íntimos que ia estrear bonita roupa nova, mas com o chapéu muito usado, que não o largava. Os amigos, em troça, Valentim Magalhães, Silva Jardim, Assis Brasil..., intimaram a que comprasse outro. Faltava dinheiro, mas logo que a mesada próxima chegasse, seriam satisfeitos. Foi adiada a estréia. Tanto se ocuparam com isso, que um dia o poeta lhes anunciou o acontecimento esperado: já poderiam ir procurar o chapéu novo.

Foram todos, e Raimundo ensaiou um, bem chibante, que iria com o torno, comprou-o, e ele mesmo o conduziu para casa. Ao outro dia, na Faculdade, surpresa geral: Raimundo aparece mudado de trajo, mas ainda com o antigo chapéu... Distração? algum roubo? desastre? – e se aproximaram, indagadores. No seu círculo restrito, explicou. Ia sair, pronto, de chapéu novo na cabeça, quando, ao fechar a porta do quarto, deu com os olhos... no outro: triste, mudado de cor, puído e esgarçado na fita, que o olhava, abandonado no cabide. Parecia dizer-lhe... “É assim mesmo, acompanhei-te fielmente, por soalheiras e garoas, pensei e sofri contigo, longos meses, e agora, no dia de tua glória, em que vestes uma bela fatiota nova, que vai ser admirada e invejada, é o outro... um desconhecido, estranho, apenas adquirido ontem, que tu preferes...” Não resistiu: entrou, no cabide pendurou o chapéu novo, tomando o velho; e estava com ele, alegre, passeando-o pela última vez, no triunfo da roupa nova, consolando-o, enfim, da irremovível decadência... Haveria sempre tempo para a mocidade e para a fortuna aparecerem e triunfarem.

Muito mais tarde, já magistrado na Capital, não mudara. Tratava-se num consultório de médico,  de magrém extrema, de nervos cansados e doentes, e um dia toma à parte o clínico, e diz, seriamente, que o quer consultar, para um amigo. Em sua casinha de Niterói, onde morava, tinha quintal e havia nele um pé de sabugueiro, ao qual criara amizade... Era tão confiado o pobrezinho que se debruçara para dentro de sua janela, olhando-o com as florezinhas brancas, penduradas na ponta dos ramos... Mais alguns dias e já não poderia fechar a janela. Pois bem, notara que começava a adoecer... as folhas amareleciam e as flores pendiam flácidas nos galhos... Tudo era grave em Raimundo; ele consultava sobre o seu amigo, de tal jeito, que o médico não se recusou a receitar, com essa inconsciência, tão geral, com que damos e tomamos receitas... Adubos, terra revolvida, água principalmente.

Dias depois volveu triste: tinha executado as prescrições e não surtira efeito o remédio. Seria possível que lhe morresse o amigo? Então, esse imenso progresso da ciência, de que tanto se enchia a boca, dava nisto? Ah!... se ele vos conhecesse... e pudesse imaginar na admiração nobre que lhe votais... ter-vos-ia consultado! Em falta de outro apelava ainda para o mesmo clínico. Não lhe deixasse morrer o pobrezinho. Parecia-lhe todos os dias que as florinhas brancas, quase murchas nas hastes, se despediam, e sem uma queixa, resignadas. Doía-lhe mais ainda a confiança que empregaram tão mal nele, que de nada lhes prestava... Desse-lhe outro remédio... Sabeis como a ignorância da causa e da natureza das doenças torna a terapêutica mais categórica... Guano, nitro, água ainda, bastante água...

O muito amor de Raimundo valera mais que a medicina. Tanto que desesperou dos recursos dos outros, que supusera capazes, dedicou-se ele mesmo ao sabugueiro. Pôs-se a remexer e a sondar a terra, cautelosamente, para não magoar as raízes, e lá embaixo encontrou um corpo duro. Cavou... era uma enorme pedra, que impedia a raiz mestra de prosseguir... retirou-a, repôs a terra no lugar e, daí a dias, já não podia mais fechar a janela, porque a gratidão do sabugueiro, reflorido, lhe entrava alegre pelo quarto.

Não deveis rir... Com a mesma sinceridade falou São Francisco de Assis às irmãs andorinhas e ao irmão lobo, e eles, os brutos, lhe ouviram a voz e se amansaram para o atender... Há uma afinidade secreta entre os obscuros sentimentos das coisas e das criaturas e os corações capazes de os entender. Somente é preciso que o coração seja simples, seja bom, seja grande, e colocado bem alto, para ser acessível. Como hão de os nossos, mesquinhos, terra-a-terra, sentir e, compreender isso? Passarão sobre nós, despercebidas, as vibrações do éter, que comunicam espaços indefinidos... a ponta elevada das antenas as ouve, entretanto, e no-las transmite em fórmula ordinária, compreensível pela nossa vulgaridade. As crianças, os poetas e os santos, que não duvidam, realizam esse milagre de não contarem com uma aparência enganosa e de a substituírem pela certeza efetiva com que, pelo sonho, pela imaginação, pela fé, tudo é possível.

