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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Tarcísio Padilha

DISCURSO DO SR. TARCÍSIO PADILHA

Um menino ouvia rádio, sem cessar, até que a isso fosse compelido por sua mãe. E ele ouvia um simples sanfoneiro. Aos cinco anos recebeu de presente um acordeom. E, sem professor, aprendeu a tocá-lo por conta própria. E dedilhava o seu novo brinquedo no portão de sua casa, em Laranjeiras. Até que o levaram a se exibir numa quermesse que pretendia levantar fundos para a construção da igreja do Cristo Redentor. O hoje mestre do jornalismo e da música, Luiz Paulo Horta, acadêmico, descendente de José de Alencar e do Visconde de Ouro Preto, disse à época a respeito: “sempre penso em invocar esta cena quando chegar ao Juízo Final. Ajudei a construir uma igreja!”

Acadêmico Luiz Paulo de Alencar Parreiras Horta:

Vossa vida ganhou novo impulso musical, quando, aos oito anos, recebestes um piano de presente de vosso avô paterno, Paulo Parreiras Horta, médico pesquisador que trabalhou com Oswaldo Cruz. Frise-se que a vossa avó materna era excelente pianista e o vosso pai, apaixonado por ópera.

Ao ver o neto dedilhando com agilidade o piano, o generoso avô aconselhou-vos a estudar com Magda Tagliaferrro. A família, com temor pragmático de que um artista não teria condições de se sustentar, esfriou a sugestão. O que não vos impediu de seguir em frente com a vossa vocação e frequentar a Pro Arte. E assim, ignorando os conselhos divorciados de vosso pendor, tocáveis de ouvido Chopin, sinfonias de Beethoven, os concertos de Brandenburgo.

Aos dezessete anos, sobreveio uma situação-limite de que jamais vos recuperastes completamente: a perda de vossa mãe. Naquele então, começastes o curso de direito, sem convicção, ou qualquer laivo de entusiasmo. No horizonte, uma nova luz vos atraiu – o jornalismo. Com armas e bagagens partistes para o novo desafio ao qual vos mantendes fiel há quarenta e cinco anos. Registre-se que, desde os dez anos, vínheis vos devotando à leitura com afinco, a revelar as duas faces de vossa vida intelectual e profissional articuladas: as letras e o jornalismo, numa imbricação indissociável.

Sobre a nova vida de jornalista, escrevestes: “por incrível que pareça, foi a minha salvação: foi um fio-terra, num período de angústia e desorientação”.

Outro dado relevante viria se somar ao ingresso nas lides impressas: a Rua da Matriz. Deram-se dois encontros decisivos, o primeiro com a família Barretto Filho, cujo paterfamiliae haveria de se tornar o vosso mestre inconteste, ao longo de toda a vida, em que pese a diferença de trinta anos entre vós.  José Barretto Filho, professor e escritor de fôlego, era homem de vasta cultura e superior inteligência, que tem sua biografia condecorada com um texto sobre a sofrida correspondência entre Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima, um belo e consistente estudo sobre Machado de Assis (a merecer reedição), além de romances e ensaios de múltipla natureza. Este ano se celebram os cem anos de seu nascimento. Professor da PUC, jurista de raro talento, educador, filósofo e historiador da cultura hindu, dele fui colega no Conselho Federal de Educação e no magistério superior e posso testemunhar a grande lacuna que significou o seu desaparecimento. Pois foi ele quem orientou em vosso percurso intelectual os passos mais consistentes, designadamente na problemática filosófica e nas questões de fronteira entre a filosofia e a religião.

