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Discurso de posse

ELOGIO DE AFONSO ARINOS

INTRODUÇÃO

Numa tarde de julho de 1943, um menino de nove anos subia as escadas desta Casa e entrava neste Salão. A Academia recebia o Presidente da Bolívia, General Enrique Peñaranda, que vinha homenagear Euclides da Cunha, “defensor de seus direitos”.

Ladeavam o menino duas presenças amigas: uma, a de Afrânio Peixoto, o sucessor de Euclides da Cunha na Cadeira 7, o polígrafo eminente, capaz de conversar com a mesma facilidade com um sábio erudito da Sorbonne ou com uma criança recém-alfabetizada. O outro era seu pai, Francisco Venancio Filho, o maior de todos os euclidianistas, de quem Roquette-Pinto, um dos nossos grandes, afirmou: “Do próprio culto à memória de Euclides da Cunha – grande traço de sua existência –, Venancio fez surgir um movimento de educação cívica sem paralelo no Brasil.”

As relações entre Afrânio Peixoto e Francisco Venancio Filho foram modelares, justificando a referência de Afonso Pena Júnior, no discurso de posse na Cadeira 7, ao “inesquecível Venancio Filho, que, pelo muito que amou e serviu ao Brasil, era da estirpe de Afrânio”.

Afrânio Peixoto, tempos depois, dedicava ao menino as Obras Completas de Castro Alves, com a seguinte dedicatória: “Alberto: Castro Alves mereceu a paixão de Euclides. Que eles lhe inspirem a paixão do Brasil... Afrânio Peixoto.”

Até a morte do pai em 1946, o menino aqui retornou várias vezes. Era presidente na época a figura austera do Embaixador José Carlos de Macedo Soares, tez morena, óculos grossos, fidalguia no trato, autor de livros de História, primorosamente impressos, que fascinavam o menino já interessado pelo tema. Dessas visitas, além de Afrânio Peixoto, Roquette-Pinto – chamado familiarmente de Vovô Roquette – e Afonso Taunay, que frequentavam nossa casa, são bem nítidas as figuras de Filinto de Almeida, Viriato Correia, Rodrigo Octavio Filho, Aloisio de Castro, Múcio Leão e o sempre jovem Barbosa Lima Sobrinho.
 
Foram estreitas as relações com esta Casa de Francisco Venancio Filho, cujo nonagésimo oitavo aniversário de nascimento hoje se comemora. A Biblioteca de Cultura Nacional, fundada por Afrânio Peixoto em 1931, e que hoje tem o seu nome, foi inaugurada com o livro do fundador sobre Castro Alves, seguindo-se estudo de Francisco Venancio Filho sobre Euclides da Cunha. Ampliava trabalho anterior de 1914, e seria base para volumes posteriores, Euclides da Cunha e Seus AmigosA Glória de Euclides da Cunha. Em 1937, recebia o Prêmio Francisco Alves com trabalho sobre A Divulgação do Ensino Primário no Brasil. De 1943 a 1946, colaborou assiduamente na Revista Brasileira, sob a direção de Levi Carneiro, com artigos sobre Euclides da Cunha.

Sua morte, em 1946, foi pranteada em sessão em tocantes depoimentos de Roquette-Pinto, Rodrigo Octavio Filho, Peregrino Júnior, Pedro Calmon, Levi Carneiro, Múcio Leão e Afonso Taunay, não se registrando o de Afrânio Peixoto, então já enfermo. E, em 2 de setembro de 1976, Paulo Carneiro, seu grande discípulo e amigo, fez-lhe o elogio como homem de ciência e educador, quase um discurso de recepção post mortem.

Por isso, neste momento, Srs. acadêmicos, ao ingressar nesta Casa com a generosidade de vossos sufrágios, vejo-me conduzido, como há quase 50 anos, pela mão de meu pai, e imagino-o talvez ocupando uma dessas Cadeiras, que tinha todos os títulos para aspirar.

Nesta evocação filial, há uma referência a fazer à minha mãe, professora Dina Venancio Filho, aqui presente na lucidez de seus 84 anos. Durante décadas, ensinou inglês a gerações de alunos do Colégio Bennett e do Colégio Pedro II e de uma viuvez precoce encontrou forças para educar os filhos, campeã do otimismo e mestra da arte de bem viver.

A morte de meu pai não representou longo interregno nas minhas relações com a Academia. Em 1947, participava de curta experiência de jornalismo como auxiliar do Diário das Sessões da Conferência Interamericana para Manutenção da Paz e da Segurança do Continente realizada em Quitandinha e que era dirigido pelo amigo de toda a vida, o hoje Embaixador Roberto Assumpção. Tomaz Santa Rosa se ocupava da parte gráfica, e eram redatores três futuros membros desta Casa: Álvaro Lins, Marques Rebelo e Francisco de Assis Barbosa.
 
Marques Rebelo, ao receber Francisco de Assis Barbosa, retratou com a finura de seu estilo este episódio: 
    
Não garanto que a segurança continental tenha sido conseguida, mas garanto que foram dias maravilhosamente divertidos aqueles na fresca e imperial Petrópolis, de neblina e hortênsias, quando, de parceria, na folga dos afazeres redacionais, compúnhamos bestialógicos sonetos satirizando vultos exponenciais do conclave, para desespero do nosso compenetrado companheiro, que foi membro ilustre desta Companhia – Álvaro Lins. 
    
Marques Rebelo foi desde então presença marcante em minhas atividades, constituindo-se orientador seguro, e com ele mantive relações até a sua morte. O tom irônico com que se conduzia não escondia a grande afetividade. E o interesse pelos jovens se exercia tanto na explicação de um texto do Diário de Jules Renard como no aprendizado de embrulhar livros, que, segundo ele, era atividade fundamental para um homem de letras. A entrega hoje do diploma por Elza Marques Rebelo mantém este laço de amizade.

Francisco de Assis Barbosa foi incentivador constante desde aquela época, estimulando-me em projetos intelectuais e me apoiando em várias iniciativas. Honrou-me ao me receber como sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1988. A sua morte recente ainda é dor e saudade.

A posse de Marques Rebelo em 1965 iniciou o cortejo dos amigos acadêmicos. Seguiu-se o grupo dos rebelianos; João Cabral de Melo Neto em 1969; Francisco de Assis Barbosa, Antônio Houaiss e Herberto Sales em 1971; Lêdo Ivo em 1987.

Amigos de meu pai, também meus amigos, a eles se juntaram: Ivan Lins em 1958; Fernando de Azevedo, seu maior amigo, em 1968; Abgar Renault em 1969; Paulo Carneiro em 1971; Carlos Chagas e Américo Jacobina Lacombe em 1974 e, se a fatalidade não o tivesse colhido, Anísio Teixeira. A minha geração aqui ingressa com Eduardo Portella em 1981, José Guilherme Merquior em 1982 e Carlos Nejar em 1989.

Dois de meus mestres na Faculdade de Direito também foram aqui recebidos. O primeiro Hermes Lima, o didata incomparável, o biógrafo primoroso de Tobias Barreto, o professor de Introdução à Ciência do Direito, que, com habilidade excepcional, introduzia os calouros no quadro amplo das Ciências Sociais no qual inseria o Direito.

Tive, por outro lado, a ventura de pertencer à primeira turma que Evaristo de Moraes Filho, meu segundo mestre acadêmico, ensinou Direito do Trabalho como catedrático da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil em 1955. As aulas de Evaristo de Moraes Filho eram manifestação de Cultura, erudição e talento. Desde aquela época, o seu magistério no Direito, nas Ciências Sociais, na História das Ideias e na Filosofia tem sido modelo de excelência. Em 1982, um grupo de especialistas em Direito do Trabalho, liderado pelos professores Nair Gonçalves e Arion Sayão Romita, organizou em sua homenagem um Curso de Direito do Trabalho. Embora não especialista na matéria, fui honrado com convite para traçar-lhe o perfil intelectual, ressaltando-lhe os méritos de professor e pensador. A entrega do colar de suas mãos representa a sagração do discípulo pelo mestre.

Sensibilizou-me muito, Sr. Presidente, a escolha para me receber de Américo Jacobina Lacombe. Amigo de meu pai, o acadêmico que conheço há mais tempo, trata-se de figura destacada no estudo da História do Brasil. Por diversas vezes, em caso de dúvidas, ouvi Afonso Arinos dizer: “Vou consultar o Américo que sabe tudo!”; “Como sabe o Américo!” No Diário de Bolso escreveu:

Américo, meu velho amigo que conheci por intermédio de San Tiago Dantas, provoca sempre minha admiração pela sua integridade e pela precisão de seu saber histórico. Pertence, com Pedro Calmon e Sérgio Buarque de Holanda, aos três melhores conhecedores do Império brasileiro. Sua memória não falha: é jovem aos sessenta e muitos anos. 
    
E eu acrescentaria, ainda mais jovem aos 82 anos. De sua obra, destaco o resumo primoroso Um Passeio pela História do Brasil, o volume de metodologia Introdução ao Estudo da História do Brasile a biografia Afonso Pena e Sua Época. Modelo de virtudes, chefe de família exemplar, foi no culto modesto de Rui Barbosa que consagrou grande parte de sua vida, podendo chamar-lhe “servidor público exemplar” na direção há mais de 52 anos na Casa de Rui Barbosa. Sucedendo a Pedro Calmon, foi na presidência do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro dirigente excepcional, dignificando as tradições da instituição cultural mais antiga do Brasil. A saudação de Américo Jacobina Lacombe me comove e me engrandece. 
    
    
A CADEIRA 25
    
A Cadeira 25 é, na multiplicidade dos integrantes, vivo retrato do Brasil: a um baiano de Itaparica, Franklin Dória, Barão de Loreto, sucede um pernambucano de Recife, Artur Orlando, vindo, em seguida, um fluminense de São João Marcos, Ataulfo de Paiva, um paraibano de Pilar, José Lins do Rego, e um mineiro de Belo Horizonte, Afonso Arinos, não havendo recorrência nas naturalidades.

Agora a ela ascende um carioca de Botafogo, nascido nesta cidade de onde jamais se despregou, a ela votando a paixão de um enamorado. Enraizou-se no bairro, quase no mesmo local que Augusto Meyer descreveu com mão de mestre: 
    
Na enseada imensa, a maior do mundo, escolhi uma pequena enseada, a mais graciosa, a mais redonda, a mais suave do mundo, entreaberta em forma de ferradura, entrefechada às brisas da baía, esse mar interior, na Língua dos índios. E aqui, entre o Caminho Velho da Pedreira e o Caminho Novo de Botafogo, entre Senador Vergueiro e Marquês de Abrantes, comecei a criar musgo. Tanto musgo já criei, afinal, que hoje não posso admitir uma querência que não envolva no mesmo abraço as duas enseadas; Guaíba e Guanabara. Com a última revolução do tráfego, inaugurada há pouco na minha esquina, a memória bairrista e conservadora reage, avivando recordações de ontem. Há uns 20 anos, assim resmunga o conformado inconformado que não aprende a mudar, tudo era mais Botafogo na Praia de Botafogo. Nos bondes vagarosos e dignos, ainda era possível abrir o jornal, os cobradores de bigodeira e unha comprida no mindinho só de quando em quando empernavam os pingentes, avisando: Olha à direita! Como ainda não havia Caparaó, nem Massilia, nem Paraopeba, o alteroso Juruá dominava a paisagem, e com algum esforço de acomodação topográfica não custava muito imaginar as quintas ou chácaras de outros tempos, inclusive uma casa que nunca existiu, ou melhor, que existe, cada vez mais, no começo de Quincas Borba: “Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta...”

Eu por mim confesso: esta grande casa de Botafogo, a casa de Rubião, chega a parecer-me bem mais duradoura do que todos os edifícios vertiginosos que espiam com altivez a enseada, lá do alto dos seus andares. 
    
Ao se pretender estabelecer para a Cadeira 25 um fio condutor, poder-se-á chamá-la a Cadeira dos homens de direito, Franklin Dória, escritor, poeta, tradutor de Evangelina, de Longfellow, destacou-se na profissão do Direito e os trabalhos reunidos em Estudos de Direito atestam o saber jurídico. Ocupou cargos de presidente de Província e no Ministério no período imperial e teve carreira política destacada, o que o levou a ser agraciado com o título de Barão de Loreto. Acompanhou, com a mulher, no exílio o Imperador.

Artur Orlando é um dos sucessores da Escola de Recife, o movimento chefiado por Tobias Barreto que empolgou a Faculdade de Direito do Norte, com repercussões de extrema importância. Da sua obra variada, de forte cunho filosófico, desejo assinalar o livro Propedêutica Jurídica, que revela interesse pela integração entre o Direito e a Economia, com a utilização, pela primeira vez, entre nós, de meu conhecimento, da expressão “Direito Econômico” a que o orador de hoje, 65 anos depois, dedicaria um livro.

Ataulfo de Paiva é o exemplar típico da belle époque carioca e foi, fundamentalmente, magistrado. Na presidência do Tribunal de Apelação do Rio, destacou-se por profícua obra administrativa. Dos demais ângulos de sua vida, nada de mais exato poderia ser dito do que as expressões de Austregésilo de Athayde ao receber José Lins do Rego:

Foi um leal servidor desta Casa, e todos aqui queremos dar depoimento de seus préstimos. O que lhe faltou em títulos literários quis sempre suprir em devoção aos interesses da Companhia.

Confessamos a saudade que nos deixou e queremos honrar a memória de Ataulfo de Paiva nesta noite, que também é a ele dedicada, a este companheiro assíduo, incrivelmente veraz e fidalgo, espécie de irmão leigo da Ordem, que só deixou de frequentar-nos quando vencido pela moléstia nos cimos de seus noventa janeiros. 
    
A exceção a essa vinculação profissional foi José Lins do Rego, um dos mais lídimos representantes do romance do ciclo da cana-de-açúcar, no qual retratou com rara felicidade o declínio do patriciado rural da região ao qual pertencia. Tipo humano de grande riqueza, integrou-se na paisagem carioca como se aqui tivesse nascido: torcedor do Flamengo, frequentador da Colombo, foi também cronista de rara maestria, e sua seção “Conversa de Lotação” – na época em que eles existiam – espelha essa realidade. As suas páginas que mais me sensibilizam são as da crônica publicada em 17 de agosto de 1946: 
    
Morreu, em São Paulo, o bom e abnegado Venancio Filho, em pleno exercício de suas funções de trabalhador infatigável pela glória de Euclides da Cunha. Em tempos que correm, de terrível e constante oportunismo, a vida de um Venancio Filho é verdadeiro padrão de honradez, de amor ao trabalho, de fidelidade a causas que não dão empregos e cartórios. A vida de Euclides da Cunha enchia a sua vida de homem enfermiço, mas de vontade tão firme e de coração que só vibrava pelas grandes emoções do espírito. Este era o homem Venancio Filho, mestre que tanto fizera pela elevação cultural brasileira, no seu esforço de técnico, de humanista, de apóstolo. O idealista morreu em São Paulo, fulminado por uma embolia, no instante mesmo em que voltava de proferir uma conferência sobre o imenso Euclides, que era o grande entusiasmo de sua vida. 
     
     
A FORMAÇÃO DE AFONSO ARINOS
    
Elogio justo e inexcedível sobre Afonso Arinos foi o de Pedro Nava: 
    
Escrever sobre Afonso Arinos de Melo Franco é como abordar um mundo. Principalmente para quem o faz menos mandado por motivações intelectuais que pelas que nascem do coração. Como englobar em escassas páginas cada uma das múltiplas facetas desse poliedro humano? Eis aí a primeira perplexidade. Falar de quem? Do poeta, do ensaísta, do crítico, do cronista, do historiador, do biógrafo, do memorialista, do tratadista de Direito, do teórico político, do revolucionário, do oposicionista, do secretário estadual, do deputado, do senador, do ministro, do embaixador, do mineiro, do brasileiro, do ibero-americano ou do latino? 
    
