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Discurso de posse

AS VOZES D’ÁFRICA

Na doçura da noite de Lisboa, quando mil ruídos de insetos a vinham perturbar no verão europeu, e em céu limpo acendia luz de um avião que passava por cima dos jardins, como um olho luzente, atravessando às nove horas da noite as últimas claridades do estio, vi com dificuldade andar um homem a caminho de sua pequena casa, fincada junto à Embaixada do Brasil. Ele assim andava penosamente porque perdera suas duas pernas na guerra e, embora usasse muito bem-postas as artificiais que lhe deram e sobem além do joelho, seu quartinho sabe que esse humilde funcionário, vindo da Guiné, deixa em seu leito, todas as noites, rastos de sangue, quando retira seus aparelhos. Esse jovem africano, risonho e simpático, habita no fundo do parque de nossa Embaixada, labuta o dia todo, ao abrir dos grossos portões. Quem o vê, o rosto redondo e negro, sempre atento e sorrindo na sua juventude já desgraçada, não imagina que cada passo que dá se torna sofrimento. Religa-me essa criatura à distante África, de onde há seis anos regressaram mais de meio milhão de portugueses, muitos homens de cor. Então, nesta hora, eu ouço como se viesse de dentro da folhagem, as “Vozes d’África”:

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes? / Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes / Embuçado nos céus? / Há dois mil anos te mandei meu grito / Que embalde desde então corre o infinito... / Onde estás, Senhor Deus?...” E o final do poema: “Basta, Senhor! De teu potente braço / Role através dos astros e do espaço / Perdão pra os crimes meus!... / Há dois mil anos... eu soluço um grito... / Escuta o brado meu lá no infinito, / Meu Deus! Senhor meu Deus!...

Tanto em Brasília quanto em Lisboa – e esta última é ainda hoje a única Capital onde há representações diplomáticas dos cinco países africanos de Língua Portuguesa – tivemos relacionamento com inúmeros representantes africanos de diferentes nações, absorvendo ou tentando compreender muito de seu humanismo e de sua forma de viver. Todas essas pessoas, e mais os que viveram juntamente com nossa família, como que tornam mais possível a esta hora ouvir e, quase se pode dizer decifrar, as verdadeiras “Vozes d’África”, vozes que hoje se fazem presentes na igualdade dos plenários internacionais, nos congressos entre os povos, numa verdadeira ânsia de recuperar o tempo pedido. Enquanto o avião toma a direção do Continente Africano, em mim ecoa uma espécie de resposta ao poeta Castro Alves, quando ele afirmou: “Hoje em meu sangue a América se nutre / Condor que transformara-se em abutre, / Ave da Escravidão.” Se aquele gênio que se chamava Antônio de Castro Alves, por um desses supostos milagres da reaparição dos mortos, estivesse comigo nesse momento em que um avião partia para a África e um africano alcançava sua pequena casa, tingindo ainda de sangue sua vestimenta, depois de uma guerra que acabou há seis anos... se Castro Alves pudesse vir assistir à evolução, um por um, dos países de povos negros, à formação de tantas nações independentes, ao esforço de todo um continente, através de suas dificuldades, pobrezas, vicissitudes e fatalismos procurando igualar-se, bem ou mal, às nações mais felizes, tomando diferentes caminhos esses países que se desenvolvem e têm cada vez mais pressa em desenvolver-se, estaria ouvindo agora outras vozes d’África: as “Vozes da Libertação”, os clamores da sua independência. Como vivo exemplo dessa ascensão, queria assinalar que nossa Academia escolheu para dela fazer parte um poeta, um ilustre pensador e chefe de Estado de uma dessas jovens nações africanas, Léopold Sédar Senghor, ex-presidente do Senegal. Nele, como em tantos outros líderes, habita a idealização de uma nova África redimida pelo sangue dos escravos que dilacerou o coração de nosso eterno poeta. Eu também parecia ouvir as novas Vozes d’África com suas por vezes tão trágicas revoluções, mas aprumando cada qual a seu modo o seu conceito de pátria e de liberdade.

É ele, é Castro Alves, aquele jovem tão belo com sua larga testa, seus olhos fundos, seus cabelos fortes como se tivessem movimento, vivos na disparada de seus poemas, de sua “Vozes d’África”, que estaria agora influindo com sua profunda vocação todos os que se abrigaram à Cadeira 7 desta Academia como Patrono. E por um desses prodígios da bênção de padrinho imprimiria a nós, seus pupilos, uma direção. Eis aqui Valentim Magalhães um dos fundadores da Academia que, em 1879, recita: “Ó luz, Ó liberdade! / Não estás longe, não! Vens perto da verdade, / Pois que o trabalhador começa a meditar!” No seu espírito revolucionário, que poderia defluir também do sentido da obra de Castro Alves, acrescenta Valentim certa maneira satírica para estudar os escritores que lhe foram contemporâneos e...

Entre nós, quando um poeta e um prosador, ao cabo de haver-se arruinado a editar-se a si próprio, e de haver obrigado bom número de cidadãos incautos a ficar com as suas obras... de graça e de estar farto de se ouvir chamar célebre pelas gazetas - julga-se em caminho da notoriedade, para fora do reposteiro negro da obscuridade, passa um dia, inesperadamente, pelo amargo desengano, pela decepção de ouvir perguntar-lhe um dos seus colegas de repartição ou um dos seus habituais companheiros do café, do bonde ou da charutaria: ‘Como? Pois também você é literato? Não sabia.’ Aquele ‘também’ é característico e, como sintoma, vale bem um império.