Mas não só as coisas e as criaturas de Deus impressionavam a Raimundo Correia, os homens principalmente. A sua bondade, a sua pureza, a sua simplicidade, no trato da família e da sociedade, mereciam bem que se lhe chamasse, como alguns o fizeram, São Raimundo. Um dia em que assim me exprimi a seu respeito, diante de Aluísio Azevedo, em Nápoles, reivindicou o romancista a prioridade desse apelido, que supunha de sua invenção. Formulado ou não, era de todos os que privaram com Raimundo.

For isso, nas suas funções públicas, não houve juiz mais honesto, mais reto, mais justo. Vós lhe prestais, confirmando-o, alta e devida homenagem. E não só no momento sagrado da sentença, mas no trato quotidiano da magistratura, era a mesma isenção, o mesmo desprendimento, a mesma brandura. As custas, contra o hábito do foro, eram estritamente as do regimento, quando as havia, e isso num tempo em que ainda vivia na penúria. Sempre que a sua intervenção privada podia defender o órfão, acomodar o esposo, obter o acordo dos herdeiros e a paz da família, esquecia-se de que era a justiça cega e passiva, para só cuidar em que a bondade deve ser diligente.

Certa ocasião, presidia sessão de júri, com aquela severidade sem dureza, que era a sua compostura no cumprimento do dever. Assassino confesso, por um dos fáceis mistérios da incapacidade ordinária desse tribunal popular, a despeito de acusação esmagadora e de defesa sem calor, viu-se absolvido, porque os quesitos foram todos negados e o réu declarado inocente, por unanimidade. Tinha apenas o juiz, conforme a sua obrigação, de julgar pelo veredicto do conselho e de absolver o acusado, sem apelação, imediatamente. Proferindo a sentença, enquanto se lavrava o mandado de soltura, Raimundo falou. A princípio os homens apaixonados ou indiferentes começaram a sorrir do discurso que se afigurava exortação à virtude.

Dizia Raimundo que o acusado fora havido como inocente, pela justiça dos homens. Só ele, na sua consciência, e Deus, saberiam se esta, de fato, era a justiça. Porque uma se pode evitar; à outra, no foro íntimo de cada um, no temor do julgamento final, ninguém escapa. Considerasse, pois. Se, com efeito, nada devia, humildemente lhe pedia perdão, pela sociedade enganada, da injúria que lhe fizeram, do que sofrera, até esse dia de reabilitação. Mas, se era culpado, embora solto e livre pelos homens, continuava preso e seria condenado por um tribunal infalível, ainda na terra e talvez além dela. Havia, porém, um meio de se livrar dessa condenação e dessa pena. Era reparar, com o bem, o mal feito, todos os dias da vida, dedicado a essa redenção demorada, mas certa, com que Deus permite na sua misericórdia que se expiem todas as culpas... No seguimento da oração, as palavras sem artifício, mas comoventes pela simplicidade posta ao alcance de rude e curto entendimento, dissiparam o riso, deram às fisionomias austeridade súbita e em pouco o coração opresso se desafogava numa umidade quente e boa de lágrimas. Por fim, todos choravam.

Não sei se estas lágrimas salvaram para a virtude um criminoso e se os homens duros não volveram aos erros antigos: sei que exemplares de humanidade como este são capazes de um efeito, momentâneo embora, quase absurdo, mas provado e real, de nos fazer acreditar que a perfeição é possível neste mundo. Só esta consolação basta, para as almas sensíveis, de muita repugnância e muita mágoa, pela vida afora.

A HERANÇA DE RAIMUNDO CORREIA

Dono daquela alta inteligência que pelo idealismo transcendente chegara só a admitir a ilusão da felicidade e apenas pela experiência a realidade da dor eterna, desta sublime bondade que amava talvez o próprio sofrimento e atingia a resignação bastante para viver, fareis a justiça de concluir que Raimundo Correia foi o homem da sua obra, e que nos seus livros, como na sua vida, há uma concordância inteira e perfeita entre o coração de um e a razão de outro. E não sei deles qual o maior, porque ambos são admiráveis, porque só um talvez existe, o grande homem, de que o grande poeta foi retrato fiel, que lhe conservará a memória, por muito tempo, quente e viva.

Nós somos, por agora, os zeladores dela, como aqueles que o amaram e o admiraram, muito e por último, sem discrepância, como era devido a tamanha exceção. A necessidade, bem humana, de preencher um vazio que ficara, deparou-nos, porém, o ensejo de um mérito excepcional com que honrá-la: nenhuma homenagem melhor prestaríamos à memória de Raimundo Correia do que vos darmos aqui o lugar dele. Também nenhuma palavra vos saudaria melhor do que a confissão íntima das razões desta escolha.

Sede bem-vindo.