Ação de retirar da esfera de competência da medicina certo processo ou fenômeno, deixando de tratá-lo como patologia e reduzindo o recurso à intervenção médica ou ao uso de remédios.
“O objetivo do Seminário Internacional é contribuir para o conhecimento e ações sobre as causas e os riscos do atual modelo de doença da psiquiatria na abordagem do sofrimento psíquico, as interfaces com o processo de produção e consumo de drogas psiquiátricas, assim como a construção de alternativas terapêuticas na atenção psicossocial. O evento ocorre num contexto em que internacionalmente está ocorrendo o avanço incomensurável do fenômeno da medicalização do sofrimento psíquico e dos comportamentos sociais considerados normativamente indesejáveis. Por meio da inflação de categorias de diagnóstico psiquiátrico, praticamente ninguém é normal, dado que virtualmente todos são pacientes ‘psiquiatrizáveis’ a serem tratados pelo sistema de saúde. E o tratamento hegemônico é de natureza bioquímica, baseado no pressuposto que os ‘transtornos psíquicos’ diagnosticados são causados por ‘desequilíbrios químicos’ no cérebro. ‘A consequência é que a sociedade sofre de uma epidemia de transtornos psiquiátricos’, afirmam os coordenadores do evento. Eles também destacam, porém, que há evidências científicas e experiências concretas que demonstram existirem alternativas viáveis e seguras para a ‘desmedicalização’.”1
“‘Para repercutir essa reflexão tão ampla e que abre espaço para tantos questionamentos, tabus e contradições da sociedade de consumo, o Lunetas conversou com Denis Plapler, docente do curso, Presidente da Associação Brasileira de Cientistas para Desconstrução de Diagnósticos e Desmedicalização (AbCd) e coordenador do curso de Gestão Pedagógica para a Educação Democrática no Instituto Singularidades. Afinal, a discussão é ampla e as particularidades são muitas. Não se trata de negar o uso de medicações quando elas são necessárias, e sim de propor uma reflexão maior: quando elas são necessárias? E por quê? Para cada criança, o ideal é que exista um observador atento – seja um médico, pedagogo ou a família – para perceber suas reais necessidades e eventuais limitações.”2
“Cunhado num tratado médico em 1688, o termo nostalgia está estreitamente ligado à problemática da nacionalidade e do exílio. Na busca de um termo médico para um mal que acometia os expatriados em particular, um médico suíço de nome Johannes Hofer tomou do grego o termo ‘nostos’ e combinou-o a ‘algia’ (retorno ao lar e dor, respectivamente), diagnosticando a nostalgia como uma doença causada pelo desejo de retorno à terra natal (Spitzer, 1999). Deste modo, nostalgia denotava uma doença física, acometendo predominantemente soldados em missão no estrangeiro ou servidores deslocados de suas origens. As linhas de demarcação desse termo foram ofuscadas pelo que se denominou ‘desmedicalização’ da nostalgia, embora a distinção entre a nostalgia patológica ou a ‘saudade’ e o desejo profundo de retorno ao passado ainda seja perceptível nas definições dos dicionários. No século XIX a nostalgia deixou de ser vista como uma ‘doença geográfica’ para adquirir a dimensão de uma queixa sociológica.”3
“[...] a psiquiatra [Nise da Silveira] concretizou múltiplos trabalhos com pacientes esquizofrênicos no início da década de 50. Ela corroborou com a ideia de que introduzir pequenos animais, como gatos e cachorros, na rotina de pacientes psicóticos, contribuía fortemente com a promoção de saúde deles. [...] Os estudos de Giumelli e Santos (2016) convergem com as ideias de Câmara, no que diz respeito às possibilidades que a TAA [Terapia Assistida por Animais] proporciona diante da cultura ocidental e da atualidade, além de mostrar-se como um recurso terapêutico, a partir de uma perspectiva de desmedicalização, buscando identificar os repertórios comportamentais e suas mudanças diante de um tratamento que pode auxiliar na melhoria dos quadros clínicos dos pacientes e, sobretudo, promover uma melhor qualidade de vida.”4
“Analisa-se o termo medicalização nos estudos de [Ivan] Illich e [Michel] Foucault, com vistas a oferecer ferramentas conceituais para o estudo dos movimentos contestatórios à medicalização. Illich aborda a hipertrofia da medicalização na modernidade, ressaltando o efeito de redução da autonomia dos sujeitos, sobretudo pelo fato de as instituições médicas assumirem a responsabilidade de cuidar da dor, transformando seu significado íntimo e pessoal em um problema técnico. Foucault aborda a medicalização a partir da noção de biopoder, e, quando trabalha a noção de governamentalidade, abre espaço para a análise das formas de resistência dos indivíduos ao exercício do poder. Ambos os trabalhos, que têm como preocupação propor formas de exercício da liberdade – apesar de Foucault o fazer de forma mais detalhada e diversificada –, parecem apropriados para se pensar o processo atual de desmedicalização ou recusa do diagnóstico médico por parte de seus portadores ou familiares.”5