Mas em Euclides da Cunha, na corrente formada em torno do simbólico número “sete”, esse espírito de indomável individualidade, profundo senso do humano de Castro Alves, prossegue com o painel de rebeldia tão bem sintetizado em Os Sertões. Passei parte da minha infância ou toda adolescência, pois quando fui estudar voltaria por ali, nas férias, numa fazenda em São José do Rio Pardo. Não há visitante da região que passe pelo Rio Pardo sem parar e ver a pequena casa recoberta por uma “redoma” onde o engenheiro Euclides da Cunha escreveu a epopeia de Os Sertões. Quando o fanatismo se torna uma via de libertação e quando a mística de um espírito revolucionário se junta ao poder de uma crença, incompreendida pelos que combatem o fenômeno, o espírito rebelde contra a escravidão se renova. Posso dizer que meu sangue conheceu aquela dura etapa vivida por Euclides da Cunha. Ele escrevia os capítulos de Os Sertões, enquanto descansava de seu labor de engenheiro. Meu tio Valdomiro Silveira, como outros intelectuais, vinha ali, naquela humilde moradia, ouvir Euclides contar sobre tudo que fizera e como fizera em Os Sertões. Valdomiro teve as primícias de ouvir da boca de seu próprio autor trechos e mais trechos de Os Sertões. Contava o autor de Os Caboclos, com muita graça, que ao bulir pelos cantos da desleixada moradia encontrou várias coleções de romances de capa e espada. Seriam, naquela época, o correspondente entre nós das novelas de televisão e amenizariam os cuidados e as dificuldades do engenheiro com sua ponte e sua obra literária. Ele a fez tão forte, esta ponte de São José do Rio Pardo, tão bem construída quanto a saga de Os Sertões. A férrea ponte e a escrita duríssima iam sendo criadas pouco a pouco. Há anos, uma enchente descomunal do rio destruiu várias pontes mais recentes, executadas por grandes engenheiros na audácia poética das construções em concreto. Algumas ruíram sob a força das águas. A de Euclides, esta não. Está resistindo sempre, embora sendo muito mais antiga e possuindo uma técnica hoje não usada pelos construtores. Ela ficava um monumento genialmente sólido também deixado, um outro bem irmanado a Os Sertões materializado em seu gênio. Reabre-se em Euclides de Os Sertões o espírito libertário de as “Vozes d’África”, embora o autor não tratasse de africanos, mas sim de brasileiros, escravos de sua obstinação e de sua rebeldia. Ao responder a Euclides da Cunha, em nossa Academia, disse Sílvio Romero:

Os governos, os chefes políticos, os diretores dos partidos, os grandes, os potentados, todos os que formam a classe de dirigentes não têm querido cumprir o seu mais elementar dever para com as populações nacionais, inquirindo de seus mais inquietantes males, de suas mais urgentes necessidades... A Literatura não o tem também cumprido, estudando-as, dizendo-lhes a verdade, educando-as, estimulando-as, corrigindo-as... Entretanto é urgentíssimo que nos aparelhemos.

Foi em 1911 que o baiano Afrânio Peixoto disse nesta grande Instituição acadêmica:

Euclides da Cunha, como devia ser, veio da Bahia. Como tantos outros iguais – Rebouças, Nabuco, Murtinho, Bilac, Rio Branco... de ascendência baiana e nascidos pelos acasos da vida longe de sua origem – foi dádiva feita ao Estado do Rio pela generosidade perdulária daquela terra que, além de dar ao País seus melhores homens, ainda possui com que enfeitar e servir as suas irmãs menos fartas.

E comentou a campanha de Canudos assim:
 
Fato policial, transformado por incúria e descaso em calamidade pública, chamou para os sertões da Bahia a atenção do País. Em um recanto abandonado, como tantos do interior do Brasil, de que nos falta até a consciência, sem vias de comunicação, sem liames morais de instrução ou dependência administrativa, formou-se a sociedade rudimentar em torno de uma fé simples, que lhe dava esperanças em Deus já que fora completamente largada da providência dos homens. Fanático, do qual a lenda fez celerado, réprobo e até monarquista, atentando contra a moral e ameaçando a ordem estabelecida, reuniu em torno de si algumas milhares de pobres gentes sertanejas, que viviam parcamente de lavouras e rebanhos, até o dia em que uma autoridade leviana e má interveio desmandadamente em agressão. Talvez apenas imprudente, ou estouvada, e resultou a provocação irritante de um conflito.

O juízo que Afrânio Peixoto aqui fazia sobre Canudos era ainda quente de emoções. Era um juízo do ontem, pois pouco mais de dez anos apenas eram então decorridos do fim daquela tragédia.

