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Campanha do baixo clero

 

O presidente Bolsonaro está conseguindo ser o protagonista do jogo político brasileiro nesses oito meses iniciais de seu governo, apesar de sua popularidade ter caído. As polêmicas que provoca, e as linhas mestras das ações de aparelhamento ideológico no sentido inverso do PT dominam a cena o debate partidário. Que se desenvolve até o momento em tom de baixo clero.

Para quem dizia que não seria candidato à reeleição, Bolsonaro mostra especial habilidade para ditar o ritmo da campanha presidencial de 2022. Candidatos potenciais, como o governador de São Paulo João Doria, já buscam se posicionar em raia semelhante à de Bolsonaro na questão de costumes.

Até mesmo quem disputa outros cargos, como o prefeito do Rio Marcelo Crivella, reforçou os laços com o eleitorado conservador, embora não seja certo que esse grupo concorde integralmente com a censura ordenada.  

O prefeito Crivella, com péssima imagem de administrador, mandou recolher uma história em quadrinhos dos Vingadores, que continha um beijo gay. Alegou “querer preservar as crianças".

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, suspendeu a censura e, no domingo, último dia da Bienal do Livro, as vendas aumentaram.

O governador tucano João Doria, apesar de ter criticado a decisão de Crivela, havia mandado recolher no início da mesma semana uma cartilha com material escolar de ciências para alunos do 8º ano do Ensino Fundamental da rede estadual.

A cartilha trata de conceitos de sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Também traz orientações sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis.

Os dois políticos alegaram estar seguindo a legislação, ambos distorcendo seu objetivo. O Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe pornografia, mas o casamento gay é reconhecido pela Constituição. Um beijo gay tem o mesmo grau de pornografia, diante da lei, que um beijo de adolescentes héteros. Ou seja, nenhum. E são casos diferentes, pois Doria interferiu no currículo do ensino público de São Paulo, e Crivella num evento privado, utilizando-se de censura.

No caso de São Paulo, a Secretaria da Educação afirma que o termo "identidade de gênero" estaria em desacordo com a Base Nacional Comum Curricular do MEC. É verdade que a BNCC em sua versão final retirou esse tema do currículo, para posterior análise. Mas não o proibiu. A decisão, portanto, foi do governo de São Paulo.

O ministro do STF Gilmar Mendes, em outra ação, determinou que a Prefeitura do Rio se abstivesse de apreender livros de temática LGBT na Bienal do Rio. Classificou o ato de ‘verdadeira censura prévia’ e promoção de ‘patrulha do conteúdo de publicação artística’.

O ministro Gilmar Mendes tocou na ferida ao se referir à questão da hossexualidade: “O entendimento de que a veiculação de imagens homoafetivas é “não corriqueiro” ou “avesso ao campo semântico de histórias de ficção” reproduz um viés de anormalidade e discriminação que é atribuído às relações homossexuais.

Tal interpretação revela-se totalmente incompatível com o texto constitucional e com a jurisprudência desta Suprema Corte, na medida em que diminui e menospreza a dignidade humana e o direito à autodeterminação individual”.

O ministro lembrou que a orientação sexual e a identidade de gênero “devem ser consideradas como manifestações do exercício de uma liberdade fundamental, de livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo, a qual deve ser protegida, afastado o preconceito ou qualquer outra forma de discriminação’.

O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, sentiu o cheiro de queimado e, em resposta à colunista Monica Bergamo, condenou a censura a livros da Bienal do Rio, considerando que o episódio “constitui fato gravíssimo”. E fez a ligação entre o momento atual e um possível retrocesso dos princípios democráticos:

“Sob o signo do retrocesso - cuja inspiração resulta das trevas que dominam o poder do Estado-, um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático".

O Globo, 10/09/2019