A mesma perplexidade enfrenta o orador de hoje, tendo de resumir em minutos os vários aspectos desta personalidade tão rica e universal.
 
Afonso Arinos de Melo Franco se vinculava a dois tradicionais troncos da vida mineira: pelo lado paterno, provinha dos Melo Franco de Paracatu, de João de Melo Franco ali radicado no final do século XVIII, cujo filho, Francisco de Melo Franco, foi médico ilustre e autor do célebre livro Reino da Estupidez, condenando os métodos retrógrados da Universidade de Coimbra; e de Manoel de Melo Franco, deputado à Assembleia Geral em 1845, compondo seis gerações de parlamentares até os nossos dias.

Virgílio de Melo Franco, juiz, político e professor, foi pai de Afrânio e de Afonso Arinos, este ocupante, nesta Casa, a Cadeira 40, escritor de mérito, pioneiro da Literatura Regional, e que, habitando longos anos em Paris, nunca se desprendeu das raízes mineiras e brasileiras, que indicava sempre aos jovens que se iniciavam na Literatura, como foi o caso de Alceu Amoroso Lima e do sobrinho.

Afrânio de Melo Franco foi eminente político, cuja biografia primorosa foi escrita pelo filho. De sua prole, cabe mencionar os irmãos Caio e Afrânio, que se destacaram na Diplomacia, chegando ao posto de embaixador, o primeiro também escritor; Virgílio de Melo Franco, figura singular de político e de homem de ação, dotado de grande encanto pessoal; e as irmãs, D. Zaíde, Sra. Embaixador Jaime Chermont, falecida há alguns anos, D. Maria do Carmo, Sra. José Nabuco, e D. Anah Chagas, casada com o nosso confrade Carlos Chagas.

Do lado materno, filia-se à família Alvim, à figura de Cesário Alvim, político liberal do Império que na Câmara de Deputados afrontou o regime imperial e que viria a ser, com a República, primeiro presidente da Província de Minas e Ministro do Interior.

Nascido em Belo Horizonte em 27 de novembro de 1905, sua formação se fez no Rio de Janeiro, muito embora as raízes mineiras sejam um dos traços fundamentais da personalidade. Os primeiros estudos realizaram-se no Colégio Mello e Souza, cabendo assinalar a influência marcante que teve em sua formação o professor de História João Batista de Mello e Souza, a quem atribui o interesse apresentado por toda a vida por esses estudos. Outra influência marcante foi do Colégio Pedro II, onde se aproximou de amigos de sempre, Pedro Nava, Prado Kelly e Prudente de Moraes Neto, e onde teve plêiade de grandes professores, destacando-se João Ribeiro, professor de História, mas sobretudo interessado nos problemas de Literatura.

Fundamental para sua formação foi a estada em Genebra, durante os anos de 1924 e 1925, na companhia do pai, que representava o Brasil na Liga das Nações. Não realizou os estudos regulares, mas os cursos avulsos com o Professor Albert Sechaye, organizador da publicação das obras de Ferdinand de Saussure, foram fundamentais no substrato de sua formação intelectual. Um estudo sem programas, de análise de grandes figuras da Literatura Francesa, sobretudo Montaigne e Rousseau, traçou-lhe marcas indeléveis em seu espírito. De Montaigne, tornou-se dedicado leitor, presença constante em suas reflexões.
 
No ambiente acanhado e estreito dos estudos universitários da época, as opções eram poucas. Afonso Arinos se inclina pelo Direito, para ser “bacharel como toda gente”, provocando protestos de um amigo da família, que o desejava encaminhado para outros estudos: “Você acabou na vala comum!” A memorialística de Afonso Arinos, como de tantos outros homens do Direito, apresenta uma constante: a influência desses cursos como aprendizado profissional foi restrita. Por exemplo, Joaquim Nabuco consagra todo um capítulo do livro Minha Formação à influência da obra do pensador inglês Walter Bagehot A Constituição Inglesa e não tem uma linha sequer sobre os estudos realizados em Recife e em São Paulo. Chegando a São Paulo, diria Rui Barbosa em carta a amigo: “Estou engolfado na vida acadêmica.” Mas a vida acadêmica não era a assistência às aulas e a preparação dos exames, mas a participação nos grêmios literários e filosóficos, nas lojas maçônicas, a redação de ensaios e poemas, a oratória acadêmica, e, muitas vezes, a vida boêmia.

A passagem de Afonso Arinos pela Faculdade de Direito não discrepa desse perfil. Ganha-se logo a impressão de que nenhuma influência lhe adveio do curso, formando-se, afinal, sem entusiasmo em 1927, ano do centenário dos cursos jurídicos. 
    
    
O TRÍPTICO INICIAL
    
O livro de estreia foi a tese Responsabilidade Criminal das Pessoas Jurídicas, de 1930, escrita na época em que era promotor público na cidade de Belo Horizonte e com vistas à realização do concurso de professor, não ocorrido. A tese era trabalho de iniciante, mas revelava, pela novidade do assunto, tratamento que até hoje desperta o interesse dos especialistas.

Voltando ao Rio, as atividades se concentraram na História e na Crítica Literária, exercendo profissionalmente as funções de advogado do Banco do Brasil.
 
Logo em seguida, elaboraria tríptico que Manuel Bandeira chamaria “uma espécie de vigília das armas de cavaleiro que pretendia dedicar a vida ao serviço político de sua Pátria”.

O primeiro deles, Introdução à Realidade Brasileira, publicado pela Editora Schmidt em 1933, foi comparado aos livros da época de idêntica temática: Maquiavel e o Brasil, de Octavio Faria, e O Sentido do Tenentismo, de Virgílio Santa Rosa. Causou grande repercussão pelas circunstâncias do momento e pela projeção que tinham no cenário político o pai e o irmão, mas revelava reflexão expressiva, como análise da revolução comunista e do regime fascista. Digna de nota é a tônica do livro em que destaca o papel do intelectual, contestando a teoria de Julieta Benda, em La Trahison des Clercs, de que o intelectual deveria se isolar na torre de marfim e não ter papel atuante no processo social.
 
Preparação ao Nacionalismo, editado em 1934, é estudo de índole política e tem análise percuciente da Revolução Russa, até então pouco conhecida entre nós. Nos capítulos finais sobre a projeção futura do problema internacionalista estão nítidas as inquietações sobre o momento brasileiro, que caracterizara o livro anterior.
 
Finalmente Conceito de Civilização Brasileira, publicado em 1936, examina aspectos psicológicos de nossa formação social, em âmbito mais amplo do que os tópicos puramente políticos, que predominaram nas duas obras anteriores. O livro absorvia a experiência profissional no magistério de História da Civilização Brasileira da Universidade do Distrito Federal, a brilhante iniciativa de Anísio Teixeira, cedo malograda.
 
Essa experiência foi abertura de caminhos para os estudos históricos que constituiriam nova fase de sua vida intelectual. O convívio com os professores franceses contratados para a Universidade, um discipulado de alto nível, a possibilidade de realização de pesquisa e a publicação de livros constituíram grande apelo cultural. Por isso, quando a Constituição de 1937 proibiu as acumulações, ficou em dúvida se optava pelo cargo de advogado do Banco do Brasil ou pelo de professor da Universidade. Socorreu-se do conselho de seu sábio amigo Edmundo da Luz Pinto, que lhe recomendou: “Meu Afonso – há duas casas que a gente nunca deve deixar, uma vez lá dentro. Uma é a Igreja Católica; e outra, o Banco do Brasil. E você sabe por quê? Porque, quando o dinheiro falta nelas. Nossa Senhora vem e intera...”  

    
    
OS TRABALHOS INICIAIS DO HISTORIADOR
    
Os trabalhos iniciais de historiador representam ponto de especial relevo na obra de meu antecessor. Não resultaram de projetos planejados de estudos e pesquisas, mas se realizaram ao sabor das circunstâncias e por instigações de momentos diversos. De 1937, é o livro O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa com o subtítulo As Origens Brasileiras de Teoria da Bondade Natural. Trata-se de obra singular no quadro da História das Ideias na Literatura Brasileira, modelo de erudição, tendo se originado remotamente das lições sobre a obra de Montaigne do professor Sechaye. Estudos posteriores sobre a obra de Rousseau levaram a ampliar o escopo do trabalho, que inicialmente tinha o título Jean-Jacques Rousseau e o Índio Brasileiro. Iniciada a coleta do material em 1932, a redação só terminou cinco anos depois, constituindo trabalho de pesquisa e interpretação criadora. Foi pena que não tivesse o devido realce por ocasião das comemorações do bicentenário da Revolução Francesa.

Síntese da História Econômica do Brasil, publicado pelo Ministério da Educação e Saúde em 1938, originou-se de curso de férias realizado em Montevidéu. Nesse trabalho, aprofunda, embora de forma sucinta, o estudo da nossa História Econômica através dos ciclos, partindo do Pau-Brasil até o Ciclo Industrial. Revela grande conhecimento histórico e uma menção às referências literárias, que será uma das constantes de sua produção intelectual. Acompanhou-o nessa viagem, tratando da História Política do Brasil, San Tiago Dantas, que esta Casa, num momento de dúvida, não elegeu para o convívio. San Tiago Dantas somente preparou sumários que, junto com o livro de Afonso Arinos, até hoje apresentam interesse para os estudiosos da nossa História. Nessa viagem se estreitaram as relações entre os dois intelectuais, iniciadas ao tempo da Livraria Católica de Augusto Frederico Schmidt, que posições ideológicas diversas tinham levado ao afastamento e que, a partir de então, se consolidam.

Cabe mencionar As Ideias da Inconfidência, tese ao Terceiro Congresso de História Nacional de 1938, promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. O título inicialmente eraInconfidência Mineira, mas o autor decidiu restringi-lo para esclarecer a gênese e a elaboração das ideias do movimento. Esse trabalho foi depois publicado no livro Terra do Brasil. O estudo erudito demonstra a plena realidade do movimento conspiratório, espancando dúvidas, como as de Capistrano de Abreu, de que fora manifestação puramente intelectual sem resultados concretos.

Um momento de afetividade leva-o a escrever, em 1942, com o título expressivo Um Soldado do Reino e do Império, a vida de seu ascendente, o Marechal João Crisóstomo Callado, que participara das guerras napoleônicas aos episódios da Maioridade. Nesse trabalho, mais uma vez estão presentes o caráter de erudição, a extensa pesquisa em fontes primárias e o cuidadoso estilo literário.
 
Por indicação de seu primo e grande amigo Rodrigo M.F. de Andrade, diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), realizou, de outubro a novembro de 1941, curso sobre Desenvolvimento da Civilização Material no Brasil, publicado em 1944 por aquela repartição. Destinou-se o curso ao pessoal técnico do órgão, que sentia necessidade de um conhecimento maior dos aspectos materiais do processo histórico da nossa civilização. Trata-se, na verdade, de belo esforço de síntese, analisando assunto pouco estudado. Sobre esse livro, escreveu meu saudoso mestre Alberto Rangel, cujo prenome trago em sua homenagem: 
    
Não sei como gabar o seu trabalho. É sólido e bem alinhavado, demonstrando a erudição que já é a dos velhos quilotados no alfarrábio e todo palhetado do que é preciso em tal gênero de trabalho, para que, ilustrando, não enfare. Enfim, é coisa onde logo se vê a marca M.F., isto é, fecundidade, probidade e saber variado. Vá-se louvar a macieira porque dá maçãs e vá-se vituperar certas eufórbias porque são imprestáveis ou venenosas. É de seu oficio escrever bem, ser interessante, pesquisador e penetrativo... Guarda-se em segredo o adjetivo da lisonja para os que o merecem e saque-se do palavrão amargo de desgosto para os ineptos. Principalmente para os que, sem nenhuma qualidade de escritor, infestam as letras nacionais. 

Advogado do Banco do Brasil servindo na Consultoria Jurídica, primeiro com Afonso Pena Júnior, seu grande amigo, companheiro em Montaigne, e depois com João Neves da Fontoura, foi por este indicado ao presidente do Banco, Marques dos Reis, para elaborar a História do Banco do Brasil, que, a seu ver, “é, até certo ponto, a História Financeira do Brasil”. O volume, pronto em 1943, só foi editado em 1948, por iniciativa do saudoso Antônio Gontijo de Carvalho, o grande amigo. A obra ficou apenas em um volume, relatando a primeira fase (1808-1835), pois logo ocorreu a divulgação do Manifesto dos Mineiros, levando-o à demissão das funções naquele Banco, e circunstâncias posteriores não lhe possibilitaram retomar o trabalho. O volume que Manuel Bandeira, no discurso de recepção, declarou com franqueza não ter tido coragem de ler se inscreve como um ponto alto na nossa Historiografia econômica. 
    
    
O CRÍTICO LITERÁRIO
    
Esta fase da atividade intelectual se conjuga com as atividades de crítico literário, melhor dizendo, de crítico tout court. Em 1927, quando se encontrava em Minas Gerais, exercendo a promotoria pública e escrevendo no Diário de Minas, ao enviar os artigos para a noiva, esta lhe argumenta com elegância que ele ficava nas ideias gerais. Comentando mais tarde, diria: “Ela tinha toda a razão. Nunca consegui fazer a verdadeira Crítica Literária. Sempre exerci mais o gênero impressionista do books review. Meus dois livros de Crítica, Mar de Sargaços e Portulano, mostram bem isso.”

De fato, ainda moço, o meu antecessor já vislumbrara que o seu interesse era pelas ideias, o que se revela de forma clara nos seus trabalhos de Crítica Literária. Em Espelho de Três FacesIdeia e TempoMar de SargaçosPortulano, nota-se um autor preocupado com a visão literária do mister, mas também com os fundamentos históricos, como são, por exemplo, os estudos “Viagem Stendhaliana” e “Evocação de Rousseau”, dois dos seus grandes ídolos literários.

Momento alto dessa tarefa é a Introdução e Notas à edição das Cartas Chilenas, publicadas em 1940 pelo Ministério da Educação, encabeçadas pela autoria de Critilo (Tomás Antônio Gonzaga). As Cartas Chilenas constituíram durante muito tempo enigma literário, e sobre elas se pronunciaram vários autores, sem conclusão definitiva. Primitivo Moacir, cujo nome evoco com saudade, costumava dizer que, se fosse Presidente da República, baixaria decreto, proibindo que se escrevesse mais sobre as Cartas Chilenas.
 
Sobre a autoria houve divergências. Alguns, como o irmão de Afonso Arinos, Caio de Melo Franco, inclinando-se por Cláudio Manuel da Costa; outros, como Xavier da Veiga, por Alvarenga Peixoto; ainda outros, na tese que hoje se mostra vitoriosa, por Tomás Antônio Gonzaga; e atribuições menos exatas, como a de Cecília Meireles, por Diniz e Silva; ou a teoria, que teve certa primazia da autoria conjunta.

No final da década de 1930, novos especialistas se debruçaram sobre o problema, sobretudo na coleta de documentos que foram fortalecendo a autoria de Tomás Antônio Gonzaga, como o nosso Confrade Afonso Pena Júnior e Luís Camilo de Oliveira Neto, que recolheu na Torre do Tombo documentos importantes sobre a matéria.

Luís Camilo de Oliveira Neto, grande amigo de Afonso Arinos, deixou obra escrita reduzida, mas se tornou exímio conhecedor da História Colonial Mineira, reunindo valioso acervo bibliográfico e documental. Realizou importante tarefa de reorganização dos arquivos do Itamaraty e teve papel relevante na luta contra o Estado Novo, sendo responsável pela publicação da famosa entrevista de José Américo de Almeida. Tocante é a descrição do Roteiro Lírico de Ouro Preto; “essa imensa ternura brasileira que faz Luís Camilo escalar, à noite, os arquivos, suspirando pelos infólios, qual menestrel enamorado”.