Encontro em Afrânio Peixoto outros ingredientes de uma forma de libertação do homem – a da sua mente – como grande médico que foi. Até mesmo referindo-se em seu discurso de posse traçou o retrato do jovem Euclides da Cunha, retrato de quem o antecedia na Cadeira 7, o de um cadete republicano que se rebela em desfile militar, no fim da Monarquia. Posso dizer que, nos últimos anos de vida de Afrânio, tive o contentamento de casos e alguns passeios do centro de Petrópolis, com um mestre ainda bom conversador, mas perto já de um tempo que deveria acabar com ele. Descendo da Serra, certa vez, fui a uma conferência e disse – eu estava ao lado do famosíssimo Afrânio Peixoto – um adeus familiar, em gesto de muita intimidade a Guiomar Novaes, nossa gloriosa pianista, casada com um primo, Octávio Ribeiro Pinto. Guiomar Novaes era muito mais da música, das aberturas para o céu  mostrava-se sempre muito religiosa. Frequentemente, via-a a rezar o terço. Seu espírito dela escapava, deixando-a sempre distraída, concentrando-se Guiomar apenas no poder da música, que arrebatava para delícia de seus admiradores. Quando Afrânio Peixoto viu que eu conhecia Guiomar Novaes com intimidade, ficou excitado: “Mas eu não conheço Guiomar Novaes! Queria tanto conhecê-la! Você me apresenta?” Muitas vezes “musical” em seus romances, Afrânio Peixoto mostrava seu encantamento até por essa Arte na própria natureza, como acentua Wilhelm Giese: “A comparação das manifestações do ciúme com uma tempestade tem a natureza por base.” O cantar “peito ferido” do “sem-fim” simboliza o amor de Bugrinha: é a ameaça assustadora da profética natureza que antevê e proclama: “o coração de Bugrinha também tem de sangrar.” Em Fruta do Mato, a descrição do despontar da manhã mostra a sua inclinação para que seus romances se banhem em vozes de tonalidades musicais. “Havia festa de luz no céu. A passarada fazia-a de melodia pelas campinas em torno. Dominava o coro a insistência dos bem-te-vis”. Mais adiante dirá:

O ruído eterno da vida, lá fora, guinchos, trilos, piados, gargarejos que me chegavam em surdina: grilos, besouros, roedores, aves penadas, que fazem o cantochão das noites sertanejas. Dominava um tantã de sapo ferreiro, compassado, no brejo...

E não sou eu, mas o crítico, que acrescenta: notem-se “surdina” e “cantochão” como expressões musicais. Era este amante da música que pretendia ter a emoção de cumprimentar Guiomar Novaes. Para mim, que estava exatamente no começo da carreira, a aproximação daquelas duas personagens fabulosas era uma ocasião felicíssima. Terminada a conferência, levei Afrânio Peixoto a Guiomar Novaes que já estava saindo da sala. “Tenho a honra de apresentar duas glórias nacionais” E fiz o gesto de apontar: “Guiomar Novaes, Afrânio Peixoto.” Guiomar moveu para ele os olhos estagnados, tranquilos: “Afrânio Peixoto... Afrânio Peixoto. Eu já ouvi este nome!” – “Decerto”, eu disse a Guiomar, sentindo já o fogo no rosto, “ele é nosso grande escritor, um dos maiores do Brasil”. Guiomar Novaes estava mesmo imperturbável: “Ah, então o senhor é escritor? Que livro foi mesmo que o senhor escreveu?” Nesse momento, eu, que me sentia tão orgulhosa por apresentar aquelas duas celebridades, bem me tornei uma espécie de rato humano. Desejava encontrar um lugar para sair daquela constrangedora situação. Mas, quando um espírito é grande, ele jamais perde a sua grandeza por mais difícil que seja a situação. Na sentença do poeta francês: “O pássaro, mesmo quando anda, vê-se que ele tem asas.” Pois ainda guardo na concha do ouvido as palavras de Afrânio à imorredoura pianista: “Dona Guiomar, a senhora não me conhece, mas ‘eu trago calos nas mãos de lhe bater palmas.’” Ela saiu sem sentir nem de leve aquela cavalheiresca ironia, e eu tratei de escapulir por entre os últimos assistentes e poder respirar ar livre. Posso dizer que um outro caso também constituiu um dos contatos meus de conversa com  grande Afrânio Peixoto. Contou-me ele de suas experiências como psiquiatra. Disse de um homem que ele havia curado, completamente, no hospital.

Deu-lhe alta. Ao sair, o doente agradeceu, mas ainda estava muito comovido e parecia preso ao receio do que lhe poderia advir, daí por diante, no mundo dos sãos. Afrânio Peixoto com muita bondade aconselhou: “Esqueça o período que passou aqui. Você está completamente curado. Pode fazer qualquer trabalho, ajudar a família, integrar-se, como se diz, na sociedade. Olhe, você agora tem tanto equilíbrio quanto qualquer um de nós.” O homem agradeceu mais uma vez. Ia saindo, mas voltou para junto do Dr. Afrânio Peixoto: “Agora, me diga, por favor, quem me vai restituir meu crédito de juízo?” Na verdade, o crédito de juízo de uma pessoa que foi louca será sempre o mais difícil de vir a ser recuperado. E quando Afrânio Peixoto me relatou este caso, num banco de jardim de Petrópolis, ficou meditativo, pois casos como este ele deveria conhecer muito bem, fazendo-o sofrer. Araripe Júnior, saudando Afrânio Peixoto, continua na linha de Castro Alves, a das vozes distantes, incompreendidas.

O crítico e psicólogo na sua apreciação não deixou passar esta circunstância. Era fenômeno digno da maior atenção o dos trezentos anos de atraso daquelas populações perdidas ainda no fetichismo. Fizestes o terrível diagnóstico. Não desconhecendo a comoção de Euclides da Cunha diante da carnificina de Canudos, a exaltastes. Depoimento – ainda há pouco o dissestes –, libelo, sentença, que punirá, no dia em que tivermos consciência, a crueldade dos mandatários e a inépcia dos mandantes desse crime coletivo.