Entre vós e Barretto Filho havia uma geração de diferença o que jamais constituiu óbice a uma relação intelectual e espiritual particularmente frutífera. O Oriente perpassava a Weltanschauung do velho mestre. Para vós, o Oriente, longe de vos distanciar de vossas convicções mais impregnadas da fé em que fostes educados, vos sussurrava um fenômeno religioso totalmente despojado da rotina, do hábito. É que, por vezes, o cristianismo poreja em alguns fiéis uma espécie de banalização indevida, longe da solidez teórica e espiritual que herdamos dos grandes luminares, designadamente dos místicos que, segundo Henri Bergson, eram dotados de um bom senso superior. Dissestes certa feita que foi nas tradições mais profundas do Oriente que havíeis encontrado o vosso nervo metafísico. É que tais descobertas reveladoras não se haviam submetido ao dogmatismo da razão, ou melhor, a um racionalismo pretensioso e mesmo pueril. O mistério conservou toda a sua inteireza em vosso espírito e vos propiciou uma abertura de espírito, sem a qual, nem a filosofia, nem a religião, nos permitem respirar o ar puro de uma verdade que para nós acena como forte luz a balizar nossos caminhos. Mas o velho Barretto haveria de vos ensejar outro encontro decisivo para a vossa vida, com Cecília, dileta filha do mestre. Os Barreto moravam perto da vossa residência. Rua surpreendente, porquanto nela habitavam famílias particularmente numerosas. Além dos Barreto, que tinham doze filhos, os Lacombe abrigaram um pequeno clube de treze filhos e os Assis Ribeiro doze e vós éreis nove irmãos. Pudera, era a Rua da Matriz!

Cecília, filha de Barretinho, como o chamávamos, era toda graça e pureza angélica. Ela e vós vos destes às mãos e percorrestes um caminho pleno de felicidade, até que o Senhor a chamou para o seu convívio. Um ilustre monge me disse recentemente que a presença de Cecília no Colégio Santo Bento foi uma luz que lá penetrou profundamente e deixou marcas indeléveis.  

A perda de vossa mãe vos fez com que vos afastastes da fé familiar. Vosso pai quase se tornou monge beneditino, ao tempo em que uma leva de homens talentosos tomou hábitos, como Dom Marcos Barbosa, Dom Irineu Pena (há pouco falecido, aos 92 anos), Dom João Evangelista, oriundos de profissões diversas. Vossa formação católica sofreu abalos e vos levou à contestação radical e ao cultivo do marxismo, à época quase inevitável. Era o vosso tributo  a um sarampo ideológico, à época, manifestamente epidêmico.

A filosofia fez parte de vosso cardápio, mas alguma voz vos sibilara que o racionalismo não dava conta das profundas indagações do espírito humano. Seria talvez uma espécie de geometria do espírito, e não o seguro condutor da inteligência ao núcleo dos problemas essenciais com que se defronta o homem. A razão raciocinante e suas deficiências vos conduziram intuitivamente a dela vos apartar em suas pretensões excessivas à explicação do real em sua inteireza. Isto sem jamais negar o valor da inteligência, em seu sentido etimológico.

É quando ingressa em vossa vida intelectual e espiritual o casal Maritain, cujos livros à época eram muito lidos nos meios católicos. Raissa Maritain, em Les grandes amitiés, traça um retrato fidedigno das oscilações espirituais e das conquistas do chamado Renouveau Catholique. Isto após o difícil momento existencial vivido por Jacques e Raissa, no Jardin des Plantes. Ali, bem perto da casa em que Peter Wust se hospedou para frequentar os intelectuais católicos franceses, concluíram os jovens pensadores que, se a vida carecesse de sentido, como então acreditavam, nada mais racional do que pôr fim à existência. O gélido pacto de morte se viu superado pelo fogo da fé que incendiou suas almas jovens.  

Adiante se dará a ruptura dos intelectuais católicos com o historicismo impositivo e mesmo uma avaliação desfavorável da preeminência da própria história. Delineando o perfil dos sorbonards, Raissa escreveu: “a história tornara-se para eles uma espécie de ciência-rainha, que herdava, sem poder carregá-los, todos os direitos da metafísica repudiada; e eles ainda a tornaram mais arrogante ao pretender transformá-la em ciência exata, cobrando dela a explicação definitiva da vida do pensamento, através de uma pesquisa das fontes que fugira sem fim de causa acidental em causa acidental”.  
  
Deu-se então o encontro com o fogoso Léon Bloy  que, em vez de teoria, trazia o seu compromisso sem volta com a plena doação de seu viver ao Caminho, à Verdade e à Vida.  Vós dissestes que Léon Boy “não era uma teoria, e sim uma grande verdade de carne e osso”.

A decepção com o racionalismo vos fez volver os olhos para a vossa infância, quando, deslumbrado, observáveis as formigas e aranhas do jardim e o barulho dos bambus sacudidos pelo vento que deixava vossa alma em enlevado estado poético.