A análise de caráter estilístico feita por Manuel Bandeira fortaleceu ainda mais a tese de autoria de Gonzaga, e o estudo de Afonso Arinos, analisando a matéria com a amplitude de seus conhecimentos jurídicos, históricos e literários – divergindo com tristeza de seu próprio irmão, que se inclinou pela autoria de Cláudio Manuel da Costa –, consolidou a posição de que o autor dasCartas Chilenas era Tomás Antônio Gonzaga. Mais tarde, Rodrigues Lapa, em livro definitivo, que conta com sólido prefácio de Afonso Pena Júnior, parece ter resolvido em definitivo a questão.
 
Artigos esparsos – não divulgados em livros – publicados primeiramente no suplemento de A Manhã, jornal do qual se afastou quando da sua demissão do Banco do Brasil, por ser de propriedade do Governo, e a partir desse momento no rodapé de crítica do Diário de Notícias, consolidam o ponto de vista de Afonso Arinos como um crítico de ideias, ou melhor, crítico tout court
    
    
O INGRESSO NA POLÍTICA
    
O ano de 1943 é de certa maneira marco divisor na vida de Afonso Arinos. Dedicado basicamente ao mister de advogado e escritor, não tinha tido nenhuma participação maior na vida política, embora acompanhasse com interesse as atividades do pai e do irmão Virgílio.

Se na estirpe Melo Franco predominou sempre o interesse pela Política e pelas Letras, é de se indagar o ingresso tardio de Afonso Arinos na Política. A explicação pode ser dada pelo fato de o pai e o irmão Virgílio terem atuação destacada no cenário político. Nos preparativos da Revolução de 1930, foi Virgílio um dos principais arautos da articulação de Minas com o Rio Grande do Sul, e Afrânio o primeiro chanceler da revolução. Assim, o espaço estava tomado para que outro Melo Franco ingressasse na Política.

Em 1933, Virgílio é eleito deputado na Assembleia Nacional Constituinte, e Afrânio aceita ser deputado estadual para participar da última etapa de sua vida, como legislador na preparação da Constituição Mineira. A outorga da Carta Constitucional de 10 de novembro de 1937 representaria o ostracismo dos políticos mineiros: Afrânio, no final de sua vida gloriosa, limita-se a participar das atividades da Comissão Jurídica Interamericana; Virgílio é ativo no grupo que, no primeiro momento, concentra esforços no combate às tendências nazifascistas, presentes em escalões da intelectualidade e inclusive no próprio Governo. Em episódio curioso, Afonso Arinos, o irmão Virgílio e o cunhado José Nabuco mandam telegrama ao Primeiro-ministro Churchill apoiando os esforços na luta contra o Eixo. Surpreendentemente, recebem depois resposta do Embaixador, agradecendo a manifestação que constituíra estímulo para o primeiro-ministro.

Surge a ideia de um manifesto liberal, originário de Minas, de combate à Ditadura. Os antecedentes do Manifesto foram descritos minudentemente por Carolina Nabuco na A Vida de Virgílio de Melo Franco, cabendo aqui apenas destacar a posição proeminente que teve Afonso Arinos na redação das várias minutas, juntamente com o irmão Virgílio, Luís Camilo de Oliveira Neto, Dario de Almeida Magalhães e Odilon Braga. O Manifesto, divulgado clandestinamente, produziu grande impacto, embora tivesse sido considerado por muitos como uma manifestação débil e anódina, mas despertou grande reação do poder, que arbitrariamente demitiu das funções públicas os signatários e forçou empresas privadas a fazerem o mesmo. Afonso Arinos é demitido, com base no art. 177 da Constituição, do cargo de advogado do Banco do Brasil. Em discurso logo em seguida pronunciado na inauguração do prédio do Ministério da Fazenda, o Presidente Getúlio Vargas referiu-se veladamente aos autores do Manifesto, chamando-os de “leguleios em férias”. Milton Campos, também vítima da arbitrariedade, com leve tom irônico declarou que “o Manifesto, tendo sido feito para causar onda, acabou criando vaga”.

A consequência imediata foi a articulação de forças políticas da oposição para constituir um partido, que seria a União Democrática Nacional – nome, aliás, de autoria de Afonso Arinos – e que lançaria à Presidência da República o nome do Brigadeiro Eduardo Gomes.
 
Na organização do novo partido, papel fundamental coube a Virgílio. Este se recusa a aceitar a candidatura ao mandato eletivo por Minas Gerais, em grande parte por considerar que era chegada a hora de o irmão mais moço ingressar na Política. Candidato a deputado federal pelo Estado natal, Afonso Arinos obtém a primeira suplência, não tendo assim participado dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, mas em 1947 assume o posto, com a ascensão de Milton Campos ao Governo de Minas. 
    
    
O PARLAMENTAR
    
Ao assumir as funções, é logo indicado para membro da Comissão de Constituição e Justiça, lugar onde só se ingressava após vários anos de mandato. A atuação inicial se exerce nas comissões: apresenta projeto de criação da Comissão de Leis Complementares da Constituição, visando a dar execução a vários dispositivos constitucionais que necessitavam de regulamentação, e tem atuação destacada, defendendo a ilegalidade da cassação dos mandatos de deputados do Partido Comunista. Ponto alto de seu trabalho é a apresentação do projeto que proíbe a discriminação racial, que, convertido em lei, passou a ser conhecido como Lei Afonso Arinos.
 
Na legislatura seguinte, indicado líder da oposição, trava o combate ao Presidente Getúlio Vargas, com o célebre discurso de 13 de agosto de 1954, que precedeu o suicídio do presidente. Em 1958, é eleito Senador da República, desta vez pelo Estado da Guanabara, em campanha memorável na companhia de Carlos Lacerda, quando,utilizando o “caminhão do povo”, chegou aos pontos afastados do Estado. O homem, considerado aristocrata, de ideias refinadas e leituras requintadas, juntou-se ao povo no esforço de obtenção do mandato eletivo.

No Senado Federal, sua atuação não foi menos profícua, pois a Câmara Alta oferecia ambiente mais propício ao exercício dos conhecimentos jurídicos e políticos. Desta fase, o importante a assinalar é a atuação que teve na discussão do projeto da Constituição de 1967, emanado da Presidência Castelo Branco, especialmente a crítica contundente ao capítulo dos Direitos e Garantias Individuais, mostrando as falhas, as incoerências e o completo abandono da tradição do Direito Constitucional Brasileiro. Figuras ligadas ao Governo, impressionadas com essas críticas, tiveram a hombridade de chamar o senador e crítico e solicitar-lhe a apresentação de substitutivo, incluído na Constituição de 1968.

E em 1986 voltaria ao Senado Federal, em votação consagradora, sem ter se empenhado na campanha eleitoral. 
    
    
O PROFESSOR DE DIREITO
    
O ingresso nas atividades políticas fez certamente crescer o interesse pelo Direito Público, e a projeção como publicista e constitucionalista destacou-o no cenário nacional. Ao assumir o mandato de deputado federal, inclina-se pela especialidade do Direito Constitucional e luta pela conquista da cátedra universitária. A disciplina criada na lei de 11 de agosto de 1827 – Direito Público Constitucional – sobreviveu com pequenas mudanças de nome até 1940, quando Vargas, desejando que a matéria fosse ensinada na ótica do regime, transfere os professores da disciplina para uma nova, a Teoria Geral do Estado, e provê a cadeira de Direito Constitucional com figuras ligadas ao regime.

Com a redemocratização, tais cadeiras são consideradas vagas, e são abertos os concursos. Afonso Arinos obtém, nos anos de 1949-1950, as cátedras de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro e, em seguida, a da Faculdade de Direito da hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na primeira, apresenta tese sobre Leis Complementares da Constituição, matéria nova que versara na Câmara de Deputados. Da banca examinadora, fizeram parte os nossos confrades Aníbal Freire e Pontes de Miranda. Conta em suas memórias que o fato de ser candidato único colocou-o numa posição de certa benevolência, mas que: 
    
Aníbal Freire foi quem examinou de fato e me surpreendeu pela trama cerrada e firmíssima de sua análise, que levou minha pobre tese a um pelourinho. Foi muito cortês, mas muito severo. Respondi como pude, de maneira bem inferior à arguição de mestre Aníbal, que foi generoso na nota máxima. Aliás, ele mesmo acentuava que não gostava de examinar concursos e que só aceitara naquele caso “em homenagem” a mim. Fiquei grato pela homenagem e pela nota, mas aprendi bem a lição, pensando na defesa de tese do outro concurso. Senti que a coisa podia tornar-se séria nessa prova.
 
    
De fato, no outro concurso, com oito candidatos e com banca ainda imbuída do velho estilo coimbrão, a disputa revelou-se acirrada. A tese versava sobre História e Teoria do Partido Político no Direito Constitucional Brasileiro, e ele revela: 
    
parecia fraca aos juristas. E, de fato, era. Seu tratamento fora mais histórico-sociológico que jurídico; sua técnica era talvez deficiente; sua contribuição, em termos de utilidade imediata, medíocre. Mas possuía para mim uma grande vantagem. O assunto fora tratado de maneira aberta e larga, num plano mais cultural do que científico, o que levava fatalmente seu debate a se espraiar para as áreas mais vastas das ideias gerais. Ora, isto era exatamente o que convinha ao meu tipo de espírito e à minha maneira habitual de exposição. 
    
E de fato foi mais uma vez vitorioso. Assumiu o exercício das duas cátedras, que desempenhou com proficiência, intercalado pelas funções de parlamentar. Do magistério de Afonso Arinos, surgiu curso previsto para quatro volumes, dos quais foram publicados dois: um sobre a Teoria Geral, dedicado a Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente, e outro sobre a Formação Constitucional do Brasil, dedicado a Afonso Pena Júnior. Do exercício do mandato parlamentar e dos votos e pareceres pronunciados, resultou o livro Estudos de Direito Constitucional, com trabalhos sobre temas diversos, nos quais mais uma vez se revela a simbiose entre o jurista e o historiador. O capítulo “O Constitucionalismo Brasileiro na Primeira Metade do Século XIX” é modelo dessa síntese feliz. 
    
    
A ATIVIDADE INTERNACIONAL
    
Curto interregno foi a fase internacional de Afonso Arinos, bem menor do que a do pai, mas ainda assim cheia de realizações e iniciativas. Ministro das Relações Exteriores por duas vezes, a primeira no Governo Jânio Quadros (1961), foi um dos principais artífices da política externa independente, a que deu o prestígio de sua inteligência e a criatividade de suas ideias. Os seis meses em que exerceu essa função, ele o fez de forma inequívoca e exata, sobretudo na filiação do Brasil a uma nítida política anticolonialista e na tarefa de aproximação do Brasil com os países da África. Numa viagem, conjugou essas duas metas, participando das comemorações da Independência do Senegal e da posse do Presidente Senghor e, logo em seguida, viajando para Portugal, a fim de expor ao governo português a nova posição adotada pelo Brasil. O relato dessa viagem a Portugal é extremamente expressivo, revelando a posição retrógrada com que os dirigentes portugueses encaravam o problema. A descrição da visita ao Primeiro-ministro Oliveira Salazar, já velho e cansado, mas obstinado em posições superadas pelo tempo e querendo forçar que o Brasil a elas continuasse atrelado, é reveladora. O exercício da mesma função em 1962 no Gabinete parlamentarista de Brochado da Rocha, já numa fase de grande ebulição política e enfraquecimento do regime e por curto período, não possibilitou uma atuação mais profícua. A atuação na chefia da delegação brasileira às XX.ª e XXI.ª Conferências da Assembleia Geral das Nações Unidas (1961-1962) e como representante do Brasil na Conferência do Desarmamento em Genebra, em 1963, foi mais uma mostra de sua atuação política, representando com dignidade os interesses do Brasil nos foros internacionais. 
    
    
AS DUAS GRANDES BIOGRAFIAS
    
A obra historiográfica de Afonso Arinos culmina com as duas grandes biografias do período republicano: Um Estadista da República – Afrânio de Melo Franco e seu Tempo e Rodrigues Alves –Apogeu e Declínio do Presidencialismo.
 
O próprio Afonso Arinos dá a chave do seu interesse pelos estudos históricos, quando fala do curso secundário realizado no Colégio Mello e Souza, aluno do Professor João Batista Mello e Souza. Descreve a técnica didática utilizada, com a feitura de cadernos de própria redação dos alunos sobre os pontos capitais da História pátria, com gravuras testemunhando os episódios.

O interesse pela vida de seu pai veio ainda moço, em Genebra, em 1925, com a leitura de Um Estadista do Império, de Joaquim Nabuco. A ideia jamais foi revelada ao pai, que dela só tomou conhecimento pela inconfidência de um amigo.

Com a sua morte, interrompe a seção literária mantida no Diário de Notícias e no artigo “Adeus à Crítica” explica: “Serei forçado a me dedicar a um trabalho cujo compromisso assumi não apenas comigo, mas também com outros e, sobretudo, para com alguém a quem não posso faltar.”

O livro nasceu com o título que recebeu, embora para alguns a escolha fosse “ambiciosa, quando não pretensiosa”, e outros amigos tivessem sugerido o título Um Estadista Republicano.

As comparações são, nesses casos, bastante perigosas. A que se faz entre a obra de Joaquim Nabuco e o livro de Afonso Arinos foi realizada por ele mesmo entre aquele livro e o de Bañados de Espinosa sobre Balmaceda. Após analisar as duas obras, Afonso Arinos afirma que: “É óbvio que a obra de Joaquim Nabuco é muito superior à de Bañados de Espinosa, esta, diga-se de passagem, muito lida no Brasil quando apareceu.” 
    
Gilberto Freyre declara que: 
    
Um Estadista da República era um livro barroco e Um Estadista do Império um livro predominantemente clássico, contrastando na diferença entre as técnicas da Historiografia nas duas épocas:

Uma, a História grandiosa, dramática, fixadora das culminâncias entre os fatos e os homens, drapejada de reminiscências antigas com personagens solenes, e togados,como heróis racinianos. Outra, a História mais copiosa que grandiosa, cuja força está na solidariedade dos pequenos fatos e não na emoção isolada dos grandes; História que é rio e não montanha, História mais interpretativa do que julgadora. Diferença parecida com a que os historiadores literários fazem entre a época ciceroniana e pós-ciceroniana, idade do ouro e a prata.

Afonso Arinos concorda com a análise de Gilberto Freyre e acrescenta: “Para ele o Império era clássico e a República barroca. Os dois livros não podiam ser diferentes do que são.”

Em entrevista a Homero Senna em 1950, publicada em República das Letras, quando o livro estava em elaboração, afirmaria:

A historiografia de Nabuco, como aliás a de todos os grandes de sua escola – Mackaulay Taine, etc... é uma Historiografia raciniana, com quê de Comédia Francesa, em que os personagens chegam ao proscênio, declamam sua parte e se retiram. É uma construção teatral, solene, poderosa, impressionante, não há dúvida, mas a técnica da moderna Historiografia é completamente outra. A História deve ser muito mais interpretativa do que descritiva e não pode deixar de levar em conta os ensinamentos de todas as ciências afins que se desenvolveram extraordinariamente nos últimos tempos: a Sociologia, a Economia Política, a Psicologia. De um historiador pós-proustiano, não se espera a preocupação do jogo cênico, tão caro aos mestres do século XIX. 
    
É inegável, portanto, que a comparação entre as duas obras faz ressaltar a importância do Um Estadista da República.
 
