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A guerra continua

 

A maioria conservadora do Congresso revoltou-se contra o que considera serem medidas esquerdistas aprovadas recentemente pelo Supremo, como a derrubada da tentativa de impor como marco temporal para demarcação das terras indígenas a Constituição de 1988, ou temas sensíveis já encaminhados favoravelmente, como a liberalidade quanto ao porte de maconha por um usuário ou a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, que já tem o voto da ministra Rosa Weber, recém-saída da presidência do STF.

Prevendo possível retaliação do Congresso, vindo em forma de diversos projetos aprovados em comissões, os ministros do Supremo anteciparam-se e decidiram no início do ano atacar alguns pontos frágeis, fazendo alterações no regimento interno que representam avanços, reforçando a decisão coletiva em detrimento de medidas monocráticas. Tomaram decisões importantes, à frente de muitas propostas dos congressistas.

Medidas cautelares de natureza cível ou penal devem ser submetidas ao plenário ou às turmas em casos envolvendo “a proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação” ou para “garantir a eficácia da ulterior decisão da causa”. Em caso de urgência, o relator pode decidir sozinho, mas deve submeter sua decisão imediatamente ao colegiado para referendo. A medida precisa ser reavaliada pelo relator ou pelo colegiado competente a cada 90 dias.

O ministro que pedir vista deve devolver os autos em até 90 dias corridos para que a votação seja retomada. Se isso não acontecer, o caso será automaticamente liberado para análise, mesmo sem o voto desse ministro. Há dúvidas sobre a eficácia do prazo para que o pedido de vista volte a ser julgado, pois pode ser alegado pelo ministro o que se chama no jargão jurídico de “prazo impróprio”.

Em várias partes do mundo democrático, Cortes Supremas vêm sendo contestadas pelo poder político, seja por governos de esquerda, seja por direitistas. Trata-se do poder eleito enfrentando o não eleito, que interfere cada vez mais. As propostas apresentadas no Congresso para limitar a ação dos ministros são prosseguimento da disputa ferrenha entre o STF e os ativistas de extrema direita, que começou com a instalação, em 2019, de inquérito sobre fake news atingindo a honra de ministros do Supremo e se desdobrou em outro, das milícias digitais.

Diversos projetos foram apresentados, tanto para tolher decisões monocráticas dos juízes quanto para encurtar-lhes o período de permanência na Corte. Há até mesmo pedidos de impeachment contra vários ministros, especialmente Alexandre de Moraes. Embora tenha se mostrado de grande valia na defesa da democracia, o Supremo tem extrapolado em algumas medidas adotadas em decorrência da investigação sobre fake news e milícias digitais. As razões são legítimas, e os resultados mostram-se benéficos ao país, mas quem controla o controlador?

Além disso, as decisões individuais de cada ministro levam em conta muitas vezes suas posições pessoais, não a letra da lei. A Operação Lava-Jato foi amplamente criticada por ministros devido às “prisões preventivas alongadas” ou às delações premiadas obtidas graças a “tortura psicológica”. Ninguém se levantou, no entanto, para criticar os mesmos métodos usados para combater os que participaram da tentativa de golpe de 8 de janeiro.

Seja como for, o momento não é próprio para esse debate, pois ele representa não a vontade de melhorar o sistema judicial, mas uma tentativa de emparedar os ministros do Supremo que julgam os golpistas de 8 de janeiro. Na campanha pela presidência do Senado, o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Davi Alcolumbre (União-AP), tem tentado se aproximar dos bolsonaristas, encampando a agenda de enfrentamento ao STF.

 

 

 

 

 

O Globo, 05/10/2023