Cabe aqui devolver-vos a palavra para narrardes o milagre de uma descoberta transcendente que vivenciastes: “passeando uma tarde pelo terraço de nossa casa, notei que o brilho do sol poente e a luz pálida do crepúsculo se combinavam, imprimindo à aproximação da noite uma beleza fora do comum e um encanto desconhecido. As próprias paredes da casa vizinha pareceram transfiguradas. Erguendo o véu da vulgaridade que envolve o mundo cotidiano, seria acaso o poente o mago autor desse milagre? Não. Eu bem discernia a causa de tudo na impressão produzida em minh´alma por esse espetáculo: aquela visão de beleza eclipsara a minha consciência de mim mesmo. Até então, ao ritmo diário da vida, o Eu me atravancava a consciência, alterando e encobrindo toda a perspectiva. Naquele instante, ao contrário, esse Eu passara para o segundo plano, e pude então distinguir o mundo sob seu verdadeiro aspecto. Tudo nele cintilava de beleza e de alegria. Morrera a vulgaridade”.

É um instante privilegiado que experimentastes e que fala fundamente da densidade do mistério que se aninha no mais recôndito de nosso ser. Daí vossa visão do cristianismo que “não foi inventado para ser o governo do mundo”, porque “continua a ser um mistério”. Para “penetrar esse mistério (...) o orgulho da inteligência é um obstáculo real”.

A força gravitacional da imanência não se aninhara em vossa alma, mesmo em instantes cinzelados pelos apelos da desesperança. É que uma inspiração maior se alojara nas fímbrias do vosso ser a falar de valores superiores. Como olvidar o pensamento atual de Jean Baudrillard: “o velho sistema de valores substituído pela troca generalizada de mercadorias só nos levou à impossibilidade de troca”?
O trecho de vossa experiência quase mística é o início de uma caminhada, prenúncio de um encontro definitivo com a fonte única de toda a inteligibilidade e de toda a bondade. É todo um roteiro ajustado à forte palavra de São João da Cruz: “para que possa ser tudo, deseje ser nada. Para que possa ter tudo, deseje ter nada”.

Não se cuida aqui de despojar o homem de sua dignidade, de sua autonomia, de sua liberdade. Menos ainda de lhe cortar as asas para os grandes voos existenciais. E sim de retirar-lhe os grilhões que o prendem à epiderme da realidade, às conjunturas passageiras e fugazes que nos desviam o olhar do genuíno foco – o núcleo do nosso próprio ser, aquele que nos permite uma aproximação ontológica com o outro e, sem a qual, a vida fenece, se estiola e mesmo murcha. Bem sei que vós subscreveríeis tais veredas conducentes ao grande sertão que nos espera (rosianamente falando), o plano em que nosso destino poderá superpor-se à nossa vocação.

O novo século nos vem revelando um mundo conexo e interdependente. É o momento de homens e mulheres embebidos numa visão humanista forcejarem por tornar mais amiudado o diálogo interpessoal e entre nações aptos a lograrem o entendimento, a concórdia e a paz. A voz dos humanistas se faz crescentemente necessária.

Se for verdade que o pensar e o ler vivem e respiram uma circularidade mutuamente enriquecedora, cabe perquirir o sulco de vossas leituras. Voraz leitor sempre fostes, desde o dealbar de vossa vida intelectual. Aos dez anos, a história romana desfilava seus capítulos em vosso espírito ávido de abarcar o sedutor universo à vossa volta.

A filosofia que temos depende do filósofo que somos, repetia Georg Simmel, e encontrá-la no recesso do nosso ser implica em acompanhar delicadamente os momentos em que a criação começa a fazer morada em nosso espírito, sem nos darmos conta das sementes que se vão plantando sub-repticiamente em nosso espírito.

Quais teriam sido as sementes que se alojaram nas dobras de vossa alma? Vós mencionastes a trindade universal do vosso mundo de leituras, Cervantes, Dostoievski e Thomas Mann. Escritores de ideias (mesmo Cervantes) abriram de par em par as portas para a complexidade da alma humana, apresentando-a em suas células mais recônditas, por vezes com uma tocante simplicidade.
O romance Dom Quixote talvez seja uma espécie de introdução quase obrigatória para se penetrar nos recantos mais profundos da alma humana, como que sintetizando a bellum intestinum entre o realismo e o sonho, o racionalismo e a livre imaginação, a filosofia lastreada no puro bom senso e aquela que se abre ao mistério e aos desafios das dúvidas que precedem as adesões à busca de horizontes sem limites, da prosa que poetiza as belezas do existir.