O próprio autor considera que nesse livro não pudera deixar de ser parcial em dois sentidos: na valorização do personagem e na apreciação, em função dele, de apenas uma parte da época estudada. E esclarece: 
    
Mas haverá biografia imparcial? Esta ideia em si mesma me parece absurda. Há, naturalmente, biografias destrutivas, hostis, mas isso não quer dizer imparcialidade. Reconheço que dentro da parcialidade inerente ao gênero biográfico há graduações, e mais parcial será o livro sobre um conhecido, sobre um amigo e, especialmente, sobre um pai.
    
A obra se encontra dividida em três partes: a primeira, a fase provincial, com Afrânio de Melo Franco iniciando a carreira política na província, nas funções de deputado estadual e secretário de governo; a segunda, a fase nacional, que se inaugura com a eleição para deputado em 1906 e se prolonga até o final da presidência Bernardes, em 1926; a terceira fase, a fase internacional, corresponde ao período em que é nomeado chefe da delegação brasileira à IX Conferência Interamericana de Santiago em 1923, representante à Liga das Nações, o trágico episódio da retirada do Brasil da Liga, o chanceler da revolução, o mediador da questão de Letícia e o presidente da Comissão Jurídica Interamericana. Esse estudo mostra o contraponto entre a vida do político mineiro e os grandes feitos da História republicana, e há capítulos verdadeiramente lapidares, como o consagrado ao Jardim da Infância, a questão das cartas falsas ou a discussão do Pacto Gondra na Conferência de Santiago.
 
A elaboração de Um Estadista da República iniciou-se com a morte de Afrânio de Melo Franco, em 1943, e só terminou no ano da sua edição, em 1955, período entremeado de intensa atividade política, que por certo não terá lhe proporcionado sempre vagar para a elaboração da obra. Conta-se que o editor José Olympio começou a imprimir os dois primeiros volumes enquanto o autor concluía o terceiro.
 
Não se tem bem presentes as motivações que levaram Afonso Arinos, alguns anos após o término da biografia do pai, a se lançar na feitura do livro sobre Rodrigues Alves, mas se pode aventar a hipótese, bastante plausível, de que foi mais um ato de devoção à sua mulher Anah, neta do presidente. Assim como em Um Estadista da República,  ele pode dispor dos arquivos do pai, que estavam sob sua guarda, os arquivos do grande presidente também chegaram às suas mãos, e vários outros arquivos lhe foram facultados, graças à amizade de Gontijo de Carvalho, como os de Rubião Júnior e Altino Arantes. Afonso Arinos poderia repetir a frase de Henri Irénée Marrou:L’histoire se fait avec des documents. Na verdade, a sua grande preocupação como historiador era chegar às fontes autênticas e só a partir daí alçar-se às hipóteses, às análises e às linhas de interpretação.
 
No prefácio, diz ele que: “Algum tempo – (não há determinação do período) – depois da publicação da biografia de meu pai, comecei a cogitar no preparo de longo estudo sobre a vida de Rodrigues Alves.”

A comparação entre os dois livros se faz logo presente, e o próprio Afonso Arinos reconhece que não é possível comparar em importância a vida de Rodrigues Alves à de Afrânio de Melo Franco, mas pretendia com esse segundo estudo constituir uma espécie de História da Primeira República, “estudada através de duas longas vidas de homens que fizeram da ação política a razão principal de suas existências”.

Cabe ainda acrescentar que a redação do último livro transcorreu em período mais curto, pois nela não pesaram as interferências da atividade política.
 
Escrevendo sobre a biografia do pai, Afonso Arinos transcreve a frase de James Boswell na Vida de Samuel Johnson: Nobody can write the life of a man but those who have eaten and drunk and lived in social intercourse with him.

Se essa afirmação fosse verdadeira, desqualificaria desde logo a segunda biografia, pois enquanto na primeira escreveu sobre seu pai, o autor nunca fez as refeições, bebeu ou viveu em contato social com Rodrigues Alves.

É importante assinalar que os dois livros conservam perfeita simetria, paralelismo singular, e constituem certamente uma boa comprovação da existência da Política do “café com leite”. De fato, na  medida em que predomina a Política Paulista no cenário republicano, é em Rodrigues Alves que encontramos a narrativa dos acontecimentos. No momento em que ascende à Política Mineira, é emUm Estadista da República que encontramos a descrição desses fatos. Quando pela primeira vez Afrânio de Melo Franco chega à Câmara dos Deputados – em 1906 –, terminava a primeira presidência de Rodrigues Alves, relatada de forma abundante no segundo livro. As fases da presidência Afonso Pena são um dos pontos altos de Um Estadista da República, e a Presidência Hermes da Fonseca, na qual Rodrigues Alves ocupa a presidência de São Paulo, é tratada em detalhe no segundo livro. Num momento apenas, convergem as posições: na chamada Regência Republicana, quando eleito Rodrigues Alves para a Presidência da República e não podendo exercer a função por motivo de doença, assume a presidência o vice-presidente Delfim Moreira, ocupando a função de regente Afrânio de Melo Franco, Afonso Arinos descreve os efeitos da morte de Rodrigues Alves: “Em 16 de janeiro de 1919, morria com Rodrigues Alves a República de 15 de novembro de 1889.”

É a partir desse período que Um Estadista da República analisa minuciosamente as presidências Artur Bernardes e Washington Luis, os movimentos da Aliança Liberal e da Revolução de 1930. Aliás, em Rodrigues Alves, em vários momentos, Afonso Arinos, para evitar a duplicação, se reporta à biografia de Afrânio de Melo Franco em relação a determinados fatos.
 
Assim, impõe-se a interrogação tão comum nos torneios escolares de outrora: Quem foi maior? César ou Aníbal? Cícero ou Demóstenes? Qual o livro maior? Um Estadista da República ouRodrigues Alves? As comparações são sempre perigosas, mas, expondo ponto de vista estritamente pessoal, parece-me que Um Estadista da República é um livro melhor construído, feito com mais vagar, com feitura mais equilibrada, em que o documento não afoga em certos momentos o texto.
 
Mas de Rodrigues Alves podem-se destacar aspectos importantes: o primeiro, o exame da atividade de Rodrigues Alves no campo econômico. Afonso Arinos sempre timbrou em declarar o seu desconhecimento dos problemas econômicos, mas as análises feitas sobre o Convênio Taubaté, a defesa da Política cafeeira nos Estados Unidos e a criação e funcionamento da Caixa Conversão são estudos importantes no âmbito da História Econômica.

Há capítulo nesse livro que merece especial menção, o consagrado à Burschenschaft, a “Bucha”, sociedade secreta criada na primeira metade do século passado por Julius Frank e que, por sua própria natureza, nunca foi estudada com profundidade. Com material que lhe deve ter sido fornecido por Gontijo de Carvalho, Afonso Arinos colocou uma luz nova sobre a matéria, fundamental para a compreensão da História Republicana, à espera de que, com o tempo, a eventual divulgação de seus arquivos permita traçar a evolução da sociedade, que tanta repercussão teve na Primeira República.
 
Escrevendo sobre Um Estadista do Império, disse Afonso Arinos que era “monumento e estátua que vão durar para o largo futuro do Brasil, como modelos inexcedíveis do gênero”. Das duas grandes biografias escritas por Afonso Arinos, pode-se repetir que são monumentos e estátuas que vão perdurar, erguidos às memórias de Afrânio de Melo Franco, Rodrigues Alves e Afonso Arinos de Melo Franco.

Contemporânea às biografias é a colaboração que prestou à elaboração da História do Povo Brasileiro, dirigida por Jânio Quadros, como responsável pelos períodos imperial e republicano, e contando com a colaboração dos nossos confrades Antônio Houaiss e Francisco de Assis Barbosa.
 
No volume IV, O Império – O Escravismo e o Unitarismo Político, escreveu os capítulos sobre o início do Império, abrangendo a Constituição de 1924, o período de Pedro I, a Regência e a Maioridade.

No volume V, A República – As Oligarquias Estaduais, Afonso Arinos trata dos governos do Marechal Deodoro e do Marechal Floriano e das presidências de Afonso Pena, Venceslau Brás e Delfim Moreira. É curioso assinalar que o capítulo sobre a Presidência Rodrigues Alves tenha ficado a cargo de Francisco de Assis Barbosa e não de Afonso Arinos. A escolha, entretanto, se explica, pois Francisco de Assis Barbosa, nascido em Guaratinguetá, conterrâneo de Rodrigues Alves, era estudioso do período e pretendia mesmo escrever obra a respeito do grande presidente, tendo colaborado de forma decisiva, como está registrado no prefácio, no livro sobre Rodrigues Alves.
 
Na apresentação da História do Povo Brasileiro, que é assinada pelos autores e colaboradores, é difícil caracterizar a autoria, e depoimento autorizado de Antônio Houaiss informa ter sido feita a várias mãos, mas é nítida a marca de Afonso Arinos.

A referência ao trabalho de Von Martius apresentado no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1843, sob o título “Como se Deve Escrever a História do Brasil”, deve ter sido incluída por sua iniciativa, e de sua autoria parecem ser as sínteses sobre os grandes autores da História da Política, da História Econômica, da História Social, da História da Literatura e das Artes e da História Diplomática. A citação final de Henri Irénée Marrou deve ter sido também de sua indicação: 
    
A pesquisa foi levada mais avante: esforça-se por encontrar, além das motivações conscientes, os móveis secretos que impeliam os heróis e, sobretudo, procurou identificar as realidades de ordem coletiva, das quais esses autores da História eram porta-vozes, testemunhas, ou algumas vezes joguetes; forças sociais e estruturas econômicas. 
    
Outro trabalho de importância, numa bibliografia extremamente pobre, é o opúsculo “As Ideias Políticas no Brasil”, série de conferências pronunciadas em curso de extensão universitária na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 1971, e posteriormente incluídas no volume O Som do Outro Sino. Nessas conferências, é analisada a evolução do pensamento político, e merece especial destaque o estudo do pensamento republicano, mostrando as várias tendências que se confrontavam, a partir do legismo de Rui Barbosa, e acentuando a importância do pensamento de Campos Salles e da obra de Assis Brasil. 
    
    
O MEMORALISTA
    
A Memorialística é gênero cultivado de longa data na Literatura Universal. Na Antiguidade, os memorialistas, Epicteto, Sêneca e Marco Aurélio eram de certa maneira ensaístas, com um certo quê de memorialistas. Santo Agostinho foi um dos patriarcas da Memorialística, e nas Confissõespode-se ter, ao lado do gênero Ensaio, o modelo de um tipo de Memórias. Na Idade Moderna, entre os mestres do gênero, podemos assinalar Marco Polo, Fernão Mendes Pinto e o maior deles todos, Saint-Simon. O século XVIII é rico em Memórias, bastando lembrar as de Casanova, mas o momento áureo do gênero é o século XIX, em consequência do subjetivismo romântico de Chateaubriand, que se torna o mestre insuperável do gênero, produzindo, na expressão de Afonso Arinos, o “maior livro de memórias já escrito”, ganhando relevo também as memórias políticas de Napoleão, Talleyrand, Metternich e Guizot. À obra de Chateaubriand, pode-se contrapor, do ponto de vista político, o Memorial de Santa Helena, e entre os Diários se destacam o dos irmãos Goncourt e o de Jules Renard, este tão do agrado de Marques Rebelo.
 
A Memorialística Brasileira inicia-se no século XIX, pois até então só havia cronistas: Visconde de Taunay e Joaquim Nabuco são os primeiros representantes dessa corrente no século passado. O século XX inaugura-se com as memórias políticas de Salvador de Mendonça e do conde Afonso Celso, vindo em seguida os nossos confrades Medeiros e Albuquerque, Rodrigo Octavio e Humberto Campos, mas, na observação exata de Afonso Arinos, foi a partir de Gilberto Amado que o gênero se impôs literariamente com estilo e autonomia.

Ponto alto da atividade intelectual de Afonso Arinos foi a elaboração dos três primeiros volumes das Memórias: A Alma do Tempo, Planalto e A Escalada, a que se juntou depois Alto Mar, Maralto, e a que viria se adicionar o Diário de Bolso. Os quatro primeiros volumes foram reunidos posteriormente no título único A Alma do Tempo e constituindo um dos momentos culminantes da moderna Memorialística Brasileira.
 
No capítulo inicial, conta ter iniciado a feitura do livro diante da página de um caderno, indagando do mistério da nebulosa incerta que é um caderno em branco nas mãos do escritor. Do momento inicial em que recebe a notícia do nascimento de seu neto Afrânio à página final em que está junto do neto João Rodrigo, olhando para o céu, e este lhe indaga quem está dirigindo a lua, perpassam dez anos de produção intelectual, mas mais de cinquenta anos de uma vida rica de acontecimentos e rica interiormente.

Não se tem notícia das motivações exatas que levaram o escritor a se interessar por esse gênero literário, e as páginas iniciais dão a entender que foi um ato casual e momentâneo, inspirado ao acaso das circunstâncias. Mas, logo a seguir, quando descreve as leituras de memórias, destaca asConfissões de Santo Agostinho, que André Maurois considerava não ser um livro de memórias, mas ter a feição de um tratado de Metafísica, as Memórias de Saint-Simon, as Confissões de Rousseau e as Memórias de Além-Túmulo, de Chateaubriand. Pode-se interpretar que o desejo de trabalhar no gênero foi se acumulando ao curso do tempo e que a maturidade, idade própria às reflexões, levou-o a iniciar a tarefa.
 
Nas primeiras páginas, analisa as tendências dos livros de memórias, as obras de caráter puramente literário e as obras de caráter puramente histórico e afirma: “Pretendo fazer dele, antes de tudo, como já disse, sua obra de Literatura. Escrito de forma literária, tanto quanto estiver ao meu alcance, será sempre de um ponto de vista cultural que nele exporei e interpretarei a experiência de minha própria vida.”

E acrescenta: “O Direito e a Política podem conformar-se segundo o modelo utilitário. Mas, deixado a mim mesmo, reintegro-me no meu mundo natural, que é o da Literatura.”

Essas expressões, ditas com sinceridade, foram de certo modo desviadas no curso da elaboração da obra, pois enquanto o primeiro volume – por tantos considerado o melhor – é basicamente dedicado à Literatura, a Política vai absorvendo os volumes subsequentes, e correspondem ao período áureo de sua atividade parlamentar e no Executivo, mas nem por isso deles fogem as manifestações literárias, como sempre em estilo elegante e escorreito. Já os volumes finais, Alto Mar, Maralto e Diário de Bolso, se aproximaram mais de verdadeiros diários, muito mais voltados à descrição do cotidiano do que a reflexões mais profundas que assim mesmo emergem do texto.

No plano da Literatura Brasileira, A Alma do Tempo pode ser comparado às memórias de Gilberto Amado e às de Pedro Nava, três cumes da Memorialística Brasileira. Da mesma forma como sucede em Afonso Arinos, os dois volumes iniciais de Gilberto Amado, Histórias de Minha Infância e Minha Formação no Recife, se prendem mais ao plano puramente literário, em estilo vigoroso, e às vezes chegando ao bombástico, sem perder as características puramente literárias, mas a Política predomina nos restantes. As memórias de Pedro Nava se conservam sempre no plano da lídima Literatura, com a reconstrução e a transfiguração dos fatos do cotidiano numa imagem vigorosa de criação literária.

As memórias de Afonso Arinos guardam, em relação ao escritor sergipano, o contraponto da fase inicial de caráter puramente literário, descrevendo a infância, a juventude e a formação intelectual para, a partir de um certo momento, ser absorvido pela atividade política de deputado, senador, ministro e embaixador, mas em todos eles perdura a feitura do homem de letras, do escritor e, muitas vezes, do pensador de alto coturno.
 