Na sua devoção ao Patrono da Cadeira 7, Afrânio foi editor das obras completas de Castro Alves e, além de ter feito uma edição das obras de Gregório de Matos, interpretou e glorificou em sua pena a Camões. Nesta própria Academia, fez estudos decisivos sobre nosso Beato Padre Anchieta que bem merece o título de primeiro escritor destes Brasis. Seus romances Maria BonitaFruta do MatoBugrinhaUma Mulher como as outrasSinhazinha, eu os li como livros encantadores, mas fugidios às profundezas psicológicas da alma humana que ele como psiquiatra tão bem conhecia. É um dos mistérios da criatividade: o grande e profundo conhecedor da angústia, dos terrores, das danações que sofrem os loucos não transparecia nas suas obras, interessantes como temas, às vezes deliciosos em Bugrinha ou Fruta do Mato, mas, sem dúvida, carecendo do rompimento de segredos que ele, como médico, bem conhecia. Ficou-me de Afrânio Peixoto uma visão que talvez não corresponda à verdade de sua figura. Encontrávamo-nos sobretudo em seus últimos verões em Petrópolis. Via-o passar de charrete ou então caminhar já pausado pelas sombras que naquela época eram maiores do que as de hoje, uma cidade mais devastada pelos altos edifícios. Quando saía de charrete, o seu rosto era ameninado e róseo; quando pisava o chão, seus passos já iam bem devagar. Mas sua prosa continuava tão jovem e deliciosa que muita vez seria eu, a aprendiz de Literatura, que procurava o mestre, sentindo nele já a irreversível queda que se aproximava.

E, sucedendo a Afrânio Peixoto, vem Afonso Pena Júnior, recebido por Alceu Amoroso Lima que, ao saudar o quarto ocupante da Cadeira 7, afirmou: “Diziam os antigos que era preciso temer os homens de um só livro.” Referia-se ao homem que leu um livro só e nele esteia a sua pretensa sabedoria. Sobre o homem que lê mil livros e busca a sabedoria como a abelha e não como a aranha, referiu-se Alceu Amoroso Lima a A Arte de Furtar de Afonso Pena Júnior, dois volumes publicados em 1946. Afonso Pena Júnior pertencia ao grupo de juristas que tão extraordinário relevo deram e dão à Academia Brasileira de Letras. Tendo sido professor de Direito Internacional Público e Direito Civil, membro do Tribunal Superior Eleitoral, consultor jurídico do Banco do Brasil e reitor da Universidade do Distrito Federal, professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro e ministro da Justiça, ele representava a parte do Direito à qual acudiam muitas vocações de inexcedível valor nesta Instituição. Digamos que esse filho de um presidente da República bem se despojava de sua herança ilustre para servir como professor, como mentor de consciências dentro de um Brasil em tempos em que o Direito brilhava tanto ou mais do que a própria Literatura, pois a grande sementeira dos professores e das obras de Direito estava a produzir seus frutos mais importantes. Assim A Arte de Furtar e o nome de seu autor numa investigação fascinante, a “Crítica da Atribuição de um Manuscrito da Biblioteca da Ajuda”, de Lisboa, perfizeram a obra do escritor propriamente dita, quando o seu saber era aquele de jurista e de crítico, e os que o conheceram diziam do esbanjamento de sua cultura em conversas vivas, modernas e de seu amor como discípulo de Montaigne, desse verdadeiro fundador de uma grande Literatura com seus Ensaios, que em nossa casa habitavam bem vivos, quando alguém esboçava, através de estudos e de mais estudos, o livro que jamais chegaria a escrever sobre Montaigne. Basta saber deste fato, de sua predileção pelo iniciador dos Ensaios, que meu coração se abre em profundidade e nostalgia. Na Europa, não se conhecem homens perdulários de sua ciência e de seu saber. Infelizmente, no Brasil, há muitos assim – e eu citaria aqui um nome, apenas como exemplo, Santiago Dantas – um ser cuja simples conversa daria para avaliar o mestre de Direito e profundo conhecedor da Literatura, aquele que esbanjava entre amigos plantando sempre em outras mentes os grãos de uma Cultura que se fez generosa e não cativa de si mesma. Ocorre-me mencionar o caso extremo daquela personagem de Eça de Queirós, Fradique Mendes, dissipador de uma enorme riqueza intelectual que bem poderia ter talhado um monumento imperecível do “pó de ouro” que ele soprou a todos os ventos, como a figura da semeadora França... Mas nós, ficcionistas, representamos o oposto, quase sempre. Sabemos que somos a espécie que traz consigo a mansa loucura de acreditar nos seres que brotam de nossa cabeça como sangue de nossa alma. É conhecida a história de Balzac que, nos últimos dias, chamava por seu personagem, um médico, como se ele existisse e o pudesse socorrer. Ao começar minha carreira, escrevendo Floradas na Serra, na parte da morte de Belinha dei com minha tia-avó em meu quarto perguntando: “Mas por que você está chorando, minha filha?” Com o rosto banhado em lágrimas respondi: “Porque Belinha morreu.” Mas Afonso Pena Júnior foi aquele que teceu para outros as germinativas ideias e as sugestões de seu saber jurídico ou literário que a ele cabia espalhar. Seu trabalho sobre A Arte de Furtar, esta obra publicada em 1652 e escrita por um português anônimo, “mui zeloso da Pátria”, foi um enigma a que muitos se dedicaram na sofreguidão do indecifrável. A autoria do livro atribuída, desde o padre Antônio Vieira, ao padre Manoel da Costa e a D. Francisco Manuel de Melo, de acordo com Afonso Pena Júnior, teria sido escrita por Antonio de Sousa de Macedo, oriundo de uma família nobre e aparentada aos Bragança. Macedo foi um diplomata enérgico, secretário de Estado, ensaísta e teólogo, defensor dos interesses de Portugal, desempenhando funções diplomáticas com as de um enviado especial a Londres ou de embaixador nos Estados Gerais da Holanda. Entretanto, no Dicionário de Literatura, sob a direção do mestre português Jacinto do Prado Coelho, lê-se este trecho:

O problema da autoria de A Arte de Furtar, não obstante o grande número de votos que Antônio de Sousa Macedo tem recolhido até aqui, está, porém, ainda longe de se poder considerar solucionado. Um novo candidato foi recentemente encontrado, o Padre Manuel da Costa, jesuíta português e figura até agora completamente desconhecida nas Letras, embora houvesse produzido outro trabalho além do que se lhe atribui. Conquanto ainda haja dúvidas que levem a comparação de A Arte de Furtar a refletir-se no estilo do Padre Manuel da Costa, foi extraordinária a dedicação de Afonso Pena Júnior que com tanta acuidade tratou daquela obra, pois A Arte de Furtar merecia de um jurista, como ele era, aquela intenção de compreender a testemunha que apontava para ministros venais, desordens de costumes, desonestidades de nobres e funcionários de alta categoria, atacando fornecedores de um Exército em guerra que se enriqueciam escandalosamente à custa dos dinheiros públicos. Hoje, assinala ainda Jacinto do Prado Coelho, em Portugal, não se pode estudar o problema da autoria da A Arte de Furtar, ou a obra de Sousa Macedo, sem ter à mão o trabalho de Afonso Pena Júnior.

Assim, o nosso acadêmico, como dele disse Solidônio Leite, bem se dedicava nesta ampla jornada de identificação com a personalidade estudada, quando, em A Arte de Furtar, livro escrito em data tão antiga, o autor já denunciava a lábia de maus advogados e não poupava os sacerdotes desviados acusando com muita força os falsos médicos. É um painel antigo, mas que se desdobraria diante do professor de Direito, do homem que estudava os mecanismos da República, com uma paixão de descobrir de quem seria esse grande testemunho de A Arte de Furtar. Filiava-se, em sua aparente frieza, Afonso Pena Júnior, através desta sua sondagem, ao idealismo de Castro Alves, talvez vendo em nossa Pátria reflexos daqueles males descritos em A Arte de Furtar.

Faço aqui uma pausa. Quero perguntar, como principiou em mim a ideia da Academia? Foi durante um percurso de automóvel, quando eu havia recebido o Prêmio Machado de Assis. Meu tão saudoso Osvaldo Orico estimulou-me, dizendo-me que me apoiaria integralmente – o que fez – com elegância e fidelidade até a revogação do impedimento da entrada de escritoras na Academia. Gratíssima a ele como devedora, assim como à generosa acolhida nesta Casa.

E agora volto a assumir minha condição, vir a ser eu mesma para descrever um encontro decisivo de minha vida com Hermes Lima. Estivera na Espanha como adida cultural e lá me casara. Portanto, entregando minha missão ao Ministério das Relações Exteriores, fui procurar Hermes Lima. Ele me recebeu como velha amiga que dele sempre fui e de sua mulher. Eu deveria embarcar para a Rússia, junta-me àquele que me daria o nome, que é o desta Cadeira, como numa antecipação feliz e um título. As discussões na opinião geral sobre o caso dos foguetes e a possível retirada destes de Cuba estavam na ordem do dia. Perguntou-me, dando-me imensa deferência, se eu achava que a Rússia abandonaria Cuba no transe, em que se falava até de guerra iminente entre as duas grandes potências: Estados Unidos e União Soviética. Disse-lhe com simplicidade que a Rússia não iria expor-se a vir brigar tão longe e sob os fogos dos Estados Unidos. Esperava paz e entendimento e foi o que aconteceu, embora inúmeras pessoas achassem que os foguetes eram uma “ficção” dos Estados Unidos para o pretexto de uma invasão da ilha. No momento político, saía-se da órbita do que estaria acontecendo para o que pudesse estar sendo escondido.

Hermes Lima muito sofreu, mas jamais perdeu aquela sua doçura e serenidade própria que transmitir aos amigos. Quando preso, de novembro de 1935 até dezembro de 1936, os que conviveram com Hermes Lima, Graciliano Ramos, professor Castro Rebelo, Maurício de Medeiros, Leônidas de Resende, souberam de sua integridade no sofrimento. Graciliano Ramos afirmava: “Hermes Lima foi a pessoa mais civilizada que já vi. Naquele ambiente, onde nos movíamos meio nus, admitindo linguagem suja e desleixo, ele vestia pijama – parecia usar traje rigoroso. Amável, polido, correto de amabilidade, polidez e correção permanentes.” Tanto na Introdução à Ciência do Direito quanto em Problemas de Nosso Tempo, havia em Hermes Lima a preservação de um caráter único extremamente peculiar que se verificava na sua qualidade de advogado ou de professor. Ele era um grande, nós sabemos, e o presidente Austregésilo de Athayde falava por todos quando, em 1978, disse à beira de seu túmulo com sabedoria:

Em todos os postos que ocupaste, do professorado à chefia de um Ministério Parlamentar da era republicana, no Jornalismo no qual, como o Apóstolo das Gentes, combateste sempre o bom combate, no Magistério, um exemplo incomparável para a juventude, e, alçado à mais alta magistratura republicana, foste um juiz probo, alerta, seguro, altivo e indormido na defesa do Direito e na profissão da justiça. Eras feito de bondade, de tolerância e de amor, e de ti com acerto pode-se lembrar aquilo do Salmo, “porque não desprezaste nem abominaste a aflição do aflito, nem escondeste dele o teu rosto, antes, quando ele clamou, tu o ouviste.

