Nova York . Viajar não é somente conhecer, é também reconhecer. Há 45 anos, visitei os Estados Unidos pela primeira vez, como observador na 16ª Assembléia Geral das Nações Unidas. Era o tempo da descolonização. Caía o velho sistema dos impérios, com países explorados por outros, ricos, quase todos na Europa, os segundos, e os primeiros na África. No Oriente Médio, os ingleses, ganhadores da Segunda Guerra Mundial, viam cair os seus protetorados, encharcados em bacias gigantescas de petróleo.
Testemunhei o desfile daqueles sultões de vestes barrocas e coloridas pelos corredores da ONU, com grandes séqüitos em busca dos seus califados perdidos. Hoje se chamam Omã, Kuait, Iêmen, Bahrein, Qatar, Emirados Árabes Unidos e são potências de consumo, paraísos dos novos arquitetos, que ali constroem catedrais do mundo moderno com todos os excessos que o dinheiro faz.
Era o tempo do sonho americano, o "american dream". Ainda havia o cheiro residual da "belle époque", já misturado com o medo do confronto nuclear e a vergonha das pedras do Muro de Berlim.
Hoje, na área da inteligência americana, o sonho é outro. Criar um novo sonho. Nenhuma nação do mundo conseguiu realizar-se como os Estados Unidos, mas eles perderam aquele brilho quase sobrenatural que nos fascinava com o seu estilo de vida e os seus ideais, à frente deles, o deus da Liberdade.
Seus problemas são bem mais complexos que os nossos. Não está resolvido o problema racial, que agora une negros, hispânicos e imigrantes, os mais temidos deles os muçulmanos.
Há um certo cansaço com o desejo de consumir. Betsy Taylor chegou a falar mesmo numa nação de obesos. A fome mata em outras partes do mundo, a comida aqui faz o mesmo, com as doenças e a cultura do fast food.
As soluções da modernidade causam nostalgia. Todos sentem-se sufocados pela falta de tempo. O automóvel deixou de ser a aspiração primeira. Quanto mais aumenta a oferta dele, diminui a de ruas. Há falta de ar, há falta de ócio.
Terreno fértil para conversa são a Guerra do Iraque e o Katrina. A primeira por ser um beco sem saída, apenas um veículo do presidente para legitimar-se depois de uma eleição fraudada e para afirmar-se como líder. Nenhum dos pressupostos da guerra sobreviveu à mentira. Para depor um tirano como Saddam, 2.000 soldados já morreram, bilhões e mais bilhões estão sendo gastos.
Depois, a face da miséria que o Katrina mostrou. Só agora descobriram que 37 milhões de americanos são pobres, que 1,1 milhão de pessoas, no ano passado, engrossaram as mazelas da pobreza e que 28% da população de Nova Orleans vive abaixo da linha de pobreza. E eles não sabem como lidar com a pobreza. Daí o desastre do governo em enfrentar a catástrofe. Os índices de renda per capita e IDH não representam nada sem que se olhem as desigualdades.
Faço essas evocações porque aqui estou, entre saudades e pobrezas, vivendo a emoção de lançar o meu livro "O Dono do Mar" em edição americana da Aliform Publishing, com tradução de Gregory Rabassa, o mesmo que traduziu Jorge Amado, Guimarães Rosa e García Márquez.
Mas nem tudo são espinhos. Esta é ainda a terra da liberdade, dos direitos humanos e da busca da felicidade, que permanece desde os tempos de Jefferson.
Folha de São Paulo (São Paulo) 07/10/2005
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[1] https://www.academia.org.br/academicos/jose-sarney