Afonso Arinos, tal como Pedro Nava, realiza com felicidade o contraponto do presente e do passado, misturando-os com maestria, sem que em qualquer momento se possam confundir os planos. Há no livro momentos culminantes de criação literária, entre os quais, apenas para exemplificar, as cenas da vida de adolescente em Petrópolis e do baile em que conhece Anah, a estada na Suíça e as relações com Robert de Traz e Anne de Noailles, a cena grega na fazenda de Virgílio, em Barbacena, e a descrição das aeromoças no hall do hotel de Istambul, que Alceu Amoroso Lima comparou à das telefonistas relatadas por Proust. Mas os episódios históricos guardam parelha comessas descrições, como a da preparação do Manifesto dos Mineiros, a luta da oposição no final do governo Vargas e os esforços pela introdução do Parlamentarismo em 1961.
 
É muito comum a tendência a procurar encontrar influências e paradigmas nas obras literárias, e a propósito Alma do Tempo várias vezes foi comparada às Memórias de Além-Túmulo. Afonso Arinos é o primeiro a reconhecer que esse livro era o seu preferido entre as memórias, daí talvez se forçando a comparação. É evidente que a figura do escritor francês marcou de muito a personalidade de meu antecessor, mas creio haver certo exagero nessa comparação puramente sumária.

Mesmo em matéria de estilo, poderiam ser indicadas várias diferenças e discrepâncias que invalidam em parte a tese, mas é no capítulo da personalidade e das tendências pessoais que se podem apontar as diferenças mais marcantes e significativas.
 
Chateaubriand foi um grande amoroso, contando-se às dezenas as paixões que lhe encheram a vida, como Pauline de Beaumont, Delphine de Custine, Madame Récamier, Natalie de Noailles, a Princesa de Leven, Cordelia Greffulhe, Hortense Allart e j’en passe. Essa instabilidade emocional deixa marcas no indivíduo e, certamente, na feitura de uma obra tão vinculada às características pessoais. Ao contrário, Afonso Arinos teve em toda a sua vida a paixão por Anah, que se reflete em todos os momentos das memórias e em todos os episódios de sua vida em que essa presença foi marcante.
 
Pelas características de vida, pelas dificuldades e dissabores que enfrentou, Chateaubriand foi um pessimista, sempre se considerando um injustiçado e, assim, em atitude de permanente desencanto diante dos fatos da vida. Ao contrário, Afonso Arinos, apesar de ter tido momentos de dissabores e dificuldades, inclusive a doença, tem sempre em relação à vida uma atitude de otimismo, e a presença da mulher, de filhos, netos e amigos era elemento dessa tendência otimista.
 
Essa análise mais profunda não caberia nos limites deste discurso. Deixo-a, contudo, para os críticos mais competentes desta Casa, como Josué Montello, Afrânio Coutinho, Eduardo Portella e Lêdo Ivo.

O livro teve a maior repercussão e foi celebrado como a aparição de novo grande memorialista. Entre essas manifestações, posso reproduzir o depoimento, até hoje inédito, de Antonio Candido: 
    
Pouco depois da publicação do primeiro volume das memórias de Afonso Arinos, Maria Amélia, Sérgio Buarque e Rubens Borba foram jantar em nossa casa, e comentamos o livro com grande apreço unânime. Eu lhes disse que o achava superior à famosa Minha Formação, de Nabuco; pelo que lembro, concordaram.

A horas tantas, algum de nós propôs escrevermos a Afonso Arinos uma carta conjunta. O título foi dado por Sérgio: Primeira Epístola de São Paulo aos Mineiros. Nós dizíamos que, reunidos em torno de um vinho, mandávamos os parabéns, louvando a obra e afirmando que ela nos parecia superior àMinha Formação (sinal de que o meu juízo fora aceito). Não lembro mais os termos, nem aproximadamente. Mais tarde soube que Afonso Arinos, comentando talvez com o próprio Sérgio, dissera que tínhamos sido descabidamente exagerados, o que talvez fosse influência do tal vinho...

A verdade é que, passados tantos anos, mantenho a opinião. Não direi o mesmo dos volumes sucessivos, apesar de os considerar muito bons. Mas continuo achando o primeiro uma obra-prima do gênero.

AMOR A ROMA
    
Em 1925, Afonso Arinos deixa a Suíça, onde se restabelecia, e viaja de trem em direção a Roma, seguindo conselho do pai. Lá se encontrava o amigo deste, o Embaixador Carlos Magalhães de Azeredo, íntimo de Machado de Assis e nosso confrade, primeiro ocupante de Cadeira que sobreviveu por mais longo tempo. Magalhães Azeredo foi diplomata junto ao Vaticano em Roma por cerca de 36 anos e ali permaneceu após a sua aposentadoria, vindo a falecer na cidade que tanto amou.

A presença de Afonso Arinos ainda jovem em Roma, com um anfitrião do porte de Magalhães Azeredo e já impregnado dos conhecimentos históricos e literários, lhe permitiu apreciar as relíquias da cidade, fê-lo um encantado de Roma, e ele assim permaneceu até morrer.

Não se tem bem a ideia de quando lhe ocorreu o propósito de escrever o livro que, desde logo, teve o título Amor a Roma e que Pedro Nava fez o palíndromo: 
    
Amora Romã
Amor a Roma
Amor Aroma
Amor a Roma

Mas a ideia está presente em vários momentos, nas conversas, nas memórias, e há mesmo trecho em que comenta: “O meu Amor a Roma ficará provavelmente um projeto, o que não é um mal, pois não realizar os projetos, sem esquecê-los, é também uma forma de vida.”

Ao contrário, Afonso Arinos deu cumprimento ao propósito, escrevendo um livro que é singular na Literatura Brasileira e que Alceu Amoroso Lima chamou de “poema de beleza, ternura e lucidez intelectual” e “a mais completa e perfeita homenagem que um escritor latino-americano jamais prestou à Cidade Eterna”.

É difícil defini-lo num enquadramento rígido, pois não é um guia, não é um livro de Memórias, não é um livro de História, não é livro de Crítica Literária, nem de Arte. Ao contrário, todos esses ingredientes se reúnem numa combinação feliz, em que, numa dosagem perfeita, todos os planos estão presentes, sem exagero de um ou de outro. A evolução arquitetônica de Roma desde as Colinas se fez no encadeamento certo, adicionadas as referências literárias e históricas e as impressões pessoais que acumulou em inúmeras viagens. Nessas referências, se acentuam as referências a Portugal e ao Brasil, à expedição de Tristão da Cunha, à posse do Papa Inocêncio VI, bem como à passagem do Padre Vieira por Roma. Não há como omitir as menções às paixões literárias, como Montaigne, Chateaubriand, Stendhal, que estão bem presentes no livro, como a indicar os grandes amorosos de Roma, nos quais se deve incluir Afonso Arinos. A crítica abalizada de nosso Confrade Abgar Renault caracterizou bem o livro: 
    
A aproximação do íntimo e do universal, da evolução alegre do quotidiano, e da grave contemplação do eterno, das minúcias – todas elas carregadas de vivo interesse – e do geral, da Poesia e dos conhecimentos reveladores de extraordinária erudição, da Cultura multifacetada e da graça estilística – tudo isso por junto resulta numa obra-prima compósita, da mais alta categoria. E a singularidade da construção desse todo complexo por excelência, a sábia conjunção dos materiais para a composição de um todo de harmonia infrangível, ou seja, a sua forma é um feito literário dificílimo de que não tenho notícia em nenhuma literatura e constitui, a meu ver, o essencial desse livro extraordinário. 
     
Ao terminar o livro, declara Afonso Arinos: 
    
O rapaz brasileiro que chegava a Roma em 1925 trazia no bolso como o jovem Barrès um livro de Stendhal. Ele era também barresiano, além de stendhaliano. Seus primeiros livros, compostos ainda na quadra dos vinte, procuravam um caminho para o confuso Brasil, que emergia da Revolução de 1930.
 
Passou meio século sob essas lembranças, e o jovem brasileiro de então, encanecido, continuou a procurar o caminho no entendimento (não no sentido da aproximação, mas no da compreensão) para o Brasil de hoje.

Nos momentos de fadiga desta longa caminhada, o melhor repouso é a lembrança de suas horas douradas. A recordação de uma espécie de reencarnação espiritual, uma nova receptividade de espírito para um amor universal que é promessa e não dádiva, que encanta o espírito e não julgamento e escolha. Na vida como na Natureza, os frutos se colhem no outono.

Assim me encontro agora no Amor a Roma, como aquele rapaz brasileiro que na manhã de 1925, acompanhado de si mesmo, debruçou-se à janela do quarto do hotel, sobre as muralhas antigas, as árvores e alamedas do parque, as cúpulas e as torres indecisas ao longe.

    
    
ROMA VERSUS PARIS
    
Após a análise desse livro singular, Amor a Roma, em que as virtudes e as belezas de Roma são cantadas em verso e prosa, uma indagação se impõe: a comparação com Paris. E a leitura dasMemórias irá nos revelar, surpreendentemente, que a capital francesa está numa posição de segundo plano, em alguns pontos mesmo depreciativa com relação a Roma, embora nas conversas e testemunhos pessoais tal atitude não se apresentasse com essa nitidez.

A primeira viagem de Afonso Arinos à Europa foi, ainda menino, em 1911, na companhia dos seus pais, e as lembranças a Paris são, nas próprias palavras, “vagas e esparsas, com recordações confusas. Há a lembrança dos cafés com orquestras ao ar livre e a visita aos grandes magazines, ganhando de sua mãe uma bola de gás”. O acontecimento mais significativo é a visita, com o pai, a Raimundo Correia, dias antes de sua morte. Ele descreve: 
     
De qualquer forma, revejo o quarto comprido e avermelhado, a cama estreita no ângulo esquerdo e o homem barbado em cima dela, vestido com uma camisola branca. Meu pai fez-me sentar no próprio leito e aproximou para si uma cadeira. O doente se queixava de que tinha suores, coceiras pelo corpo. Meu pai ria, procurava animá-lo, reavivar a alegria naqueles olhos encovados e brilhantes. Eu olhava, perplexo, o homem barbado: as mãos descarnadas, gesticulando perto de mim, sobre os lençóis. 
    
Em 1923, acompanhando o pai à Assembleia da Liga das Nações, a viagem se faz por Bordeaux, sem passar em Paris. Comentando a  afirmação de Joaquim Nabuco da atração exercida por Paris, que mal lhe deixara tempo para ver outros lugares, declara Afonso Arinos: “Comigo ocorreu o contrário. Meu pai decidiu seguir diretamente  com a família de Bordeaux para Genebra, sem passar por Paris.”

Em seguida, passa curta temporada em Paris, da qual Afonso Arinos declara: “Aqueles meses em Paris têm importância nas minhas recordações, porque representaram a única fase de minha vida em que tive um contato próximo e demorado com o meu irmão Caio.”

As ligações literárias que este teve no Rio, com intelectuais da época, como Álvaro Moreyra, Jayme Ovalle, Olegário Mariano, Ronald de Carvalho, assim como referências a Sousa Dantas, o embaixador que por tantos anos representou o Brasil junto ao governo francês, com elemento de prestígio na capital, são mencionadas, mas nenhuma referência específica sobre as lembranças da cidade. Apenas diz que:

Paris, sem dúvida, me absorvia, com tantas experiências novas para mim e, diferentemente de Roma, a vida que levei em Paris foi muito menos literária do que boêmia, se bem que não propriamente turística, pois eu concordava com Caio e frequentava, de preferência, os pontos noturnos de gente jovem, estudantes, escritores, artistas, nos quais os estrangeiros eram menos numerosos.

    
Sem especificar quais teriam sido essas experiências novas.

O retorno se dá em 1931, a caminho da Suíça, em busca de cura para os males de saúde. A permanência deve ter sido curta; a referência principal é de ordem afetiva, com a visita de Ribeiro Couto, então auxiliar do Consulado em Marselha. E Afonso Arinos, em gesto de generosidade, pondo à prova o prestígio junto ao pai, ministro de Estado, pede a transferência de Ribeiro Couto para Paris. A resposta ao telegrama é decepcionante: o quadro de auxiliares em Paris estava completo.

    
Fiquei uma fera, mandei segundo despacho, digno e lacônico, dirigido este para Copacabana, perguntando se o Ministro atendia ao Gabinete ou se meu pai me atendia a mim. A resposta foi a remoção imediata de um auxiliar de Paris para o Havre (peço desculpas até hoje por isso) e a vinda do poeta para a sua almejada Lutécia. 
    
Em 1939, passa alguns meses em Paris, como enviado do Instituto Franco-Brasileiro de Cultura, para realizar uma série de conferências na Sorbonne, com tema que constituíra o livro O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa. Agripino Grieco comentaria que fora dar um curso de Direito Público, mas que a assistência diminuíra tanto que se tornou curso de Direito Privado, o que nega, afirmando ter sido maior o comparecimento às aulas finais do que às iniciais. Desses meses em Paris, também nenhuma impressão direta está revelada nas memórias, apenas referência aos contatos com o Embaixador Souza Dantas e ao grande amigo do Brasil, Professor Georges Dumas.
 
A guerra interrompeu por alguns anos esses contatos, mas o interessante é que, nas referências seguintes, na década de 1970, a mesma falta de atenção se nota em relação a Paris, assim como o confronto, sempre desprestigioso, com Roma. Em 1971, a longa referência à permanência de seu tio Afonso Arinos em Paris é mais uma rememoração de caráter histórico, mas logo em seguida, comentando uma visita à exposição sobre Proust no Museu Jaquemard-André, afirma: 
    
Para quem se encontra dentro daquela enorme compoteira de cimento e gesso, a lembrança de qualquer palácio romano – digamos, a Embaixada Brasileira, projetada por Rainald: (1650) – desvenda a diferença humilhante que separa Roma de Paris. Sinto tédio às vezes ao ter que justificar, perante amigos brasileiros, por que desde rapaz sempre preferi aquela que se chamou simplesmente a cidade (a Urbe) a esta que se adorna com o nome cançoneta de Cidade Luz. Urbe (tom grave) e Cidade Luz (tom ligeiro): há quem não sinta de chofre a escandalosa diferença? Já que comecei vamos ao final, desafiemos as consequências. Em Paris, predomina o conjunto visual, o cartão-postal. As revelações solitárias e dramáticas, que são o músculo de Roma, aparecem raramente: alguns cais do Sena, algumas ruas das duas ilhas, o Louvre, a Notre Dame, a Santa Capela, as Praças Vendôme, dos Vosges, a Concórdia, o Marais, o Arco da Estrela. Tirando alguma coisa mais, o resto é perspectiva, visão de conjunto, paisagem. Confronto, é claro, a Paris de Haussman, oferecida à primeira vista com a Roma, tal como hoje se nos oferece. Não posso imaginar o que seria Paris antes de Haussman, mas acredito que a grande Revolução urbana de Napoleão III é a expressão do espírito do Segundo Império e da sua projeção sobre o início da Terceira República.

    
Da viagem de 1977 com estada no Hotel Concorde, o confronto se faz de novo de forma desfavorável. Comparando a paisagem que se desvenda do andar elevado desse hotel, diria: 
    
Roma, ao contrário, mantém seu perene conjunto de plácida grandeza, no qual a disparidade dos tempos une-se dentro de uma espécie de harmonia que se pode chamar natural. As transformações sofridas da Antiguidade à Idade Média e ao Barroco Pós-Renascentista (o tempo de Bernini marca mais amplamente a fisionomia da cidade que o de Michelangelo) já se integraram, se interpenetraram, se compuseram nesse todo indivisível e intocável.
 
Já escrevi que Paris é mais universal pela vida do que propriamente pela monumentalidade. Por isso, a vida que flui no corpo, conforme o verso de Rimbaud, vai mudando inexoravelmente a cidade. A impressão de eternidade que nos vinha de Paris na mocidade da minha geração era fruto efêmero do século XIX. Paris nada tem de barroco, pouco de renascentista, fora do Marais.