Páginas de Dostoievski nos falam de uma sofrida existência imersa em tragédias cercadas de lances do cotidiano, em que emerge, com frequência, uma abertura de almas, com diálogos de raro alcance ontológico. Vós sentistes o baque causado pela leitura de O Idiota do escritor russo. E não resististes à tentação de ler muitas outras obras do romancista russo, dentre as quais há que citar Os irmãos Karamazov e Crime e Castigo. Estavam lançadas as bases sólidas para outras buscas que geraram o jornalismo literário que encarnais com aisance inconfundível.

A atração pela obra de Thomas Mann, vós o confessais sem rebuços, promanou da vossa paixão pela música. O escritor alemão, que abandonou a Alemanha para fugir da tirania dominante no País, e que haveria de horrorizar o mundo inteiro, proferiu, em Zurique, uma conferência intitulada “Sofrimentos e grandeza de Richard Wagner”. A fúria despertada pelo pronunciamento do escritor levou-o a buscar abrigo no exterior.

Mais tarde, Thomas Mann publicaria o seu último livro, o famoso Doktor Faustus, em que o herói, Adrian Leverkuhn, é um compositor em crise existencial, vítima de impiedosa sífilis (vós vistes aí o símbolo para a doença da própria Alemanha). É a barganha faustiana. No entanto, o que importa é frisar que o aureolado romancista alemão buscava um novo sistema de composição. O que gerou um sério problema, pois fora perseguir um sistema de composição que outro não era senão o dodecafonismo, a música dos 12 sons. Sobreveio a acusação de plágio de Schoenberg, quando a desarmonia entre dois gigantes entrou pela porta dos fundos.

Na verdade, vós avaliastes Thomas Mann como uma mistura de lirismo com uma certa seriedade alemã que havíeis encontrado na música. Fostes pinçar no século XVII (no vosso entender mais rico do que o subsequente) Fénelon, místico que escreve com a dignidade de um Racine, assentistes. Outro místico vos atraiu a atenção, Newman, que sacudiu os ingleses com a sua conversão ao catolicismo, ao abandonar a Igreja Anglicana, após anos de estudo, reflexão crítica e permanente oração.

Podemos mencionar, em obediência ao paralelismo música/literatura, vossa admiração por Jane Austen. Escrevestes: ela “parece realizar nas letras um certo ideal mozartiano – leveza, graça, espírito, tudo isso embrulhado no mais puro classicismo. E como o classicismo é necessário para temperar os nossos ardores românticos”, concluístes. Chesterton e seu estilo original atraíram vossa atenção pela surpresas dos paradoxos criativos e a mestria de uma dialética primorosa.

Frequentastes famosos romancistas católicos, como François Mauriac, para quem “o romancista é, de todos os homens, aquele que mais se parece com Deus: é o imitador de Deus”, além de George Bernanos e Graham Green. Sem mencionar aquele que fundamente penetrou na alma de várias gerações pela radicalidade de seu compromisso com a fé, o já citado Léon Bloy. A turbulenta e vivaz caminhada espiritual do trágico romancista constituiu para vós “uma aventura pessoal de que Eu não conheço limites”. Em vosso baú de admirações há um lugar especial para Jorge Luís Borges.
Fixando o olhar em nossa literatura, avulta com vigor em vossa admiração Machado de Assis, o verdadeiro milagre brasileiro e fundador da cadeira que hoje passareis a ocupar.

Lima Barreto é também objeto de vossa atenção e integra a trindade literária tão identificada com a alma da Cidade Maravilhosa, juntamente com Machado de Assis,  Lima Barreto e Carlos Heitor Cony.

A Academia Brasileira de Letras vem abrigando, desde sua fundação, há cento e onze anos, literatos e cultores das mais diversas áreas do saber e das mais diversas profissões.  Com Machado de Assis, Joaquim Nabuco e outros escritores de nomeada, a novel instituição entendeu de gerar um convívio culturalmente múltiplo entre seus membros por maneira a se constituir num grupo representativo dos valores intelectuais da vida brasileira. Romancistas, poetas, críticos literários, contistas aqui convivem com sociólogos, historiadores, cientistas, filósofos, teólogos, cultores de ciências humanas e sociais e de diversas artes. E também profissionais da educação, da medicina, do direito, da comunicação, e de numerosos outros campos da atividade humana.

