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Cuidado com a saudade

 

A observação é de Euclides da Cunha "É difícil lidar com a saudade? Cuidado com a saudade". A saúde é fogo lento. A dor do fogo vai queimando o coração, devagarinho.

Nestes tempos de final de ano e de começo de outro, costumamos Maria do Carmo, Rodrigo Otaviano, Taciana Cecília e eu concentrar o pensamento em Marcantonio, o filho e o irmão que resolveu partir mais cedo. Esse pensamento é o de saudade.
 
Nabuco, sempre ele, disse em feliz reflexão: "Mas como traduzir em sentimento o  que, em língua alguma, a não ser na nossa, se cristalizou numa única palavra? Consideramos e proclamamos esse vocábulo o mais lindo que existe em qualquer idioma, a pérola da linguagem humana. Ele exprime as lembranças tristes da vida, mas também suas esperanças imperecíveis. Saudade é a hera do coração, presa as suas ruínas e crescendo na própria solidão'.

O nosso Marcantonio era um estardalhaço de vida. O desaparecido que veneramos a sua memória é o mais presente e poderoso vivo. Ganhou, pelo trabalho obstinado e competente, nome aqui e lá fora.

Os pais não praticam um ato ritualístico para retocar perfil, nem erguer estátua, pois Marcantonio está cheio de eternidade. O que fazemos é recordação, mesmo em respeito etimológico, pois recordação é trazer de novo ao coração. O que queremos ressaltar é o seu talento em ver permanente o quotidiano passageiro. Estamos cheios de esperanças, alegrias, pois confiamos na ressurreição. Esta é a força e a coragem que compõe a consolação.

Quando louvamos o filho morto estamos, de fato, a orar por ele. E não só orar, mas olhá-lo como o eterno menino pois a morte não envelhece ninguém. Os prêmios de arte plástica, os livros, as exposições, as galerias com a seu nome o remoçam continuamente pois esta é a vontade de Deus e a determinação dos homens.

Temos dó dos que ficaram pelo caminho sem compreender, depois dos 11 anos desde a sua partida, na viagem reta como se fora a Itaca. Sem compreender que seu reconhecimento é cada vez maior, cada vez que na sua terra seja menos avaliado. Ninguém é profeta em sua terra. Como disse o poeta, "naveguemos, mais se vê".

A cartografia associada a sua figura de homem de cultura só é menor que os territórios machucados de saudade dos seus pais e de tantos amigos.
 
Carlos Nejar em poema assombroso de beleza optou por um refrão dirigido a Marcantonio: "Fica mais um pouco". Ele atendeu ao poeta acadêmico e foi ficando mais um pouco. Mais um pouco.

 
Jornal do Commercio (PE), 30/12/2011