E novamente comparando: “Em Roma, a força monumental da cidade é tão grande que as transformações de espírito pelo tempo não lhe alteram, senão em pequenos trechos, o semblante e a majestade.”

Da viagem de 1977 a mesma atitude: 
    
Mal chegado o verão, Paris se envolve toda nas brumas e na chuva fina de outono. Não sei que tenaz fidelidade, que constante alumbramento se desprende da auréola de Paris, para prender tanto os meus caros Roberto Assumpção e Cícero Dias, que aqui revejo. Roberto é mais entusiasta, mais enternecido. Como todo amoroso, não raciocina sobre o seu amor. É como namorado. Cícero, que há decênios por aqui vagueia sua inconversível sensibilidade pernambucana, exibe outro comportamento, mais lúcido e menos cálido do que o de Roberto. Amor mais costumeiro e menos fogoso por Paris. Roberto, como no verso de Ribeiro Couto, vê aqui “Europa! oh! civilização!”, Cícero mistura as coisas com o tempo dos canaviais, as chaminés de engenho, nas rivas ilustres sequanenses. Eu aqui não consigo realmente me habituar a esta chuva, a este vento, a este frio, sobretudo ao implacável século XIX, tão invasor nessa Rua de Castiglione.
 
    
A observação final da viagem de 1978 contém um pouco mais de entusiasmo ao referir-se que “esses dias têm sido uma festa universal em Paris”. Comenta ainda uma volta pelo Sena e a visita à igreja de Saint-Gervais, mas novamente vem o comentário pouco favorável quando descreve: “Atravessar o Sena de Saint-Gervais para os lados das Praças Saint-Michel ou Saint-André des Arts é como cruzar o oceano, ‘deixa-se a Europa e entra-se no estranho mundo afro-asiático.’”

Mais adiante: “Paris deve oferecer espetáculo parecido com a Roma do Baixo Império. Pobre. Nobre, ai de nós, Lusíadas, coitados.” 
    
    
A MINEIRIDADE
    
Ao tratar da personalidade de Afonso Arinos, um tema aflora que não pode deixar de ser enfrentado, sob pena de deixar este perfil incompleto. É o do caráter mineiro e daquilo que tem sido chamado, inclusive por ele, de mineiridade, mineirice e mineirismo.

Sobre o tema muito tem sido escrito, e Afonso Arinos a ele dedicou algumas páginas, inclusive em discursos acadêmicos, recebendo nesta Casa a Otto Lara Resende e, na Academia Mineira de Letras, a Tancredo Neves.

Só esse motivo explicaria a ousadia de tratar do problema numa Instituição onde pontificam tantos valores ilustres da Cultura Mineira, e só o faço, porque na verdade o que pretendo examinar é a visão que o próprio Afonso Arinos tem do problema. Ele mostra as origens longínquas quando, mesmo antes da Inconfidência, Martinho de Melo e Castro, poderoso secretário da Marinha em Ultramar, assim dava instruções ao governador, Visconde de Barbacena: “Entre todos os povos de que se compõem as Capitanias do Brasil, nenhuns talvez custaram mais a se sujeitar e reduzir à devida obediência [...] como foi o de Minas Gerais.”
 
No século seguinte, José Bonifácio escrevia ao Príncipe D. Pedro, de partida para Minas: 
    
Não se fie V.A.R. em tudo que lhe disserem os mineiros, pois passam no Brasil pelos mais finos e trapaceiros do Universo, fazem do preto branco, mormente nas atuais circunstâncias, em que pretendem mercês e cargos públicos e outros deitar poeira aos olhos de V.A.R. para se livrarem dos crimes e atentados que cometeram. 
    
A esses julgamentos tão severos se poderiam contrapor outros, sobretudo de viajantes estrangeiros, que melhor apreenderam o caráter do povo das Alterosas, como Saint-Hilaire, que destacou a religiosidade, e o Reverendo Walsh, que falaria da fidelidade ao regime constitucional e a tendência contrária à anarquia e ao despotismo.

É do século passado a página expressiva escrita por Francisco Otaviano, apontando já para o declínio da civilização mineira. Lamentando essa situação, apela para o reerguimento: 
    
Estrela brilhante do sul, formosa Província de Minas, por que desmaias no azul da nossa Pátria quando ela precisa que cintiles com toda a tua pureza antiga? [...] Tu que tiveste por largo tempo a primazia no paço dos Césares e nos comícios do povo, por que te aniquilas na indiferença e no desânimo? [...] Onde estão os teus filhos? A terra em que eles nascem já não tem forças para produzir esses gigantes? [...] que escalaram o Olimpo da Monarquia absoluta? [...] A loucura de túmulo caiu sobre o cadáver de alguns. A mão de ferro do ostracismo comprimiu a garganta dos outros. [...] Formosa Província de Minas, surge, surge; não te é lícito tão longo repouso. Já dizem os cortesãos, com insultante sarcasmo, que a soberba mãe de Gracos, depois de resistir, corajosa, à violência brutal, estendeu os pulsos às cordas de seda da hipocrisia. 
    
Deixando as expressões retóricas e as afirmações subjetivas e respaldando-se nos condicionamentos sociológicos e econômicos, deve-se apontar a originalidade do pensamento de Afonso Arinos, quando contrapõe no desenvolvimento da Política Mineira na Primeira República o confronto entre as duas regiões econômicas: a Zona da Mineração, já em processo de decadência, com homens delicados, sutis e conciliadores, e a Zona da Mata, com o florescer da economia cafeeira, representada por políticos afirmativos, temperamentais e quase mesmo autoritários. Nas suas palavras: 
    
A zona agrícola, fundada no café, tentava arrebatar o poder político das mãos dos representantes da velha zona decadente da mineração, como de fato o fez, mais tarde. Ora, a Mata e o Sul eram precisamente as zonas agrícolas novas, cuja expansão econômica estava exigindo poder político. Pode-se dizer que a Minas republicana, entre Silviano e Antônio Carlos, foi governada pelo café da Mata e do Sul. As exceções a esta regra, como os governos de João Pinheiro, Melo Viana e Olegário Maciel, eram determinadas por causas anômalas e ocasionais, eram soluções críticas para crises, mas não alteravam em nada a linha histórica predominante. 
    
Na questão, a meu ver, nenhuma análise supera a do saudoso Confrade Alceu Amoroso Lima, no livro Voz de Minas, com o subtítulo Ensaio de Sociologia Regional Mineira. Explicava no prefácio como o primeiro de uma série de cinco livros, ao qual se juntariam a Voz do Norte, a Voz do Sul, aVoz do Litoral e a Voz do Sertão, plano infelizmente inacabado, dando a entender que realmente foi a aproximação com Minas que o fez se dedicar ao tema, não guardando o mesmo interesse pelas outras regiões do País. Neste trabalho, que recebeu muitas críticas, Alceu Amoroso Lima acentua as características peculiares dessa gente, o valor dado ao homem, à sua mentalidade, ao espírito humanista e às características sui generis que o representavam. Fazendo a síntese da questão, afirmaria:

Tenho a intuição de que Minas não vai ficar silenciosa. Tenho o pressentimento de que os valores intelectuais que fazem hoje de Minas o mais impressionante conjunto cultural do País vão trazer ao século, como já o estão fazendo, alguma coisa de importante. Tenho a certeza de que o senso moral mineiro não falhará. Num Brasil em plena participação universal nos acontecimentos, em que o Norte, o Sul, o Litoral e o Sertão mandam as suas mensagens que se cruzam, Minas é o centro do cruzamento dessas mensagens. É a encruzilhada de todos os caminhos brasileiros no mundo moderno. Poderá ser amanhã, no pleno sentido da expressão, a chave de abóbada na nossa civilização.
     
Mas a essa bela análise de caráter cultural e sociológico poderia ser contraposta a saborosa crônica de Rubem Braga, de 1954, observando o convívio “quase maçônico” dos mineiros do Rio: 
    
Os mineiros, eu conheço os mineiros, é de vê-los, os mineiros, quando uma tarde se telefonam. Durante dois, três dias, sempre se encontram na rua ou em um bar, se detêm um instante, como duas formigas que se cumprimentam, às vezes vem Milton, às vezes vem Abgar, e sinto que o Rodrigo telefona a Afonso e a Drummond. Ainda não me expliquei... Uma vez estava presente, mas, de súbito, compreendi que se ia realizar um rito exclusivamente mineiro e achei melhor me retirar. Eles ficaram sussurrando. 
    
Mas a mineiridade não se apresenta como elemento uno. Dario de Almeida Magalhães assinalou essa diversidade: 
    
Já se sabe que não há um protótipo, porém variegados tipos de mineiro. Há os pacíficos e os belicosos; os tímidos e os arrojados até à imprudência; há os rotineiros e os desbravadores; os legalistas à outrance, os frondeurs e os revolucionários; há os ingênuos e os extremamentes ladinos; os somíticos e também os perdulários. Mas creio que a identificação da legítima mineiridade, ou mineirice, se faz pela mistura, ou coexistência de alguns desses defeitos e qualidades, com a permanência de características essenciais. 
    
Com base nessas considerações genéricas, há a examinar o problema específico das características dessa civilização que produziu um determinado tipo de homem, facilmente identificável no contexto da Antropologia Brasileira, como interpretado por Afonso Arinos.

Prefaciando o livro de Sílvio de Vasconcelos, Mineiridade – Ensaio de Caracterização, de 1968, Afonso Arinos atribui ao autor a escolha desse nome, que, sendo “nome novo”, era formado, no entanto, de elementos antigos.

Tratando do tema da decadência mineira e da frase do poeta de que “Minas não há mais”, ele acentua que “Minas há, às vezes pela ausência e briga pela sombra em que se envolve”. E tem uma interpretação psicológica sobre essa análise que representaria a compensação a um sentimento de insegurança para afirmar: 
    
O declínio de Minas leva o mineiro de velho sangue, de apurada cultura, não a viver Minas, mas explicá-la. De qualquer maneira, este livro é uma prova não de que Minas existiu, mas que ela existe, condutora apenas em territórios diferentes daqueles em que outrora dominou. E quem abre a marcha num caminho (refiro-me ao povo de Minas) pode fazê-lo ainda em outro. 
    
Parece, entretanto, que a análise dessas características representou no pensamento de Afonso Arinos um processo de decantação e sedimentação que se reflete na fina análise do discurso com que recebeu Tancredo Neves na Academia Mineira de Letras. Parte do exame de um conjunto, de uma categoria geral, a que chama mineiridade, e da individualização dos elementos constantes dessa categoria, aos quais denomina mineirismo e mineirice, para apontar que o conceito de mineiridade se divide em mineirismo cultural e mineirice política. Adianta também que o mineirismo cultural e a mineirice política confluem para a síntese histórica da mineiridade. Isso se aplica mesmo aos mineiros que não vivem no mundo da Cultura nem no da Política, mas cuja formação seja acentuadamente mineira.
 
Aponta, assim, os casos de equilíbrio entre mineirismo e mineirice, exemplificativamente em Antônio Carlos, Afonso Pena Júnior, Afrânio de Melo Franco, Juscelino Kubitschek e Gustavo Capanema, e em outros o predomínio de mineirismo, como Teófilo Ottoni, Cesário Alvim, João Pinheiro, Virgílio de Melo Franco e Milton Campos. Em Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade e Alfonso Guimarães Filho, dá-se o caso raríssimo de predominância de mineirismo sem poucos traços de mineirice. Eles se incluem numa geração pródiga de mineirismo cultural,  dentro da mineiridade histórica, incluindo Rodrigo Melo Franco de Andrade, Milton Campos, Pedro Nava, Gustavo Capanema, Carlos Drummond de Andrade e os nossos confrades Guimarães Rosa, Abgar Renault e Cyro dos Anjos, para afinal concluir sobre o enlace da Cultura com a Política, do mineirismo com a mineirice, para chegar à síntese de mineiridade.
 
Esperemos que outros mineiros e não mineiros se debrucem com mais vagar sobre esse fascinante assunto, procurando decifrar o enigma que até hoje aparece sem resposta. Há que apontar, entretanto, como esses valores se conservam mesmo fora do torrão natal, pois Afonso Arinos, nascido em Belo Horizonte, ali viveu poucos anos de sua infância, retornando em 1928 por um período de oito meses e mais tarde, de 1933 a 1934, quando exerce o Jornalismo. Todos os demais anos foram vividos no Rio de Janeiro, com rápidas estadas em viagens de trabalho e de lazer à Europa, especialmente Roma, Paris e Genebra, e a Nova Iorque. Por isso mesmo, é extremamente oportuna a caracterização de Alceu Amoroso Lima quando se refere à presença dessa tradição onde quer que se esteja: 
    
É de ver como, em Paris, Arinos sabia a Paracatu. É de ver como, falando em Montaigne, nos salões mais literários do Rio, um Afonso Pena Júnior tem gosto de Santa Bárbara. É de ver como um Carlos Drummond, ao fazer a Epopeia de Stalingrado, não perde nunca o saber do seu itabirismo (e poderíamos substituir, sem desvantagem, pelo mineirismo). O mineiro leva consigo o seu arraial, como amuleto contra as conjurações de progresso. 
    
Ao final da vida, Afonso Arinos iniciou a feitura de um livro sobre Minas Gerais, com o título expressivo Rosa de Ouro, do qual ouvi certa vez a leitura de parte do primeiro capítulo. Os trabalhos da Comissão Afonso Arinos, depois da Constituinte e do Senado Federal, desviaram-no desse caminho e era de ver os protestos de Abgar Renault, instando-o para que deixasse a atividade política e se dedicasse ao livro derradeiro. Seria, na verdade, um contraponto, guardadas as devidas proporções, ao Amor a Roma, um livro de amor e devoção à sua terra natal e às várias gerações de antepassados que na Política e nas Letras ilustraram a “formosa estrela de Minas”.
 
O PARLAMENTARISTA
    
Um dos grandes debates políticos de sua época foi entre Presidencialismo e Parlamentarismo. Formado na tradição republicana como o pai, um dos melhores exemplos de elite política da Primeira República, Afonso Arinos filiou-se inicialmente à corrente do Presidencialismo. Designado em 1949 para dar parecer sobre a emenda constitucional de autoria do Deputado Raul Pilla, que instituía o sistema parlamentar de governo, revelou-se ainda adepto do Presidencialismo e manifestava a sua discordância com a mudança de regime.

As crises a partir de 1954, com a renúncia do Presidente Vargas, o impedimento dos Presidentes Carlos Luz e Café Filho, as batalhas por ocasião das campanhas para escolha do Presidente da República, aliadas aos estudos sobre as crises de regime republicano e a biografia de seu pai levaram-no a lealmente mudar de posição e filiar-se ao Parlamentarismo, do qual, após a morte de Raul Pilla, tornou-se um dos seus maiores arautos. Destacou-se como um de seus principais defensores na presidência da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, criada em 1985 pelo Presidente José Sarney, muito justamente chamada Comissão Afonso Arinos, e na presidência da Comissão de Sistematização Constitucional da Assembleia Nacional Constituinte de 1986.
 
O Presidente Tancredo Neves, após a sua eleição, sentiu a necessidade de organizar um texto básico que pudesse orientar os trabalhos da futura Assembleia Constituinte. Um nome longo ocorreu para a presidência dessa Comissão, o de Afonso Arinos, convidado ainda em vida do presidente, escolha mantida pelo seu sucessor, o nosso Confrade Presidente José Sarney. Tive a honra de ser, por indicação de Afonso Arinos, um dos membros da Comissão e por isso quero testemunhar, de ciência própria e por dever de justiça, a obra realizada, com várias imperfeições, como toda obra humana, no fundo serviu de base para a preparação do texto da atual Constituição.

