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Bienal:o reinado do livro

 

Pedro II andava em viagem por Minas Gerais quando visitou Bernardo Guimarães, em Ouro Preto. O romancista de A escrava Isaura procurou a melhor forma de homenagear o imperador. Ordenou a duas de suas filhas, Constança e Isabel, que levassem ao visitante, numa bandeja de prata com incrustações douradas, o conjunto de suas obras.


Dom Pedro, estranhando, perguntou:


- São apenas estas, dr. Bernardo?


O romancista, abraçando as filhas, explicou:


- E mais estas duas, que são as que mais aprecio.


Para agradecer a homenagem que me foi prestada pelos promotores da 5ª Bienal do Livro do Recife, não tive bandeja nem obras valiosas, mas ofertei uma vida dedicada à causa da cultura e exibi uma família muito bonita, que é minha, não por me pertencerem todos os seus membros, mas minha por eu lhes pertencer.


Família belamente pernambucana, que me ampara, me honra, me alegra e me explica, ainda que me faltem o pai, um filho e uma neta, sangramentos diários de mortos amados que nunca param de morrer. Mortos, mas não perecidos.


Família completada por uns poucos livros escritos e muitos livros povoando e protegendo as casas da família, no Recife e em Brasília. Livros com as suas capas, com as suas dedicatórias, com os seus cheiros, com rabiscadas anotações, com trechos sublinhados. Tudo isto é livro.


Tenho ciúmes dos meus livros. E só. Não tenho mais nada e isto me basta, porque tenho muitos amigos e porque fui acolhido em algumas academias de letras, sobretudo na Brasileira de Letras, depois de presidir a Pernambucana.


Esta Bienal aconteceu em boa hora. É preciso, como dizemos nós bacharéis, ''chamar o feito à ordem''. Chega de certa busca de justificativa para a condição de analfabeto. O que deve ser louvado é o ato de alfabetizar e de se alfabetizar.


A crença no poder do livro, na sua força catalisadora de cultura e progresso, levou Monteiro Lobato a cunhar a frase que, especialmente nesta Bienal, mereceu ser lembrada, e por todos nós meditada: ''Um país se faz com homens e livros''.


Lobato foi ligado ao livro por ser escritor, por ser editor, por ser patriota.


Entendo que estas bienais, repetidas em confortadora periodicidade, devem ter o sentido não apenas de um simples encontro, mas também de um colóquio eficiente e eficaz entre as comunidades editorial e livreira com leitores, escritores e o poder público.


Acredito que é indispensável a interação entre educação e contexto culturais. Só ela poderá romper o dique que separa o estudante da biblioteca. Não adianta instalar bibliotecas sem instalar no povo o hábito da leitura. Como não adianta crescer economicamente sem desenvolvimento social. Essa dicotomia contribui para que estejamos patinando desde os começos da década de 90 do século passado, no mesmo número de livros editados. Não há mais eleitores, não há mais livros.


A Bienal é uma festa da educação e da cultura, que deve se orientar no sentido desenvolvimentista, porque o desenvolvimento é a cultura em processo.


Envolvem-se, aqui, o esforço em favor do crescimento econômico e o da repartição social de seus frutos. A cultura há de ser prestação de serviços à comunidade, dando e recebendo, crescendo com ela, sob a inspiração maior de como são unívocas a educação e a cultura na realização da integridade do homem.


Os livros e os ciclos de debates, as exposições e as conferências da Bienal são as nossas vozes e os nossos gestos.


Enquanto no Recife nos encontrávamos na reflexão sobre o livro, outras gentes, noutras terras, viviam a mesma experiência, com as mesmas esperanças. Em Madri, a Líber - Feira Internacional do Livro da Espanha. Em Frankfurt, a sua Feira, a maior de todas.


Se não estamos a competir, é claro, estamos a seguir a mesma inclinação de convergência dos que se interessam pelo livro.


Não podia deixar de agradecer a honrosa homenagem que Pernambuco me prestou, pela gentil iniciativa de Homero Fonseca, Eduardo Holanda, Rogério Robalinho e tantos outros. São uma gente, esses promotores do livro, que não me deixam subalimentado de sonho e me conferem o direito de ser insistente na esperança.


O Recife, não fosse tudo o que é como expressão de cultura, apresenta-se como cenário apropriado para se falar de livro, de blog literário, de alianças com a internet, pois temos raízes que nos autorizam à modernidade, sem concessões ao modernoso.


No Recife, entre 1703 e 1707, funcionou o primeiro prelo ''na impressão de letras de câmbio e breves orações devotas''. Em 1817, a tipografia mencionada por Tollenare em Notas dominicais pôs-se a serviço dos revolucionários. Daí para a frente, não houve revolução libertária que, entre os recifenses, não tivesse seu ''porto de abrigo''.


Pernambuco tem intimidades inimagináveis com o alfabeto, matéria-prima de tudo que aconteceu nessa Bienal do Livro.


Jornal do Brasil (RJ) 19/10/2005

Jornal do Brasil (RJ), 19/10/2005