Vós ingressastes no jornalismo em momento de desencanto e dele colhestes a emulação para superar o nonsense daqueles dias cinzentos. Pudestes trabalhar nos grandes jornais desta cidade trepidante. Astros da profissão, muitos dos quais escritores renomados, chefiavam redações e, assim, contribuíam para a formação de novas gerações de jornalistas. Podeis dizer que Elio Gaspari, Wilson Figueiredo, Luiz Alberto Bahia, Heráclio Salles e Luiz Garcia vos deram o fulcro de sua experiência e vos prepararam para as jornadas que iríeis trilhar e de que vos tornastes um dos expoentes. O Correio da Manhã, O Jornal do Brasil, O Globo marcaram os 45 anos de vossa atividade jornalística. Os fatos relevantes do País e do exterior pervadem o espaço jornalístico e demandam interpretações. Daí a extensão cultural que se exige dos profissionais da comunicação.

Cabe recordar a palavra de Wickham Steed, um antigo editor do The Times, de Londres: “o jornalista ideal seria aquele que, tendo dominado e assimilado a sabedoria dos antigos, as filosofias dos mais modernos, o conhecimento dos cientistas, a mecânica dos engenheiros, a história da sua própria e a das outras épocas, bem como os principais fatores da vida econômica, social e política, fosse capaz de guardar todas essas coisas em sua mente e fornecer tanto quanto delas pudesse ser prontamente digerido por seus milhões de leitores, em proporção a um desejo que ele adivinharia”.
Há uma pressão constante nas redações o que levou T.S. Eliot a obtemperar: “há espíritos com os quais tenho uma estreita afinidade; não se põem a escrever senão sob a pressão de uma oportunidade imediata, ou somente sob essa pressão atingem o seu melhor rendimento. É tal disposição de espírito que me proponho considerar como característica do jornalismo”.

Entre nós, o jornalismo se transformou na ponte conducente às letras. Escritores nasceram na desafiante tarefa de comunicar fatos e opinar nas redações dos periódicos. A Academia Brasileira de Letras acolheu até agora 278 escritores, cerca de uma centena e meia dos quais provieram da imprensa. Houve acadêmicos que nasceram como escritores nas redações de jornais e revistas. Outros foram articulistas sistemáticos ou esporádicos. Todos se beneficiaram do dinamismo do cotidiano do jornalismo.

Do passado, luziram na mídia impressa, dentre muitos outros, os nomes de Sílvio Romero, José do Patrocínio, Ruy Barbosa, Adonias Filho, Afrânio Coutinho, Álvaro Lins, Austregésilo de Athayde, Alceu Amoroso Lima, Assis Chateaubriand, Barbosa Lima Sobrinho, Carlos Castello Branco, Marques Rebelo, João Ribeiro, Odylo Costa, filho, Raymundo Magalhães Júnior, Ribeiro Couto, Roberto Marinho, Josué Montello.

Senhor  Acadêmico Luiz Paulo Horta:

Ao longo de mais de quatro décadas vós vindes espraiando as chispas de talento de vossa pena brilhante. Escrever é um ato existencial prioritário nas curvas da historicidade dos autenticamente vocacionados para as lides literárias. Vós o sois, porque escrever é comunicar-se, é estender a mão ao outro para tocá-lo em sua sensibilidade. É convidar o próximo para o diálogo silencioso e fecundo de almas em busca de comunhão. Cuido caber repisar a respeito a pergunta que o saudoso amigo e escritor Antonio Carlos Villaça formula para si mesmo: “Que é escrever, para o escritor? Escrever é, para mim, á única forma de conviver. E, pois, de viver e de conviver. Transviver”.

Escrever é, para vós, uma constante busca da verdade e não das certezas periféricas que nos iludem a inteligência e a distraem da tarefa mais consistente de perquirir e sondar o núcleo do ser que, essencialmente, se situa no imo d´alma e está aberto ao outro e à Transcendência.  Ninguém possui e verdade, ela vive dentro de nós e pervade todos os nossos espaços. Como sentenciou Hans Urs von Balthasar, “a verdade é sinfônica”. Ela unifica a multiplicidade de dimensões da pessoa e lhe dá respaldo ontológico e vivificador. A orquestra precisa de um maestro, mas também de cada instrumento com funções bem definidas e sem qualquer deles o conjunto sinfônico não nos oferta a harmonia que nos encanta. A verdade por igual carece de espaço e de amplitude para a sua vigência em nosso espírito, sem as limitações de uma visão fundamentalista que lhe tolhe a torrente de energia que nos enche a alma de enlevo.

