O celular
O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em, em 28/03/2004
Antigamente, minha marginalidade se acentuava muito nas festinhas em que, segregados das mulheres, os homens se recolhiam num canto da casa e discutiam os terreninhos. Todo mundo tinha um terreninho, cujas características eram debatidas em minúcias, a começar pelos metros quadrados, noção que sempre me escapou e creio mesmo que só consegui passar no ginásio porque devia existir alguma quota secreta para itaparicanos de óculos. Era uma situação confrangedora, porque, já pai de família, ser o único entre os amigos a não ter um terreninho, nem que fosse a seiscentos quilômetros de qualquer lugar, deixava o sujeito coberto de opróbrio. A vida acabou me afastando da maioria desses amigos, mas a lembrança cruel de minha cara de sem-terreno, refletida dolorosamente no espelho, nunca vai embora.