Outro dever de justiça me impõe a necessidade de reconhecer o trabalho expressivo por ele desempenhado, como presidente da Comissão não como chefe autoritário, que quisesse impor suas posições, mas como sutil harmonizador de disputas, superando com autoridade pessoal e moral divergências que poderiam parecer intransponíveis. Entendia também que a função de presidente não exigia a presença permanente na chefia dos debates e delegava esse trabalho a alguns de seus colegas, sobretudo à figura exemplar do Padre Fernando Bastos de Ávila, que algum dia espero ter como nosso colega. Mas nos momentos de crise, assumia tranquilamente a presidência e com o velho estilo mineiro, com voz mansa e pausada, sem arroubos oratórios, conseguia arrefecer os ânimos e encaminhar as votações para formas satisfatórias, como ocorreu com a adoção pela Comissão do sistema parlamentar de governo.

Cessada essa tarefa, para a qual o Governo Federal demonstrou reconhecimento, outorgando-lhe a Ordem Nacional do Mérito, nova tarefa se lhe impôs, a de presidir a Comissão de Sistematização Constitucional da Assembleia Nacional Constituinte de 1986. Naquele conclave, onde confluíram as aspirações mais profundas da sociedade brasileira, em busca de uma forma política que atendesse aos reclames do povo brasileiro, ninguém mais talhado para exercer essas funções. Sendo o mais velho e, sem sombra de dúvida, o mais habilitado pela Cultura e pelo passado, Afonso Arinos presidiu a Comissão com o mesmo espírito com que fizera na Comissão Afonso Arinos. A tarefa era mais difícil, o número de participantes maior, as pressões da opinião pública e do jogo de interesses certamente mais numerosas, mas ele desempenhou-se com a mesma categoria de sempre. Fora dessas tarefas de presidente, também no plenário ele exerceu influência, reservando-se para os grandes momentos e para as grandes decisões, como, por exemplo, a divisão de seu Estado natal, com a criação do Estado do Triângulo, que lhe provocou indignação incontida, quase uma ofensa pessoal. Contra ela se lançou com todas as suas forças, para afinal obter a vitória desejada. Em discurso memorável, em que analisa tentativas anteriores, afirmava: 
    
que se deve entender que não é possível que nós prossigamos nessa fantasmagoria que eu mostrei que tem mais de cem anos de existência, essa mania de dividir a minha Terra. Por que a minha Terra? Por que razão? Por que o Triângulo? Por que Minas? Porque Minas é o fiel da balança. Ainda hoje, a integridade de Minas é a permanência da confiança e uma balança equilibrada dos interesses políticos e sociais deste País. A divisão de Minas é a divisão da tradição da liberdade, no Brasil, desde o sacrifício de Tiradentes. Eu defendo Minas, Minas unida, em nome do passado, mas também a defendo em nome do presente e do futuro. 
    
Em outro passo, quando do exame da questão da maioridade eleitoral, seria de se crer que um velho octogenário se rebelasse contra a diminuição de prazo. Mas enfrenta o problema:

É um coroamento, é uma alegria, é um reconforto, é um prêmio que ao termo de uma vida dedicada ao Parlamento eu possa vir aqui, procurando, como o mais idoso de nossos colegas, interpretar o sentimento, o pensamento, a esperança, o entusiasmo de toda essa garotada que se encontra lá em cima, nas tribunas gerais.
    
E concluía, haurindo argumentos nos conhecimentos históricos: 
    
O Deputado Antônio Carlos, na famosa reunião da Câmara de Deputados em que se criou o Primeiro Ministério no Brasil, foi o defensor da maioridade do Imperador Pedro II, então com quinze anos. A tradição do Brasil não é de dezesseis anos para o eleitor. Não. Ela é de quinze anos para o Imperador. E ninguém foi mais prudente e ninguém foi mais acertado do que Pedro II. Senhores constituintes, vamos aprovar os dezesseis anos para a juventude. 
    
É evidente que a tarefa maior nos debates constitucionais foi no sentido de tentar a adoção da forma parlamentarista, para a qual deu como sempre a maior contribuição, afinal derrotada em plenário. Mas a consagração desses trabalhos de tantas décadas ocorreu na sessão de promulgação da Constituição de 1988, quando foi escolhido para falar em nome da Assembleia. Profligando com palavras de fogo, afirma: 
    
Derrubar a Constituição, execrar os políticos é derrubar a liberdade para entregar a Política atual a outra “política”, isto é, a outro tipo de governo, não declarado, que teria em suas mãos a sorte e o destino do povo e com ele o próprio futuro da Pátria. Senhores constituintes de hoje, senhores congressistas de amanhã, vosso dever é fazer Política, isto é, defender e praticar a Constituição Brasileira em vigor, acreditar nela, convocar a Nação para defendê-la, se estiver em risco, reagir contra esses riscos disfarçados. Em suma, praticar, defender a liberdade. Fazer Política é honrar nosso mandato, sustentar nosso trabalho, enobrecer a memória do nosso povo. 
    
Terminados esses misteres, Afonso Arinos mantém-se no mandato de senador, mas sem a mesma atuação. As viagens a Brasília, deixando a mansão da Rua Dona Mariana, levaram-no várias vezes a pensar em renúncia ou licença, mas a tanto obstava a votação de milhões de fluminenses. O seu ambiente preferido era, entretanto, a casa da Rua Dona Mariana, a presença de Anah, dos filhos, dos netos e bisnetos, dos parentes e amigos e especialmente aquela biblioteca excepcional – e daqui faço um apelo às autoridades da República, que não permitam que se disperse esse patrimônio cultural valiosíssimo –, aquela biblioteca que Stephan Zweig, já combalido pela doença e pelo desânimo, disse-lhe certa vez que não a abandonasse nunca por nenhum trono de rei. Exercia as funções de diretor do Instituto de Direito Público e Ciência Política da Fundação Getulio Vargas, cuja extinção deixou-o grandemente contristado.

No período que precede mesmo à sua eleição como senador pelo Estado do Rio, Afonso Arinos se coloca com uma voz oracular, um elder stateman, a quem todos recorrem para ouvir-lhe as opiniões e obter-lhe os conselhos. Os governos militares, a partir mesmo do Governo Castelo Branco, solicitam-lhe parecer nos esforços pela redemocratização do País. E sua presença é exigida na Imprensa, nos debates da televisão e ao mesmo tempo nos círculos universitários e nas entidades de classe para receber prêmios e honrarias. Uma das que mais fundo lhe calaram foi a Medalha Teixeira de Freitas, conferida em 1977 pelo centenário Instituto dos Advogados Brasileiros.

 Ele relata: 
    
A 27 de julho recebia o Prêmio Teixeira de Freitas do Instituto dos Advogados Brasileiros. Atribuo a ideia a três jovens juristas, então dirigentes daquele órgão, Eduardo Seabra Fagundes, Alberto Venancio Filho e Jorge Hilário Gouvêa Vieira. A decisão do Conselho do Instituto, composto de mais de meia centena de expoentes da profissão, foi unânime.
    
O discurso então proferido, “Teixeira de Freitas e a Renovação do Direito”, foi pronunciamento expressivo, por ele chamado “brado pioneiro de alerta e inconformidade”.

Dizia Afonso Arinos que a Política e as Letras eram as verdadeiras vocações da família.
 
De 1930 – estreia de seu primeiro livro – a 28 de agosto de 1990 – seu falecimento –, atendeu plenamente a essas vocações e soube conduzir-se com equilíbrio, conciliando uma e outra. As atividades de político e parlamentar não impediram a vocação para as Letras, e foi durante o exercício de mandatos parlamentares que escreveu a biografia de seu pai, os volumes de memórias e ensaios, monografias e artigos, conquistando por concurso duas cátedras de Direito Constitucional.
 
Ao empossar-se, nesta Casa, em 1958, no exercício do mandato parlamentar, indagava se a primazia do político não prejudicaria a investidura do homem de letras. Elas se combinaram de forma perfeita, sem que uma ofuscasse a outra. Mas foi a sua pregação incessante ao retorno ao Estado de direito, o restabelecimento das garantias individuais e do respeito aos Direitos Humanos que constituiu o grande apanágio de sua atividade pública, autodenominando-se, sem falsa modéstia, “advogado dos direitos humanos e da legitimação do poder”.

No domingo que precedeu ao início da agonia, fui mais uma vez visitá-lo, encontrando aquele casal unido, sempre juntos, e por mais de duas horas conversamos desataviadamente – conversar não era bem o caso, mas sim ouvir a palavra daquele homem que, chegando à culminância da vida intelectual e pública, manifestava as suas apreensões pelas dificuldades que o País atravessava, mas ao mesmo tempo mantinha sólida confiança no destino do País e falava ainda de projetos futuros. 
    
    
A PERSONALIDADE
    
Depois de termos falado de tantos personagens, ficou faltando o personagem principal do discurso, que não pode ser analisado independentemente de sua obra, mas que apresenta contornos próprios.

Trata-se do homem Afonso Arinos. Quem quer o tenha conhecido, e são numerosos neste Salão os que se beneficiaram deste convívio, não pode deixar de destacar a figura simples, cordata e amena, ao contrário do perfil que muitas vezes se faz de sua estirpe, e, especialmente, a figura do grande conversador, primeiro, por saber muita coisa, e a sua conversa era assim um repositório de conhecimentos, informações e dados; e, em segundo lugar, porque tinha prazer na conversa, no diálogo, na troca de ideias e, coisa que ocorria raramente, em aprender com aqueles que poderiam saber mais sobre determinado assunto. Otto Lara Resende apontou com propriedade dois traços de sua personalidade: o senso de humor e a objetividade. Surpreende-se, portanto, nesta personalidade tão serena, a afirmação de Alceu Amoroso Lima de que na infância ele desafiava as pessoas para briga. Na verdade, foi um homem sem brigas e, mesmo nos episódios mais difíceis de sua vida parlamentar, sempre conservou o equilíbrio, evitando que divergências ocasionais pudessem se tornar inimizades permanentes, como foi, por exemplo, o caso com Tancredo Neves na segunda Presidência Vargas.

Mas, ao falar do homem Afonso Arinos, uma lembrança imediata vem à mente, que é a figura de sua mulher Anah, num casamento de 62 anos, em que os sentimentos dos noivos perduraram até a morte de ambos. Quando Afonso Arinos disse, várias vezes, que pedia a Deus que o levasse em primeiro lugar, é que para ele a ausência e a separação seriam um episódio insuportável. Mas também o foi para ela, que, apenas quarenta dias depois, sucedeu-o na vida eterna. Esse convívio de seis décadas principiou em Petrópolis, naquele final da belle époque, tão bem descrito em A Alma do Tempo e iniciado no baile na residência da família Franklin Sampaio, no Largo do Afonso. Atendendo ao convite, disse ele:

    
Foi sem nenhuma intenção especial que vim do Sítio do Repouso, onde me encontrava sozinho, para aquele grande baile que, de certo modo, marcou o ponto de partida de todo o resto de minha existência.

O grande salão estava repleto. De súbito, duas convidadas retardatárias apareceram, como se fossem figuras de Velásquez, emolduradas pela larga porta do salão. Eram duas irmãs, meninas-moças, a mais jovem tinha dezessete anos, a outra dezoito. A mais alta, e mais jovem, toda de branco, não trazia pente nem poderia usá-lo, pois os cabelos curtos e louros se enroscavam na cabeça, como os de uma criança. Estava séria, mas os olhos, olhos maravilhosos, que logo me pareceram os mais belos do mundo, percorriam o ambiente, exprimindo uma espécie de curiosidade reservada. Era, de fato, uma frágil visão radiosa e real que parecia querer sumir de repente na turba indistinta. Seus olhos claros e imensos pousaram de repente em mim, que estava imóvel na sacada fronteira, numa atitude compatível com os meus vinte anos: entediado e superior.

Olhamo-nos com enleio. Falamo-nos. Verificamos que já nos conhecíamos. Ela com dezessete, eu com vinte anos, éramos assistentes e figurantes do mistério milenar que em nós se renovava.

Em pouco dávamos as mãos, enlaçávamos para uma dança rápida e saímos para a varanda, dizendo o quê? Não consigo lembrar. Pensando o quê? Não posso recordar, mas presos um ao outro para sempre, por uma força que resistiu à vida e que enfrentará a morte e que espero humildemente se tornará em luz no seio de Deus.
 
Quando os ruídos do mundo nos aturdem, quando os mistérios da sorte nos ameaçam, quando os golpes do destino nos atingem, eu sei que a nossa força é esta, de podermos ficar sozinhos no meio deles, contra eles, transformando-os em silêncio e em paz.
 
    
O namoro e o noivado encontram-se descritos em A Alma do Tempo, naquela vida de sociedade de final de época e término da República Velha. A ida de Afonso Arinos para Belo Horizonte oferece oportunidade a uma correspondência de cerca de um ano entre os namorados, documento revelador dos costumes do tempo.
 
Essa correspondência, com o título Retrato de Noiva, só foi publicada em 1979, por instâncias de Afonso Arinos. Não desejava Anah inicialmente que essas cartas fossem publicadas, só concordando quando as dele foram incluídas. As cartas do noivo foram guardadas, cuidadosamente, num pequeno cofre de madeira por mais de meio século, sem nunca ter se preocupado em saber o que acontecera com as suas, até que, no dia em que foi acertada a publicação, ela trouxe da mesa de trabalho o maço dessas antigas cartas, amarradas por uma fita descolorida.

Desde então, com o casamento, a vida de um e de outro estiveram intimamente ligadas em convívio íntimo, que representa também uma aproximação intelectual na colaboração dada por ela na cópia e na revisão de todos os livros, nos comentários, presente a todos os momentos de sua vida, dos discursos do deputado estreante na Câmara dos Deputados, em 1947, aos grandes pronunciamentos em Brasília na Assembleia Nacional Constituinte em 1986.

Era de se ver, ao se chegar ao grande salão da biblioteca da Rua Dona Mariana, de um lado Afonso Arinos, quase sempre com um livro na mão, e D. Anah ao seu lado, na tranquilidade daquele ambiente de trabalho, entrecortada a atividade de um e outro por um comentário ou uma rápida conversa. Com a morte de Afonso Arinos, a cena se repetiu em parte, mas podia-se pressentir o sofrimento dela, ausente que estava o seu companheiro de tantos anos, ao qual logo veio se juntar.

Um traço que distingue a personalidade de Afonso Arinos é a rara capacidade de fazer amigos, que conservou até a idade provecta, no convívio que tinha com os jovens que, em sua volta, se reuniram nos últimos anos: na Diplomacia, Rubens Ricupero e João Augusto Medicis; no Direito, Celso de Albuquerque Melo, Carlos Roberto de Siqueira Castro e Ana Lúcia de Lyra Tavares; e na Ciência Política, Celso Lafer.
 
As suas amizades têm várias etapas, desde aquelas iniciadas no Colégio Pedro II, como Pedro Nava, Prudente de Moraes Neto e Prado Kelly; os contemporâneos na Faculdade de Direito, nossos confrades Pedro Calmon e Hermes Lima; e o círculo de amigos que fez por toda parte, seja na vida social, cultural e política. O volume A Escalada foi dedicado a 11 amigos, dos quais já falecidos Antônio Gontijo de Carvalho, Arthur Santos, João Gomes Teixeira, José Olympio, Manuel Bandeira, Milton Campos, Odylo Costa, filho, e Rodrigo M.F. de Andrade, felizmente ainda entre nós Clementino de Carvalho Lisboa e Roberto Assumpção. Na dedicatória, colocou a epígrafe de François d’ Amboise: “Fazer amigos não é tudo, é mister conservá-los.” Afonso Arinos cumpriu rigorosamente o preceito porque soube fazer amigos e soube conservá-los.

Mas para oferecer um exemplo paradigmático, poderemos ir além desse elenco ilustre e fixar-nos no nome de Rui Ribeiro Couto, com quem manteve uma amizade de muitas décadas, embora por longo tempo distanciados no espaço, por força do exercício por este de atividades diplomáticas no exterior.