Ainda estou a ouvir aquele seu “Vai com a minha benção, Dinah”, de partida para tão longe – a Rússia. E em Neném, sua mulher, e em Gonçalo, seu filho, reside hoje uma espécie de veneração, um certo pálio de bondade que a morte de Hermes Lima não destruiu e que recai sobre eles. Gostaria de dizer também aqui que Hermes Lima ouviu as “Vozes d’África”, sendo portanto continuador não só dos anseios de justiça e liberdade de Castro Alves, mas um convicto de que a África já estaria a dar a sua resposta: países e mais países prosseguiam em sua caminhada para a independência, acelerada a partir de 1960. Mais fortes, mais fracos, mais tímidos, mais guerreiros, mais pacíficos, os países da África eram uma orquestração de um mundo que se abria para uma nova era e devolvia, com seus estampidos e estridências, ou soluções diplomáticas, ao poema de Castro Alves as suas novas vozes. Pois Hermes Lima fez parte da Delegação do Brasil à Assembleia Geral da ONU de 1960, quando nada menos de 15 países africanos surgiram para a independência e passaram a ter assento no organismo mundial. Mas o que mais impressiona no espírito lúcido e observador de Hermes Lima é ter ele sentido em toda sua força as novas “Vozes d’África” já em 1951, quando pela primeira vez integrou nossa representação a uma Assembleia Geral da ONU:

Nem as tribos da África escapam à insatisfação reinante. Realmente, na própria África, o desejo do melhor, embora vago e impreciso, agita populações que, há vinte ou trinta anos, dormiam no mais pleno conformismo. O processo final do colonialismo abriu-se, por assim dizer, nesta Assembleia Geral. Patenteado também ficou que a maioria dos Estados não se sente à vontade dentro de um esquema internacional que tende a colocá-los como simples caudatários das potências que disputam a hegemonia.

Há tempos, há realmente muitos anos, uma jovem vinda de São Paulo habitava certa casa de Ipanema. Foi derrubada há alguns anos, para construção de um prédio. Era uma jovem magrinha, sensível e não muito feliz. Passava por dificuldades financeiras, sofrimentos íntimos e tudo ou quase tudo que seu marido ganhava em sua principiante carreira de advogado seria destinado (como diz bem a canção) ao “leite da criança”. Recordo com uma certa nostalgia de mim mesma aquele bravo encobrimento de uma vida difícil. Seria hoje capaz de realizá-lo? Um português que cuidava dos pequenos jardins que se formavam na calçada de Ipanema foi a solução para meus sofrimentos de recente dona de casa, asfixiada entre aquilo que podia ter ou que tivera de bem-estar na casa da tia-avó e o que me reservavam aqueles dias difíceis. Achava-o gordo e bem-disposto. “Onde come o senhor?” A pergunta vinha de um íntimo angustiado. Com o que se ganhava em casa não se podia alcançar o nível exibido em abundância de carnes por aquele simples cortador de grama. Ensinou-me ele uma pensão de onde se poderia obter a comida. “Não é para a menina”, disse, “só serve para um brutamontes como eu que come qualquer espécie de comida”. Sim, a solução estava aí. Passamos a comer de uma pensão de humilde qualidade a tal comida que mais tarde iria fazerme adoecer. Ao ter tal revelação, quando totalmente vivia ignorante do que se passava comigo, minha tia Zelinda ofereceu dar-nos “alguma coisa que nós deveríamos depois devolver, para consertar o orçamento da casa”. Foi nesta época que, vindo meu pai morar também no Rio de Janeiro, reencontrou Pontes de Miranda, cuja casa frequentara ao tempo em que fora chefe da Casa Civil do Presidente Washington Luis. Havia já uma ebulição enorme dentro de meu lar, pois Narcelio de Queiroz preparava seu salto para a magistratura durante um ano de estudos, e eu às vezes ficava por dias inteiros sem ter qualquer ocupação além dessas miudezas a que se dedicam as jovens mães, quando giram em torno de seus filhos pequeninos pelos dias e pelas noites. Foi nessa época que meu pai apanhou em casa um escrito que eu havia feito por desfastio. Por desfastio, sim, já traduzira uma novela inteira de Lenormand, baseada num caso de Freud, intitulada “Fidelidade”. Nunca pensei entregá-la a um editor. Praticava sim, o francês que aprendera no colégio. Aquilo seria um exercício; nada mais. Fui até o fim da tradução sem ter a mínima ideia de seu aproveitamento que por certo seria bem aceito, tão avançada era a obra para a época. Creio que foi o conto “Pecado”, que eu não sabia ser bem um conto (numa família de escritores o ato de escrever é natural e não sofrido), que meu pai levou à leitura de Pontes de Miranda que morou até morrer numa bela casa de Ipanema, perto de nós, onde segundo meu pai o símbolo visto em muitos lugares de seu escritório e biblioteca era a coruja, representante da sabedoria ocidental. Assim, sem ter consciência de que me lançava à minha já hoje longa carreira literária, conheceu Pontes de Miranda meus primeiros escritos através de meu pai. Será por este motivo que tenho vários livros de Pontes de Miranda com dedicatória. A vida transporia muitos e muitos anos até quando nos defrontássemos como candidatos a uma eleição na Academia. Antes da eleição, da qual ele saiu vencedor, recordou que conheceu meus primeiros escritos. Depois da época inicial de minha carreira, eu o encontrei várias vezes, em várias circunstâncias. Uma de suas características era aparecer nas conversas a dar notícia de algum fato político inesperado, ou a dizer de alguma personalidade de importância mundial que ele conhecera. Sua conversa tornava-se ponto de atração em qualquer lugar a que ele ia, pela vastidão de sua cultura nos mais variados campos, pelo brilho de sua palavra e pelo seu humorismo refinado ao referir-se a fatos importantes que ele testemunhara. Sabe-se hoje: esse homem tão pouco conviveu com seus colegas da Academia Brasileira de Letras, quando outros juristas se caracterizavam por ter com ela larga e profícua convivência. Miguel Reale, ao fazer o discurso de recepção de Pontes de Miranda, disse, referindo-se a Hermes Lima, cuja vaga seria preenchida por Pontes:

Quando inesperadamente nos deixou, foi parte de minha existência que partiu com ele como bem o soubestes retratar nos belos versos em que confidenciais: À medida que os anos passam, cresce, / alteando-se, junto a nós, como um suave abrigo, / num obscurecer de céus em que anoitece, / aquele algo de nós que morre em cada amigo.

E o grande e ilustre jurista Miguel Reale prossegue:

A um amigo sucede outro amigo, a um jurista, outro jurista. Nossa amizade, Senhor Pontes de Miranda, é quase tão antiga, pois, mesmo antes de contarmos com a vossa prestigiosa presença em São Paulo, no primeiro Congresso Internacional de Filosofia realizado no Brasil como parte das comemorações do Quarto Centenário da Cidade, já compartilhara dos valores de vosso espírito, desde os aforismas de A Sabedoria dos Instintos e A Sabedoria da Inteligência, até o monumental edifício jurídico que viestes construindo pedra por pedra.

Clóvis Beviláqua cita Pontes de Miranda entre os formandos da Faculdade de Direito do Recife em 1911, dentre os quais figurava outro jovem que também viria a fazer parte desta Academia: Antônio Carneiro Leão. No ano seguinte de sua formatura, Pontes de Miranda, aos 20 anos de idade, estreava nas Letras com o ensaio filosófico A Moral do Futuro, prefaciado por José Veríssimo. E dez anos depois, publicava o clássico Sistema de Ciência Positiva do Direito, em dois volumes, em que, como assinalou Dahas Zarur em seu recente discurso de posse na Academia Carioca de Letras, ao fazer o elogio de Pontes de Miranda, “revela sua tendência filosófica positivista, apesar da profundidade da influência da cultura alemã em sua personalidade, quando é sabido que o pensamento germânico não levou a sério o Positivismo”.

Na descrição de Raul Floriano, publicada na Revista dos Tribunais, eis como vivia e trabalhava o jurista Pontes de Miranda.

É um ambiente de artista que conduz a uma biblioteca de 70.000 volumes, de Direito Mundial e Ciências Matemáticas, Físicas, Biológicas, Antropológicas e Sociológicas, distribuída em dois pavimentos, nos quais, o mestre circula lepidamente, sem dificuldades. No setor de Direito, os velhos clássicos portugueses assumem posição de comando, desde o célebre livro de Pedro Barbosa, de 1554, Dei judicia, o único exemplar existente além do que está em Portugal, na Torre do Tombo; o primeiro Tratado da Prescrição, em latim, de 1544; o Tratado das Execuções, de Morais; todo o Glück Pandekten, do primeiro ao último volume. Portugal, por sua alma e por seu espírito, vive ali recolhido na afeição de Pontes de Miranda, admirador de seus juristas e praxistas, e possuidor de quase todos os livros de sua história que se relacionam com o Direito. Estais a ver, meus senhores, que mais importantes que essas obras raras e que as mil e setecentas monografias de Direito Alemão, das quais a Guerra de 1943 destruiu mais de mil, na Alemanha, mais importante que tudo isso é o fichário de estudos de Pontes de Miranda, tão metódico e tão organizado que um amigo íntimo, após vê-lo, comentou: “Você é tão obstinado que leva tudo a sério.” Na sala dos livros de Ciências Humanas e Exatas, ides encontrar uma preciosa coleção de corujas, única talvez pela maneira pela qual foi reunida. Aqui está uma coruja talhada em madeira brasileira, que a Princesa Kalachinka, de nacionalidade russa, esculpiu para lhe oferecer. É a coruja anárquica. Ali uma coruja alemã, que lhe foi oferecida pelo embaixador alemão, apelidada de “coruja administrativa”. Outro embaixadorr alemão visitou-o depois com um embrulho para presente e lhe disse: “O Senhor possui uma coruja anárquica (russa) e outra administrativa (alemã), mas não possui uma coruja coquette (francesa) como esta que ora lhe ofereço.” “Eu não gosto de coruja”, disse-me o Mestre ao mostrá-las, prossegue Raul Floriano. “Mas possui muitas dezenas delas de todas as partes inclusive da Indonésia, e até em miniaturas esculpidas em ouro. Mais do que isto: esculpiu duas em madeira e pintou duas outras, oscilando entre o Cubismo e o Futurismo. E deu expansão às suas habilitações de pintor e escultor. Pontes de Miranda se cerca da coruja porque é ela o símbolo europeu da Cultura.

Desse homem que tão cedo desabrochava para as Letras e para o Direito, aos 17 anos de idade, disse Clóvis Beviláqua, após referir-se à obra Sistema da Ciência Positiva do Direito, publicada em 1922:

Admiro em vós a inteligência superior que ilumina e escolhe, aprende e produz. Sem vossa excepcional capacidade de trabalho, sem a vossa mentalidade superiormente organizada e sem a coragem que vos dá a confiança em vós mesmo, não poderíeis escrever esta obra, amostra magnífica de altura a que atingiu o Pensamento Jurídico Brasileiro.