Não foi à toa que vós partistes do jornalismo cultural para a filosofia e a teologia, além de vos haverdes devotado à música como linguagem divina.
Vós sois um ponto de encontro do jornalista com o literato. As fronteiras entre ambos nem sempre são nítidas. Isto porque o jornalismo é encarado como uma forma de, sem adiposidade, revelar os dados em sua pureza quase absoluta.  Para Emile Boivin, citado por Helio Consololaro, Homero é visto como o primeiro repórter ao narrar na Ilíada os combates entre gregos e troianos. A verdade é outra: a obra é perenemente literária, como, entre nós, o são Os Sertões de Euclides da Cunha, os romances de Rachel de Queiroz, as obras de Guimarães Rosa e de Machado de Assis, nascidas muita vez em jornais e revistas.

Alceu Amoroso Lima visualiza o jornalismo como um gênero literário e, efetivamente, o é, pelas peculiaridades das escritas que nos chegam, em periódicos de boa feitura, regadas de figuras de retórica e com fluência natural.
É bem de ver que, hoje, o jornalismo retrata a fugacidade do dia-a-dia. As interpretações constituem um bálsamo para mitigar a massa de informações que superlotam a nossa retentiva e atulham a nossa memória.

Vós sois um jornalista pleno que, partindo de dados objetivos, palmilhais a via opinativa de uma rica muticulturalidade. Assim, é que literatos, filósofos, teólogos, cultores das ciências humanas e sociais pululam em vosso universo jornalístico a revelar a amplitude de vossa cultura e a marcante sensibilidade em cinzelar o perfil daqueles que merecem o destaque que lhes atribuis.
Vós certamente não partilhais da assertiva de Flaubert e Proust que desmerecem o papel do jornalismo. Pelo contrário, tendeis a concordar com o parecer de Paulo Mendes Campos que não acreditava no talento do escritor sem que ele tivesse passado pela imprensa.

As Artes vêm ganhando crescente espaço na Academia. Recentemente, o cinema teve o reconhecimento de seu valor nesta augusta Casa mais que centenária. Já a música ensaiou seus primeiros passos há menos de uma década, com a implantação do projeto Literatura e Música de Câmara e, desde então, vem ampliando sua presença entre nós. Convosco, a música entra triunfalmente na Academia Brasileira de Letras e nos acena com uma programação mais rica e variada a atestar o seu papel de relevo na vida cultural da cidade maravilhosa, com reflexos em todo o País. Especialmente graças à internet que permite a todos o acesso às atividades de nossa programação.
 A música preenche largos espaços de nossa intimidade espiritual. Ela tem o condão de abrir a porta do céu, no sentir de Beaudelaire. Sentenciou Marcel Proust que “a música é talvez o exemplo único do que teria podido ser – se não tivesse havido a invenção da linguagem, a formação das palavras, a análise das ideias – a comunicação das almas”.

Vossa obra musical é consistente e se desdobra em muitos livros, sem falar em crônicas que os aficionados acompanham com desusado interesse, dada a extraordinária sensibilidade que revelais e um conhecimento penetrante do tecido musical.

Citemos as obras mais importantes: “Música clássica em CD - guia para uma discoteca básica”, “Sete noites com os clássicos – para entender os estilos musicais da Renascença ao Modernismo”, “Villa Lobos – uma introdução”, “Música nas Esferas” e o “Dicionário Grove de Música”. O dicionário foi editado em 20 volumes. É bem curial assinalar o desafio de reduzi-lo a um volume, com as opções acertadas para o registro dos vultos da música em obediência a uma justa hierarquia.
Vossa opção radical pela música tem um sabor platônico: “ginástica para o corpo, música para o espírito”. É uma visão de quem absorveu plenamente a tese basilar do primado do espírito. Assim é que Platão fala da música como “amor da beleza”. E infere daí que "aquele que tem alma musical poderá amar todos os homens”. Esta é a essência do vosso modo de ser: buscar a harmonia entre os homens mercê da prévia harmonia dos espíritos que a música possibilita.

