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Dispensa do servo

 

Um velho monge irlandês escreveu em St. Gallen, na Suíça, nas lonjuras do IX século que, noite e dia, buscava alcançar mais verdade, trocando a obscuridade pela clara luz.


Estava em Dublin, na Irlanda, quando li esta mensagem. Voltei-me para Maria do Carmo e lhe disse que iria sempre perseguir esse modo de ser.


Fiz isto por 21 anos, os anos que me calejaram na Corte. Não foi nada fácil. Os parâmetros dali são sempre esquecidos. Resisti a muita coisa por gosto pessoal e por fidelidade ao institucional do TCU. Resisti aos vesgos, deformados por ideologia, que não suportam a natureza essencialmente democrática do Tribunal. Não toleram o outro. São integristas sem integridade. Vêem só o seu lado. Só existe o certo deles. O dos outros, não é certo, é troncho. Padecem de tiflose seletiva.


Resisti aos que se incomodam com a visão de Estado, indispensável ao Tribunal, porque prefeririam nos limitássemos às viseiras meramente regimentais, como se não fosse dado o direito de ver além, de insistir numa doutrina da qualidade no serviço público. Ficam a pensar que zelar pela res publica seja apenas fazer dieta. Eficácia não pode ser confundida com errar ligeiro.


Reagi às irregularidades comportamentais do mero denuncismo paranóico e paralisante, de certa gente que se compraz em ser coletor de sarjeta. O Estado não pode ser a apoteose do nada. Não há o bem público se não há carnação social. A decisão há de ser política, mas tecnicamente implementada.


Vivo convencido de que o certo é ter esperança. Esperança militante, que é todo o contrário da futurologia predatória. A esperança militante dá espessura histórica à Corte.


Quando se chega ao TCU estamos no Tabor. Depois, descemos para as tribulações e os sofrimentos do Getsêmani. Esse padecer decorre muito da confusão que se faz lá fora entre proximidade crítica e distância crítica, entre envolvimento livre e compromisso orgânico. É uma confusão danada, que desconforta que está dentro do Tribunal.


O meu fascínio por tudo aquilo que aprendo e apreendo no território da Cultura, decorre da constatação de que a cultura é a capaciadde de o homem reflexionar sobre si mesmo.


Quando cheguei ali estava a desfrutar os festejos da mocidade. Hoje tenho consciência de que a aposentadoria é uma novidade velha.


Boa razão tem Guimarães Rosa ao dizer:


"Se amanhã meu dia for, em depois de amanhã não me vejo".


Não aceito nem o sono da rotina, nem a rotina do sono.


Não há nada mais relapso que a memória. Por isso, digo agora estas coisas. João Cabral de Mello Neto falou que não gostava de tratar dele e sim das coisas, no entanto, a seguir seus versos indagavam: "Mas como falar das coisas sem falar de mim?"


Não quero ser alargado ansioso de horizontes pequenos. Mas, quero ver, quero manter o compromisso que Pernambuco, terra irredenta, me ensinou, o de transformar o eu em nós.


Não quero ser o espectador dos dias. Pelo menos hei de ser um penitente. Não vou ficar cabisbaixo na foz do rio da vida. Quem viver, verá. Afinal de contas vale o socorro de saber que até o silêncio é uma opinião. Além de ter presente aquele juízo de Machado de Assis no contexto do Quincas Borba: "A vida não é completamente boa ou completamente má".


Confesso, surpreendeu-me a deliberação da Atricon. Fora das Academias sou pouco gremial. Talvez alguma deformação do filho único. Mas, se os colegas quiserem me dar esse troféu de honra, ninguém pode imaginar o do quanto gostei. Gostei muito. José Lins do Rego confidenciou a Gilberto Freyre que gostava de agrado como menino gosta de bombom. Pois, a Atricon adoçou-me a vida.


Sei que Victor Faccioni concebeu tudo, acumpliciado por Ubiratan Aguiar e os meus companheiros do TCU. Imaginou até trazer para ser oradora oficial do ato, das várzeas do Capibaribe, a Conselheira Tereza Duere, minha comadre. Nossa amizade não a procuramos, encontramo-la. Quando ela me recrimina certo pessimismo, explico-lhe que sou um pessimista só de humor, não de conceito.


Guardarei de Tereza Duere para sempre a sua lealdade à obra de desenvolvimento social a que se dedicou, sem cansaço, para fazer bem feito o programa de voluntariado que Marley Sarney e a minha mulher criaram, numa política inteligente de interagir com os idosos.


Centenas de centros de convivência foram montados e operaram no Brasil inteiro, até que o academicismo livresco impedisse o seu evoluir. Coisas do Brasil.


Joaquim Nabuco, nosso Nabuco, nosso dos pernambucanos que o oferecemos à história da humanidade, no seu livro Minha informação, recorda palavras do velho Simeão ao ver no tempo o infante Jesus: "Nunc dimittid servum tuum, Domine".


Pois, o que eu pretensiosamente quero dizer à comunidade dos que servem aos Tribunais de Contas é mesmo teor:


"Agora, dispensa o ter servo Senhor".


Jornal do Commercio (RJ), 19/6/2009