Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Volta por cima

Volta por cima

 

Não há dúvida de que o Brasil voltou ao cenário internacional, e no papel de protagonista. Não apenas porque a questão climática nos dá vantagens competitivas formidáveis que estamos sabendo usar, mas também pela importância geopolítica reconhecida pelos Estados Unidos, refletida no acordo firmado entre os dois países sobre a proteção do trabalhador neste mundo cada vez mais digitalizado.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, é considerado da esquerda do Partido Democrata, visto como de esquerda pelos americanos. Ainda mais se comparado a seu mais direto adversário, o ex-presidente Donald Trump. A luta contra o uso dos novos meios digitais numa guerra política suja une Biden e Lula, que tem a contrafação de Trump no adversário político mais perigoso, o ex-presidente Bolsonaro.

Também a defesa da democracia une Brasil e Estados Unidos, e essa combinação de temas relevantes que preocupam seus dois presidentes fez com que, na Assembleia Geral da ONU, a posição do Brasil diante do novo mundo multipolar ficasse menos desfocada. O discurso do presidente Lula na abertura não foi “antológico”, como pateticamente definiram setores petistas, mas certeiro em vários pontos, especialmente quando colocou a política ambiental brasileira como central e defendeu o combate à desigualdade, que se transformou numa praga não apenas nos países em desenvolvimento do Sul global, mas também nos países ricos.

A crítica ao neoliberalismo, e considerá-lo responsável pelo fortalecimento da extrema direita no mundo, é uma análise superficial. Nunca se criou tanta riqueza no mundo moderno, e bilhões de pessoas saíram da pobreza extrema. A distribuição dessa riqueza é que tem de ser alterada, e Lula foi incisivo quando criticou as agências internacionais que destinam mais dinheiro aos países ricos que aos da África e da América Latina.

O movimento de ampliação do Brics, se por um lado deu-se sem a devida preocupação com os direitos humanos ao incluir ditaduras como Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes e Irã, que se somam a Rússia, China e Índia, foi uma jogada estratégica que aumentou o peso geopolítico do grupo, embora reduzindo o do Brasil. Quem saiu ganhando foi a China, que se mostrou com capacidade de liderar os países emergentes.

A atuação do presidente Lula — cobrando dos países ricos responsabilidade maior diante da crise climática e posição de liderança na questão, mas ao mesmo tempo estreitando os laços históricos com os Estados Unidos numa visão humanista do trabalho — deu uma equilibrada no que caminhava para ser uma união antiocidental na nossa política externa.

A dificuldade de criticar diretamente a Rússia pela guerra contra a Ucrânia mais uma vez ficou patente no discurso de Lula, em contraponto com a atitude firme do presidente esquerdista chileno Gabriel Boric. Mas as atitudes de Lula, tanto no discurso quanto no encontro pessoal com Zelensky, já mostram certo avanço na postura brasileira, embora longe do desejável para um país democrático que defende o respeito à soberania territorial e ao direito internacional.

A política externa brasileira busca hoje equilibrar-se entre as duas superpotências, Estados Unidos e China, explorando seu soft power geopolítico, que tem na Amazônia o destaque natural. O presidente Lula foi feliz ao destacar a responsabilidade dos países ricos diante da crise climática. O interessante é que todos esses temas já haviam sido abordados por Lula há 20 anos na tribuna da ONU, o que demonstra que o mundo não evoluiu nessas questões fundamentais.

Mas as questões se tornaram mais prementes, justamente pela inação para resolvê-las, e hoje o mundo está muito mais propenso a encontrar soluções, pois tragédias climáticas ameaçam a todos, e a desigualdade crescente magnifica as mazelas do mundo.

O Globo, 21/09/2023