Em 1970, o embaixador da República Federal da Alemanha, Von Holleben (que atravessou dramática vicissitude em nosso País) – quem sabe era o presenteador da coruja francesa? – comentava o conceito de “espaço social”, firmado na obra Introdução à Sociedade Geral, e textualmente dizia: “A exatidão dessa tese foi confirmada por Albert Einstein, cujas teorias do espaço tinham sido retificadas por Vossa Excelência, em certos pontos.” A ocasião dessas palavras, segundo Raul Floriano, era a condecoração de Pontes de Miranda com a Grã-Cruz do Mérito da República Federal. O destino, aliado a meus confrades da Academia Brasileira de Letras, permitiu-me que eu fosse o sétimo ocupante da Cadeira 7, neste dia sete, e que por uma dessas incríveis e misteriosas destinações chegasse aqui trazendo o próprio nome de Castro Alves, pois pela lei assim me chamo.

Mas deixemos falar sobre nosso Patrono o próprio jurista, o amante da Filosofia, o sociólogo e embaixador Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, e cito:

Passemos a falar da Cadeira 7. O Patrono, Castro Alves, faleceu aos 24 anos, e quem lê hoje o que ele escreveu não só se ufana de ter tido o Brasil homem tão dedicado ao ser humano, qualquer que fosse a raça, como também pelo sentimento, pela substância e pelo lirismo dos seus poemas. A poesia enchia a vida de Castro Alves.

E agora acrescento eu que ele se alçava “para muito além do lirismo enclausurado nas duas polegadas do coração”, como de um seu ilustre personagem dizia Eça de Queirós. Castro Alves era daqueles poetas novos que, seguindo o mestre Victor Hugo, “iam numa universal simpatia buscar motivos emocionais fora das limitadas palpitações do coração  iam à história, à lenda, aos costumes, às religiões, a tudo que através das idades, diversa e unanimemente, revela e define o homem”. Quando se trata de um gênio, repetirei que profeta e poeta vêm da mesma raiz, representam o mesmo apelo misterioso de coisas que ainda estão por nascer, de sentimentos apenas velados pelo futuro. As “Vozes d’África” estão hoje ainda mais vivas no largo mundo em que embebemos nossa mente e nossas preocupações. Vozes que marcam também a direção de um Brasil, não mais aquele que se servia do Continente negro para dele usufruir os frutos de um trabalho não pago, na servidão da escravatura. A aproximação com a África tem o sentido do resgate de uma dívida. A ninguém é dado ficar frio ou indiferente àqueles conceitos de Joaquim Nabuco, em Massangana: “Não só esses escravos não se tinham queixado de sua senhora, como a tinham até o fim abençoado... A gratidão estava do lado de quem dava. Eles morreram acreditando-se os devedores.” Cicatrizaram-se as feridas, cria-se dentro do País o reconhecimento por tudo que a raça escrava imprimiu de bondade, pelos valores culturais que ela fez desabrochar no Brasil. No estudo panorâmico desse relacionamento, avulta, entre tantas obras de valor, um verdadeiro e indestrutível monumento: Casa-Grande & Senzala, de Mestre Gilberto Freyre. Hoje, somos nós que buscamos a África através da nossa diplomacia. Escritores brasileiros são lá muito bem conhecidos, principalmente nos países de Língua Portuguesa, e o braço e o engenho de jovens brasileiros abrem estradas, constroem barragens. Através da ponte que há séculos trouxe os africanos para o Brasil, agora, para lá, por esta mesma ponte feita em carne e sangue, seguem seus irmãos brasileiros, pois a África quer crescer depressa e precisa de nós, como dela tanto carecemos e tanto ganhamos na própria criação do homem brasileiro.

E, ao dizer “homem brasileiro”, não esqueçamos de sua própria alma, sempre presente e dona desta Casa. Machado de Assis, entre todos nosso mais perfeito romancista, nosso hopedeiro e senhor. Através de seu pai já liberto, quem mais do que ele estaria próximo da África?

Perdoem-me se me alonguei: não tive o dom de falar, como discursou Rachel de Queiroz, transmitindo por inteiro sua capacidade de ser íntima até na glória, próxima pelo coração de todos nós, em momento culminante de sua vida, assim como não possuo a força de quem a saudou, o mestre de estilo, nosso capitão Adonias Filho. Serei sobrepujada, estou certa, pelo Raimundo Magalhães Júnior, o homem dos “impossíveis”, aquele que nas complexas biografias é tão penetrante, minucioso e veraz! Lembro-me do dia em que Jorge Amado aqui discursou com a magia da sua penetração e de sua criatividade. Foi também Raimundo quem o saudou. Noite inesquecível! E uma palavra sobre aquele que com tanta beleza, eficiência, quanto mansuetude, associa as Letras e o culto da História à vida política e que, pela parte que tem neste ato de hoje, ainda mais perto está de meu coração: Luís Viana Filho.

Já agora permitam que fale da própria ocupante número sete, da Cadeira 7. Na galeria dos que me antecederam havia o sopro da liberdade, herdada de formas diversas. Pois em mim esta liberdade é mais do que tudo: é a vida, é ressurreição, é Cristo e fraternidade. Outrora dizia de mim mesma que era uma católica escritora. Depois de dedicar-me durante cinco anos a escrever um livro sobre Cristo, em que pretendi que ele por minha pena narrasse sua própria Vida e sua Doutrina, considero que tomei a condição de escritora católica. Humildemente, eu fecho esta contribuição, abrindo os braços fraternos diante de vós: colegas, irmãos, nova família, novo abrigo.

 
7/4/1981