“Essa obstetrícia hegemônica, cerca de um século depois, é contraposta por um novo modelo de cuidado, pautado na humanização. O foco passa a ser na fisiologia do ciclo gravídico-puerperal, utilizando-se a ciência como princípio da prática, aproximando a produção científica das necessidades de saúde das mulheres e defendendo os direitos sexuais e reprodutivos3. A desmedicalização do parto e do nascimento busca corrigir comportamentos autoritários e hierárquicos, com a finalidade de que a assimetria das relações estabelecidas entre os diferentes sujeitos diminua e as mulheres possam participar com autonomia e protagonismo de seu processo de gestação, parto e puerpério4.”6
“De maneira geral, processos de medicalização e desmedicalização de objetos sociais encontram-se fortemente afetados pelo grau de confiança que as instituições sociais depositam no saber médico. No caso mencionado sobre a desmedicalização da avaliação da periculosidade dos presos, incidiram opiniões favoráveis emitidas por influentes juristas que consideraram que a psiquiatria forense não teria competência técnica para julgar a periculosidade criminal (Idem). Isso sugere, portanto, que a autoridade do saber médico não possui caráter estático nem uniforme e que, por outro lado, todo processo de medicalização decorre do reconhecimento da autoridade cultural da medicina. A autoridade cultural se ‘refere à possibilidade de que certas definições particulares da realidade e certos juízos de significado e de valor prevaleçam como válidos e verdadeiros’ (Starr, 1991, p. 28).”7
“A medicalização da vida social envolve um conjunto de processos não uniformes, caracterizados pela presença de um amplo repertório de objetos e narrativas. Assim, por exemplo, o presente artigo apresentou algumas especificidades dos processos de medicalização do crime que não estariam presentes, pelo menos com a mesma intensidade e funções, nos processos de medicalização de outros fenômenos. Ao mesmo tempo, esses processos não seguem uma trajetória predeterminada e, por isso, a desmedicalização e a remedicalização de objetos, por exemplo, apresentam-se sempre como contingências historicamente possíveis. Portanto, seguindo Conrad (2009), trata-se não de estudar a medicalização da sociedade, mas de observar a medicalização na sociedade, em suas trajetórias e dinamismo.”8
DEMEDICALIZZAZIONE. In: ACADEMIA DELLA CRUSCA. Parole Nuove. Disponível em: https://accademiadellacrusca.it/it/parole-nuove/demedicalizzazione/19505. Acesso em: 20 nov. 2022.
1 FIOCRUZ. Alternativas para desmedicalização das drogas psiquiátricas: Seminário prossegue com debate sobre abordagem do diálogo aberto. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, 30 out. 2017. Informe ENSP. Disponível em: https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/42805. Acesso em: 20 nov. 2022.
2 PENZANI, Renata. Geração Ritalina: a urgência da desmedicalização da infância. Lunetas, 11 jul. 2017. Disponível em: https://lunetas.com.br/curso-da-palmatoria-a-ritalina/. Acesso em: 20 nov. 2022.
3 FELIPE, Elizabeth Vigorito de. Memória e hibridismo em When we were orphans, de Kazuo Ishiguro. Empório: Revista de Filosofia. São João del-Rei: Grupo PET Filosofia da UFSJ, n. 1, jan.-dez. 2008, p. 59-69. Anual. Disponível em: https://ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/emporio/emporio1.pdf. Acesso em: 20 nov. 2022.
4 FARIA, Simony de Sousa; PEREIRA, Yasmin Filgueiras Coelho; MACIEL JÚNIOR, Auterives. A importância da Terapia Assistida por Animais como recurso psicoterapêutico para o processo de desmedicalização. In: LESSA, Jadir Machado; FARIA, Simony de Sousa; MACIEL JÚNIOR, Auterives; SALGADO FILHO, Natalino (org.). Desmedicalização da existência e práticas de si: resistência e poder na área da saúde. São Luís: Editora da Universidade Federal do Maranhão – EDUFMA, 2020, p. 9-30. Disponível em: http://www.edufma.ufma.br/wp-content/uploads/woocommerce_uploads/2020/04.... Acesso em: 20 nov. 2022.
5 GAUDENZI, Paula; ORTEGA, Francisco. O estatuto da medicalização e as interpretações de Ivan Illich e Michel Foucault como ferramentas conceituais para o estudo da desmedicalização. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, mar. 2012. Disponível em: https://www.scielo.br/j/icse/a/XjXvsdynqRSNX8XdZWGbVRv/?lang=pt. Acesso em: 21 nov. 2022.
6 SANTOS, Maryelle Peres da Silva; CAPELANES, Beatriz Castro Souza; REZENDE, Kátia Terezinha Alves; CHIRELLI, Mara Quaglio. Humanização do parto: desafios do Projeto Apice On. Ciência & Saúde Coletiva, maio 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/Gbxc6zhswnPnJWnX7xPx8xd/#. Acesso em: 21 nov. 2022.
7 MITJAVILA, Myriam. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 27, n. 1, 25 jun. 2015, p. 117-137. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ts/a/B7mJ7V96nNBT9fsKgphcXbt/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 21 nov. 2022.
8 Idem, ibidem.