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Viva Guido Reni

 

Não deixem de visitar o Museu Nacional de Belas Artes antes do dia 13 de março, dia em que termina a exposição “San Sebastiano”. Dois jovens artistas bolonheses da Itália barroca: Guercino e Guido Reni. Jovens porque suas obras parecem ter sido feitas no ano de 2015, sem uma ruga no rosto, sem qualquer sinal desses quinhentos anos. Digamos que houvesse apenas uma pintura no MNBA, em virtude de hipotética reforma, e que as paredes estivessem brancas, despovoadas, e que a única imagem presente fosse apenas “O Martírio de São Sebastião”: mesmo assim a visita valeria, e muito!

Eu mesmo não sei dizer quanto tempo fiquei ausente, emocionado. Meus olhos não quiseram, não puderam ver nenhum outro quadro. Como se fosse um pacto de silêncio radical e sem volta com a beleza do São Sebastião. Nada substitui esse encontro livre, direto, sem intermediações, mesmo que você o tenha visitado nos museus Capitolini de Roma. Agora é ele quem nos visita. E se encontra bem em nossa casa, profundamente barroca. Além de cumprirmos o papel de bons anfitriões, que é um dever sagrado, a visita vale, porque as imagens nos livros de arte, assim como nas redes, nem sempre dispõem de tratamento adequado e mínima fidelidade ao original. Cada vez que nos encontramos com uma obra conhecida é como apertar a mão de um amigo.

Temos um santo de harmoniosa expressão, o corpo no centro, apolíneo, como um sol, transpassado por três flechas, que não geram sangue, o rosto ligeiramente inclinado para a esquerda, os olhos puros, cristalinos, dirigidos ao céu. As várias gradações do rosa que se espalham ao longo do corpo e desaguam no rosto, sereno, tranquilo, quase budista, como disse o crítico Roberto Longhi, advogado de Guido Reni, estudioso de Rafael e Caravaggio – com quem dialoga parcialmente nosso Guido – no lirismo superior de Rafael e no realismo contundente de Caravaggio. Um sopro de grande leveza, quadros feitos com a matéria dos sonhos.

Como não lembrar de dois amigos saudosos? Leda Papaleo, que estudou todos os quadros do autor sobre Sebastião, e Manlio Cancogni, autor do romance “A viagem de Guido Reni”, ainda não publicado em português.

E nesses dias de calor, sobretudo quando o sol se põe, mas também quando amanhece, somos cúmplices das cores de Guido Reni. Como se nossos olhos o reconhecessem e o adivinhassem, capazes de interpretá-lo sob a mesma luz da “Aurora” de Guido Reni, que incide sobre a baía da Guanabara.

E se você também é carioca, não lhe faltam vantagens nem motivos para reverenciar o Santo protetor de nossa cidade, a quem não custa pedir que nos livre dos males urbanos, da interminável reforma do centro, do corte de verbas na saúde, da fome de justiça e paz de que padecemos todos, dentro e fora do asfalto, nas partes altas e baixas da cidade, porque, como sabe Sebastião, somos todos cariocas.

O Globo, 03/02/2016