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Saudades de Josué Montello

 

Recordo-me de Josué Montello e recuso-me a aceitar sua morte, no dia 15 de março deste ano, aos 89 anos incompletos. Diante do inevitável e de tanto sofrimento, a sua entrada na terra desconhecida ainda parece incompreensível para nós, os seus companheiros.


 


Não nos acostumamos à idéia da ausência do grande escritor, desde a juventude, e com ardor de um crente, devotado ao ofício das letras.


 


O enorme talento, suficiente para consagrá-lo como um dos maiores romancistas do nosso tempo, multiplicava-se e se enriquecia, por servir a um tenaz trabalhador literário, homem íntegro, inteiro, incansável, diuturno. Enfim, um homem de caráter.


 


Lembro Montaigne, um dos seus autores prediletos, quando disse que “toda a filosofia é aprender a morrer”, advertindo-nos de que pouco a pouco vamos percebendo que a aventura da vida não termina na morte. A vida daqueles dos quais cuidamos e que desaparecem se prolonga em nossas vidas. Levamos até o fim as recordações dos que conosco morreram e, deste modo, continuam vivos.


 


Todos os dias, às cinco da manhã, quando a madrugada exige ainda luzes acesas no interior do escritório, Josué se encontrava diante de uma escrivaninha com seus instrumentos de trabalho, a criar a urdidura dos seus romances, contos e novelas, ou então a preparar, com a erudição haurida na leitura dos clássicos, tomos de história literária, biografias, ensaios e artigos para jornal.


 


Duas horas depois, os manuscritos prontos eram passados à sua querida e devotada Yvonne, e ela se ocupava em datilografá-los; só depois de terminada a primeira tardefa do dia, o casal tomava café da manhã.


 


Às oito horas, Josué iniciava a segunda fase de seus trabalhos, as leituras, os estudos e as pesquisas sempre à procura do ainda ignorado para as devidas incorporações. Depois do almoço, começava um terceiro tempo dedicado às atividades de administrador cultural em várias esferas do governo: Conselho Federal de Cultura, Biblioteca Nacional, museus, universidades, cátedra, reitoria, deveres diplomáticos.


 


E, acima de tudo, a dedicação a esta Academia, onde chegou em 1954 com o divino calibre de moço e com a qual manteve uma espécie de relação orgânica – seu corpo e sua pele se alongando no corpo da Casa. Ainda há poucos dias inauguramos nela o espaço em seu nome.


 


O vigoroso coração de Josué insistiu o quanto pôde no objetivo de torná-lo, assim como é vasta sua obra literária, fisicamente imortal. Sabemos os que acreditam na permanência do espírito que seu repouso final não representa a vitória da morte. Poderíamos até perguntar, repetindo Paulo na Epístola aos Coríntios: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?”.


 


Seus livros de repercussão internacional, uma verdadeira brasiliana escrita por um homem só, jamais escondem a influência das suas origens maranhenses. Ele destacava com carinho especial os romances, e em alguns deles, a exemplo do clássico Tambores de São Luís (de 1975) ou Noite sobre Alcântara (1978) – dos mais belos escritos em língua portuguesa - , está o ensinamento de que ninguém será grande sem honrar suas raízes.


 


Na escritura está muito claro que “vita mutatur, non tollitur”. Ou seja, a vida é mudada, mas não tolhida.


 


É num claustro de paz que Josué se encontra agora e donde virá sempre para junto dos seus confrades, pois é verdade o que ele me ensinou, 20 anos atrás: a nossa vida são os nossos mortos.


 


Enquanto não nos convertemos em verdade, sentiremos saudades dele.


 


Jornal do Brasil (RJ) 2/8/2006