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Espelho cego

 

Li, já não sei onde mas guardei o recorte, texto de Ichonang-Tseu, que diz assim:


"Na região de Chiang-Shin, no estado de Song, há lindas florestas de plátanos, amoreiras e ciprestes. Acontece que, quando atingem dois ou três palmos de altura, algumas dessas árvores são cortadas para servir de poleiros; das que medem quatro ou cinco palmos, há algumas que são cortadas para fazer estacas e, das que chegam aos sete e oito palmos, muitas são serradas para tábuas de caixões. Assim, nenhuma destas chegou ao termo natural da sua vida, nem pôde desfrutar, do alto do seu cume, a imagem do mundo para a qual tinha sido criada e, a meio do seu destino, caiu sob golpes do machado. Este é o perigo de ser útil...".


Tudo isto vem muito à mente dos pais de Marcantonio, nos tempos presentes de aniversário da sua partida para a longa viagem.


É saudade. Saudade muita. Conforto, também, pelo que a sua obra continua respeitada.


Tudo isto é muito duro de enfrentar.


Mas é assim mesmo. E vem de longe. Na Grécia clássica do século V antes de Cristo as tragédias já tinham a morte como idéia central.


Mais tarde, milito mais tarde, Euclides da Cunha escrevia que era difícil lidar com a saudade. E não findara assim; Acrescentou que era preciso ter cuidado com a saudade. Por conta dessa cautela não fazemos da nossa saudade um ímpeto de revolta, nem fazemos dela uma face lacrimosa, nem toleramos que a inveja da sua obra cultural tinja de sombras as lembranças dos seus feitos.


Aprígio Guimarães, grande mestre da nossa Faculdade de Direito, escreveu a propósito de dor igual: “Era de uma penetração extrema, e à proporção que a tua inteligência se expandia, o teu coração mais e mais aderia ao meu”.


Dei a crônica para Carmo ler e ela me disse tudo com apenas essas palavras: "Tal e qual".


Faz alguns anos recordei, a propósito do aniversário da morte de Marcantonio, versos em que Carlos Drummond de Andrade reconhece que todo tempo é tempo para renascer, até mesmo na hora da morte. Espécie de doutrina cristã a propósito da ressurreição.


Na sua coleção, à beira de enfim ser exposta em dignidade merecida no território nacional, há uma peça-ícone. É de Cildo Meirelles - e se chama “Espelho Cego”.


Tudo que me vem à mente quando vejo a obra de arte, me lembrando dele, é a vontade de declamar de Siscar estes versos:


"Você é meu espelho não

o que reflete

mas um avesso claro aquilo

em que me falto".


Claro, é isto mesmo. A criação cultural não é um enfeite, um ornamento inútil, um capricho para uma minoria. É, ao contrário, uma necessidade, um princípio de educação. Uma alegria.


Pois que assim seja. É assim que os pais andam nos caminhos da vida a passar com a dor que não tem tamanho. Nem remédio.


E Marcantonio continua o seu passeio de visita às galerias de arte do céu.


Jornal do Commercio (RJ) 27/12/2007

Jornal do Commercio (RJ), 27/12/2007