Afonso Arinos pela primeira vez ouviu falar de Ribeiro Couto quando, aluno do Colégio Pedro II, João Ribeiro chamou-lhe atenção para o livro O Jardim das Confidências.

“Aquela poesia intimista, persuasiva, desmanchada como ramo de flores, colhido distraidamente, me abrira, súbito, um novo panorama literário, muito mais autêntico e vivo, apesar de seus ares verlainianos, do que o falso Parnasianismo Nacional”.

No período de recuperação da doença em Montana, em 1923, eles se aproximaram, e Ribeiro Couto se fez de médico para assistir à intervenção do amigo. Em 1931, quando de novo na Europa numa rápida passagem em Paris, eles se aproximam e reatam essa convivência. Certa vez, desciam juntos os Campos Elíseos quando Afonso Arinos disse: “Sei o que V. está pensando. Você está andando por aqui, pensando que é Eça de Queirós e que eu sou Eduardo Prado.” Ele replicou logo: “Sou mais brasileiro do que Você.

Para V. ser brasileiro, precisava ser mulato.”

A Afonso Arinos foi dedicado o livro de poesias Cancioneiro de D. Afonso: “O cancioneiro de D. Afonso Arinos de Melo Franco e sua mulher, D. Anah Pereira de Melo Franco, naturais de meigas terras brasileiras, pelo tocador de xererê, residente no estrangeiro, o Ribeiro Couto.”

Permito-me transcrever o verso.
    
No Sanatório Bella Lui; 
O poeta Afonso e o poeta Rui 
são gentilíssimos cavaleiros: 
– A ti, Afonso – Tu, primeiro. 
– Primeiro que tu nunca fui. 
    
As dedicatórias são sempre de grande afetividade: “A Afonsinho, nesta longa viagem já perto agora do Cabo das Tormentas, o companheiro civil, Rui.”

“Para Afonso e Anah, com o velho afeto, de dias tristes. Rui.”

“Para Afonsinho e Anah, este cancioneiro em que há sinais de cristãos-novos exilados, construtores da terra morena, jamais separada da terra gentil. Rui.”

“Para Anah e Afonso Arinos de Melo Franco, amigos do balcão de cura, cujo afeto de há trinta anos enriqueceu a minha vida e o melhor dos meus cantares de saudade.”

“Para Afonso e Anah este cancioneiro em que também, para eles e para mim, acenam tons coloniais silenciosos na cerração. Rui.”

Quando Afonso Arinos completou 50 anos, Ribeiro Couto enviou-lhe o seguinte bilhete: 
    
Para Afonso, em novembro de 1955. 
    
Não sei quantos anos fazes 
A vinte e sete do mês. 
Que este abraço vá, sem frases, 
levar-te mais uma vez 
– Sem discursos nem cartazes 
Tudo aquilo que nos fez 
Amigos, desde rapazes. 
    
E ele respondeu:

Couto, amigo e companheiro, 
Sobre os mares deste um salto 
Surgiste de corpo inteiro 
No papel azul-cobalto, 
Que é retrato e mensageiro. 
Desponta a flor de Pouso Alto, 
num incerto outono estrangeiro, 
Flor da amizade indormida 
que eu enxerto ainda com vida 
no ramo do Cancioneiro. 
    
Afonso Arinos escolhera inicialmente Ribeiro Couto para recebê-lo nesta Casa, mas este, impossibilitado de vir ao Brasil, foi substituído por Manuel Bandeira. Quando de sua aposentadoria na carreira diplomática, Afonso Arinos enviou-lhe carta cuja resposta foi a seguinte: 
    
Meu caro Afonso: Muito obrigado pelas suas generosas palavras da carta do dia 12. Fizeram-me um grande bem. Fizeram-me um bem grandíssimo. A minha carreira foi obscura, sem nenhum clarão, sem nenhum acontecimento especial, mas foi correta de princípio a fim.

Nas melancolias que você tão finamente percebe daí, da beira do lago (onde o saudoso Olegário queria ser “marinheiro”, lembra-se desta dos versos dele?) que alegria se derrama, submergindo-as: a de saber que vamos recomeçar, já em maio, aquelas conversas de Montana, quando eu pensava que era tarde demais para sentar praça na Infantaria. Qual o quê! Saudades, Couto. 
    
E Afonso Arinos encerra o capítulo: 
    
No silêncio da noite carioca, na calma do jardim de Botafogo, pouso a minha pena e penso intensamente em Ribeiro Couto. Chego a olhar para fora, a sombra da mangueira, as flores do jasmim, pensando que ele poderia aparecer na porta aberta, como aqueles velhos amigos ausentes de que nos fala a poesia de Francis Jammes – que foi amigo de Ribeiro Couto, o qual, vindo de Marselha, o visitava na acolhedora casa de Orthez – ausentes de tantos anos, que chegam naturalmente, falando baixo, de coisas habituais, sem provocar surpresas, pois são sempre esperados. 
    
No momento em que faço o elogio de Afonso Arinos, a referência a Ribeiro Couto abarca no seu conjunto todos os amigos.

AS LETRAS JURÍDICAS
    
Ao ingressar nesta Casa, sucedendo a Afonso Arinos de Melo Franco, não posso deixar de mencionar as ligações que aqui sempre existiram entre as Letras Jurídicas e as Letras propriamente ditas. O verdadeiro fundador desta Casa – embora tal fato se atribua a Machado de Assis, primeiro Presidente – foi Lúcio de Mendonça, homem de letras e jurista, autor de obras de ficção de reconhecido valor, como  Horas de Bom TempoVergastasO Marido da Adúltera, e que também se destacou na carreira jurídica, como Procurador-Geral da República, Ministro do Supremo Tribunal Federal e autor de estudos jurídicos, entre os quais se sobressai o consagrado ao recurso extraordinário, instrumento novo no regime republicano, ao qual deu o devido realce. A estirpe de Lúcio de Mendonça está representada entre nós pelo seu sobrinho-neto,o nosso querido D. Marcos Barbosa, mas não posso deixar de mencionar o nome de seu neto, Carlos Sussekind de Mendonça Filho, meu amigo mais antigo, relação que se iniciou no primeiro ano do curso primário e se prolonga até hoje, fino escritor e artista de altos méritos.

Dessa galeria ilustre, caberia destacar Rui Barbosa, – culminância que constitui exceção à parte – o quarteto glorioso de Lafayette, Clóvis Beviláqua, Pedro Lessa e Pontes de Miranda, juristas que cultivaram com sabedoria as Letras, o Ensaio e a Filosofia e que comprovam mais uma vez a exatidão do ditado de que o jurista que é apenas um jurista é uma pobre coisa.

Lafayette Rodrigues Pereira ocupou importante posição no Direito, na Política e nas Letras. Indagado certa vez como chegara tão moço aos conselhos da Coroa, respondeu: “Subi montado em dois livrinhos de Direito.” De fato, Direitos de Família e Direito das Cousas são obras lapidares, em que, ao estilo escorreito e simples, se junta profundo conhecimento das fontes e da doutrina, numa época em que era caótica a legislação nacional. Signatário do Manifesto Republicano de 1870, não titubeou em aceitar a pasta da Justiça no Ministério Sinimbu em 1878 e a Presidência do Conselho em 1883, por entender que o projeto da eleição direta, com o qual estavam comprometidos esses ministérios, constituía parte do ideário republicano. Fino humanista, romanista de mão cheia, respondia aos violentos ataques que suas atitudes provocaram com epigramas clássicos, nem sempre compreendidos. Com a República, isolou-se na sua chácara da Gávea e passou a ser o jurisperito requisitado nas grandes causas forenses. O seu trabalho mais expressivo, no campo da Crítica Literária e Filosófica, é o volume Vindiciae, que, sob o pseudônimo de Labieno, escreveu, rebatendo com fina ironia e com suprema erudição ataques apaixonados que Sílvio Romero fizera ao nosso primeiro Presidente.
 
Clóvis Beviláqua sobressai-se pela autoria do anteprojeto do Código Civil Brasileiro que o Governo da República, na Presidência Campos Salles, entregou-lhe, quando era ainda um jovem e desconhecido professor de província. Em seis meses, produziu documento que honra a nossa Cultura Jurídica e que, com emendas e modificações, é o texto que ainda hoje rege a Legislação Civil do País. Além de inúmeras obras jurídicas, Clóvis Beviláqua dedicou-se aos estudos filosóficos e às Ciências Sociais, mas há na sua vida um traço que o distingue com particular relevo, que é a altitude da sua vida pessoal e de seu princípio moral. Disse San Tiago Dantas: 
    
A capacidade intelectual do jurisconsulto, quando não lança alicerces numa consciência moral límpida e isenta, assume, muitas vezes, um caráter perigoso e alarma em vez de tranquilizar. Pois Clóvis Beviláqua era desses jurisconsultos que tranquilizam e não dos que alarmam. Sua consciência se mantinha indene em meio às paixões e não era ameaçada nem pelas seduções de caráter pessoal, nem pelas competições da vaidade. 
     
Pedro Lessa, o grande professor de Filosofia do Direito da Faculdade de São Paulo, ascendeu ao Supremo Tribunal Federal convidado, em 1907, pelo Presidente Afonso Pena. Tendo banca bastante prestigiosa, inicialmente recusou o convite, mas a ele acedeu, quando Afonso Pena lhe disse: “Eu cumpri o meu dever, V. Exa. cumpra o seu.” A sua atuação no Supremo Tribunal Federal destaca-se como uma das mais ilustres. Os livros de Direito que publicou, especialmente Do Poder Judiciário, representam contribuição fundamental. Mas também se destacou em outras disciplinas, na Filosofia do Direito e na História, com o prefácio magistral à História da Civilização na Inglaterra, de Buckele.

Pontes de Miranda foi jurista completo, tendo perlustrado com sabedoria todos os ramos do Direito, mas de sua obra jurídica permito-me ressaltar o monumental Tratado de Direito Privado, em 60 volumes. No campo do Ensaio Filosófico, nos estudos de Política e na Poesia, também merece relevo a sua contribuição.
 
Permito-me ainda aditar a figura do advogado exemplar e nosso Confrade Levi Carneiro, primeiro presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, em 1931, e que, num país ainda com deficiência de comunicações, conseguiu o milagre de aglutinar os colegas de profissão na corporação, cujos relevantes serviços à Nação inteira se conhece e cuja Notícia Histórica, no cinquentenário, em 1980, tive a honra de escrever. Recusando toda e qualquer função pública, Levi Carneiro orgulhava-se de ser apenas advogado, o que definiu em frase lapidar: 
    
Advogado, simples advogado, sem aptidão para mais, eu me consolo de sentir-me destituído de aspirações maiores, amando a minha profissão na sua beleza, na sua força, na sua humildade, nas suas aflições; no que comporta de abnegação, de lealdade, de desinteresse; no que exige de desassombro, de probidade e de vibratividade; no que proporciona de independência, no que ensina de tolerância.

A esses nomes, quero mencionar alguém que, não tendo pertencido a esta Casa, se alçava aos anteriores e poderia por todos os títulos ter dela participado, meu saudoso mestre e amigo Victor Nunes Leal. Advogado exemplar, em todas as funções que desempenhou deu mostras de excepcional dedicação, interesse pelo trabalho e espírito modernizador. No decênio em que pertenceu ao Supremo Tribunal Federal, revelou, sobretudo, rara capacidade de organização, e em muito simplificou os trabalhos da Corte, e prometia, ao ascender, segundo previsto, à presidência, exercer um papel fundamental na reorganização do Poder Judiciário no Brasil. Era homem simples, excessivamente simples, revelando o saber como se estivesse pedindo licença por tanto saber, e saber tão bem, e era, sobretudo, figura que a todos atraía, espalhando pelos seus amigos e colegas os frutos generosos da sua personalidade.
 
Esses exemplos maiores me inspiram, no momento em que ingresso nesta Casa, padrões de competência, seriedade e espírito público e fazem-me orgulhar da profissão que escolhi há vários lustros, assim como igualmente me orgulho de pertencer a uma sociedade de advogados na qual se destacam dois expoentes da Advocacia Empresarial do País: José Luiz Bulhões Pedreira, que o saudoso Luís Viana Filho definiu com propriedade como “dotado de grande talento jurídico e imaginação criadora”, autor, nos últimos trinta anos, de importantes projetos no campo da Legislação Econômica e a quem, por isso, o País deve relevantes serviços; Lucas Lopes, em depoimento recente, chamou-o uma das melhores cabeças que o Brasil tem e apontou como “excepcional” o livro sobre conceitos fundamentais da empresa; e Antônio Fernando de Bulhões Carvalho, por cujos serviços prestados a esta Casa teve o reconhecimento na concessão da Medalha Machado de Assis, estilista primoroso, seja nos arrazoados forenses, seja no Conto, no Romance e no Ensaio. 
    
    
CONCLUSÃO
    
Senhores acadêmicos, descreve Afonso Arinos, com riqueza de colorido, o episódio de estreia como promotor público na cidade de Belo Horizonte: 
    
Foi, assim, em ambiente de inegável expectativa, que chegou o dia da minha primeira acusação pública.
 
Sobre o largo estrado, por detrás da alta mesa, presidindo o Tribunal, austero, togado, o Juiz de Direito Correia de Amorim. À sua direita, eu, e, à esquerda, o escrivão. Aberta a sessão, o burburinho de curiosos continuava, quando, de súbito, foi se fazendo um grande silêncio no salão.

Alguém entrara pela porta do fundo e forçava passagem pelos grupos que se acumulavam junto à parede. Do estrado em que me achava, reconheci de repente Mendes Pimentel, que avançava em direção à mesa do Tribunal. O leitor não pode ter ideia do que era Mendes Pimentel, naquele tempo, em Belo Horizonte: uma espécie de papa, de líder, de chefe moral e jurídico da cidade. A sua opinião representava uma força considerável em qualquer ponto, inclusive no Palácio da Liberdade. No Foro, então, nem se fala. Ele era o mestre, o guia, o varão prudente, o oráculo.
 
Pimentel se aproximava, acercava-se do estrado e dirigia-se para mim. Ele fora colega de turma do meu tio Arinos, era velho e querido amigo de meu pai, mas nunca esperei que tivesse comigo, que jamais o procurara, um gesto como aquele. Pimentel subiu ao estrado, apertou-me longamente as mãos, sob o silêncio atento da audiência. Recomendou-me calma, desejou-me boa sorte. Depois retirou-se, como tinha vindo, abrindo uma ala respeitosa na passagem. Meus olhos se umedeceram de grata emoção, o ambiente mudara. Eu senti uma espécie de vertigem.

Creio, senhores acadêmicos, repetir-se, numa visão onírica, o episódio, o jovem promotor de então hoje substituindo o homenageado Mendes Pimentel. Vejo Afonso Arinos abrir uma das portas do salão, acompanhado de Anah, que discretamente se recolhe a um canto, se direge em direção à mesa, saúda a vós, Sr. Presidente, companheiro de muitos anos, e a todos os demais membros da mesa, e virando-se para a tribuna, cumprimenta os confrades e tem uma palavra especial para as colegas Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e Nélida Pinõn. E, em seguida, dirigindo-se para mim, repetindo o gesto de Mendes Pimentel, aperta-me longamente as minhas mãos, recomenda-me calma e deseja-me boa sorte. 
    
Senhores acadêmicos,
    
Na presença simbólica de Afonso Arinos, na vossa presença, como Presidente da Casa, na presença dos ilustres confrades e desse público de amigos aqui presentes, assumo o solene compromisso de bem seguir as tradições desta Casa, “promover a unidade literária na federação política”, trabalhar pelo engrandecimento da Cultura Nacional embeneficio do sofrido povo de nossa terra, “com a paixão do Brasil”.