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Saudade mata?

 

Saudade mata? Mata. Mata a alegria da vida. Mas não mata completamente pois não existe completa alegria. É tudo relativo. O que sobra da morte pela saudade é o fio de vida de quem se orgulha de quem se sente a falta.


Será a fé um tipo de saudade?


A fé toma a mão da gente e nos conduz pelo fio de vida alimentado em boa lembrança.


Rachel de Queiroz publicou em 1961 - ano especial para mim e Carmo, ano do casamento - uma inesquecível carta a Gilberto Amado que, como nós dois, teve a cicatriz eterna de enterrar filho.


Rachel diz que passou dias inventando palavras de consolo e não achava o que lhe satisfizesse. Escreveu assim: "É fácil, há muito que falar quando se trata da perda de outros amores. Mas filho não. Filho é brutal demais. Não tem solução, não tem saída. Morreu, pronto. Uma palavra tão dura, tão simples, mas total - pois com ela tudo fica enterrado. Esperanças, alegrias, lembranças, e aquela segurança orgulhosa que a gente tem no filho - e aquele mistério do sangue e da alma."


E prossegue: "Passa o tempo, um dia, semanas, meses, anos; a gente não aceita nem se consola... vai vivendo, chega a pensar que tudo voltou ao seu natural. Mas, de repente, qualquer coisa, uma palavra, um choque ligeiro, magoa a ferida escondida - e então, naquela hora, ela torna a doer com a mesma feroz intensidade da ferida viva, do próprio instante em que se abriu."


É isto mesmo.


Carmo e eu não temos consolo que sirva. Mas temos a nossa força, a força dos irmãos de Marcantonio, a força dos nossos muitos amigos, a força daquele tipo de fé - a saudade - que nos assegura a Ressurreição.


Os pais repetem e entendem quando o poeta Chico Alvim verseja:


"Há um fora dentro da gente

Fora da gente um dentro".


Marcantonio não teve a face sulcada pelo tempo. Não viveu para tanto. Foi embora cedo. Antes disso, rompeu a barreira do preconceito de alguma inveja interna e furou a barreira da indiferença internacional de que se alimentam muitos povos desenvolvidos. Sua lucidez lhe permitiu perceber que também há gosto amargo no sucesso.


Toda gente sabe que com ele o Brasil inscreveu seus artistas no plano mais exigente que fosse da arte contemporânea.


A morte desconta-se vivendo. Por isso tantos se interessam para que Marcantonio continue vivendo.


O editor José Mario Pereira - editor que sabe ler - costuma me lembrar que a família de Marcantonio Colonna, em especial a sua filha Constanza, apoiou Caravaggio. Ele leu isso na biografia do pintor, escrita por Helen Langdon. Não sei se o nosso Marcantonio sabia das artes e ofícios desse seu "xará", se soube, valeu-lhe como exemplo, pois foi em paixão que se apoiou no trabalho de dar visibilidade ao artista brasileiro. Serviu sem o mercantilismo de servir-se deles. Os sucessivos depoimentos de artistas brasileiros asseguram esse reconhecimento, como o fez recentemente Beatriz Milhazes, entrevistada por revista de alto prestígio no País.


Mas tenho quase certeza de que Marcantonio terá lido, pois o poeta era uma das suas paixões, Fernando Pessoa a recomendar:


"Para ser grande, sê inteiro

Nada teu exagera ou exclui".

Ele foi tal e qual.


Por isso a Confederação Nacional da Indústria empenhou seu ativo de patrióticos serviços ao Brasil para contemplar as artes plásticas com o Prêmio que prossegue em nova edição, num gesto absolutamente característico, é bom que se diga claramente, da personalidade lúcida e empreendedora de Armando Monteiro Neto.


Agradecemos, em nome de Marcantonio, a quantos na CNI vem construindo a trajetória de sucesso do Prêmio, desde seus dirigentes até o servidor mais modesto.


O Padre Vieira, cujo 4º centenário de nascimento este ano festejamos, conta que ao se aproximarem do sepúlcro, os que foram em busca de Jesus ouviram do anjo a sentença NON EST HIC (não está aqui). Mas, explica Vieira, Jesus não estava ali, pois estava nos braços da mãe.


Marcantonio não está aqui. Está nos braços da mãe.


Jornal do Commercio (RJ) 7/7/2008