Na galeria dos grandes da música clássica, em que caminhais com a desenvoltura de quem se reclina em sua poltrona favorita, é manifesta a preferência pela trindade Bach, Mozart e Beethoven. Ficamos a dever a Bach a edificação de uma estrutura que orientou os pósteros de maneira decisiva. Qual um balizamento indispensável ao caminhar da música em sua crescente afirmação do barroco ante o classicismo e o romantismo. 

No estudo das correntes musicais mais relevantes ao longo do tempo, soubestes apontar em Haydn o verdadeiro pai do classicismo - a base sobre a qual se assentaram as inovações revolucionárias de Mozart e de Beethoven. Ao último, frisais, trata-se de “um caso único”, pois ele fez “a ligação entre o antigo e o moderno”. Beethoven é uma de vossas paixões. Para vós, o velho mestre “continua a usar tudo o que o classicismo tem de bom. A saber, um admirável sentido da forma e a capacidade de dominar as emoções”. Beethoven soube temperar o seu mundo tempestuoso e a serenidade que se lhe seguiu, à semelhança de Goethe.

Coube a Schopenhauer “assegurar à música um primado absoluto em relação às demais artes pelo seu inconfundível caráter metafísico”. É imediata a ilação de que as filosofias e as artes mantêm um vínculo por vezes mal encoberto, mas nem por isso menos relevante.
Vossa atenção jamais olvidou a música brasileira e, nela, sempre destacais o vulto sem rival de Villa-Lobos. Escrevestes: “Villa-Lobos está para a música brasileira como Bach para a música alemã: tudo parece começar por ele”.

A vossa rica biografia no jornalismo e na música já vos situa no elevado conceito em que vós sois tidos pela intelligentzia. Mas vós ainda nos reservastes uma surpresa: durante dez anos formastes grupos voltados ao estudo da Bíblia. Os encontros ocorriam às 2as. Feiras, à noite, em vossa residência, com cerca de quarenta participantes, em média. As portas da casa ficavam abertas e qualquer pessoa podia comparecer aos encontros, sem convite prévio. As sessões eram precedidas de minuciosa preparação dos textos a serem lidos e comentados, dos comes-e-bebes e, surpreendentemente, sempre apareciam cadeiras qualquer que fosse o número dos presentes. Havia como que o milagre da multiplicação de cadeiras. Em tudo vós e Cecília evidenciáveis a riqueza de vossa fé e a plena abertura de alma aos outros.

Os círculos bíblicos se tornaram famosos e a leitura de trechos do livro sagrado conduzia maviosamente a interpretações e análises múltiplas, com a participação de todos, bem ao seu feitio aberto ao outro. Esta riqueza nos será revelada em vosso próximo livro, que virá a lume brevemente.
Certa feita, uma das participantes não pode sopitar uma observação, quando vivíeis momentos tempestuosos. Vós lhe dissestes: “eu entendo a vida como um dom e tudo isto que venho sofrendo faz parte deste dom maravilhoso”. Vós estais retratados neste pensamento de raro peso existencial.

Foi um itinerário luminoso em que a cultura e a fé se uniram e propiciaram um enriquecimento espiritual que gerou significativo aumento no número de vosso já grande contingente de admiradores. Isto porque nada mais profundo do que o transbordamento do Eu quando nele avulta a verdade que escapa à visão epidérmica do mundo e das pessoas. E vós porejais este universo que preserva a autonomia do pensar e do crer e entre ambos estabelece os elos recônditos nem sempre percebidos. Com criatividade buscastes sempre construir uma ponte entre o Antigo e o Novo Testamento, frequentemente havida como inexistente ou, pelo menos, insuficientemente sólida para evidenciar a continuidade de um processo que nos levou ao cristianismo.

Senhor Acadêmico Luiz Paulo Horta:

A Academia Brasileira de Letras vos acolhe de braços abertos na plena convicção de que vós lhe aportareis a preciosa contribuição de vossa cultura e de vosso ameno convívio. Totalmente empenhado em prosseguir na senda até aqui trilhada, com patente privilégio conferido ao jornalismo, à música e à vossa confissão religiosa, vós refizestes o vosso itinerário afetivo com a alegre, vivaz e gentil Ana Cristina Reis, que tanto estimamos, e vos reencontrastes consigo mesmo no patamar da grande paz e alegria a que a fé e o amor inevitavelmente conduzem.