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A voz dos intelectuais

 

Todo o Brasil está sendo testemunha de um clamor generalizado contra o ''silêncio dos intelectuais'', título de um ciclo de conferências realizadas em várias cidades do Brasil. Evidentemente há uma boa dose de oportunismo em algumas dessas cobranças, feitas por pessoas mais interessadas em atacar um governo de esquerda que em implantar o reino da moralidade pública, mas as críticas contêm no avesso algo de positivo: um reconhecimento da importância do intelectual e mesmo uma indicação implícita dos rumos que deveriam ser seguidos para que sua função se tornasse mais eficaz.


Reconhecimento foi o que não faltou nos anos 50, quando os intelectuais se viam e eram vistos como articuladores teóricos de um grande projeto nacional-desenvolvimentista, e sentiam-se investidos da missão histórica de ajudar a nação a passar do estágio da ''consciência ingênua'' para o da ''consciência crítica''. Ele não faltou também nos anos 60, quando os intelectuais de modo geral se tornaram marxistas e pelo menos na variante gramsciana do marxismo se percebiam como a consciência política do proletariado, como seus ''intelectuais orgânicos''. Não faltou reconhecimento, enfim, nos anos 70, quando os intelectuais passaram a representar a democracia, que entrara em eclipse com o advento do regime militar. Em todos esses casos, os intelectuais falavam. Nos anos 50, eles foram a voz de uma nação ainda mergulhada nas névoas da consciência ingênua; nos anos 60, a de uma classe social que ainda não podia falar por si mesma; e nos anos 70, a de uma sociedade amordaçada.


Tudo isso mudou. No clima anti-elitista que se seguiu ao fim do regime militar, não era mais aceitável a figura do intelectual como consciência de uma sociedade incapaz de pensar. Além disso, com o fim do regime militar o papel político excedente que as circunstâncias tinham imposto aos intelectuais foi devolvido a seus verdadeiros titulares, os cidadãos. É verdade: em grande parte os intelectuais silenciaram. Mas se eles ficaram menos loquazes, foi porque a sociedade, aparentemente, não precisava mais deles. Sua função estava sendo preenchida pelos pastores evangélicos, especialistas no cuidado das almas, e pelos marqueteiros, profissionais do aconselhamento político.


Ora, a atual crise política produziu uma reviravolta. A sociedade, de repente, sente falta dos intelectuais e angustia-se porque eles se calam. É por isso que a campanha contra o silêncio dos intelectuais, por mais espúrias que sejam suas motivações, não é totalmente negativa. Ela não somente contém uma revalorização oblíqua do intelectual como aponta o caminho para que ele volte a tornar-se relevante. Ao censurar sua mudez a sociedade diz que o intelectual deve falar, agindo politicamente. Ao censurá-lo por ser parcial, ela está dizendo que o intelectual não pode ser particularista, defendendo um partido específico, mas deve deixar-se guiar pela visão do todo.


Curiosamente, a releitura de Sartre que estamos empreendendo este ano, por ocasião do centenário de nascimento do filósofo, dá-nos algumas pistas que parecem atender a essa dupla exigência.


Numa conferência no Japão, em 1965, Sartre provocou seu público dizendo que o intelectual era aquele que se metia com o que não era de sua conta: ''il se mêle de ce qui ne le regarde pas''. Com isso, tornava impossível qualquer definição sociológica do papel do intelectual. O médico, o engenheiro, o cientista, o professor e até mesmo o filósofo e o romancista ocupam um lugar definido na divisão social do trabalho. Mas quando o químico expõe os efeitos letais da gasolina napalm usada no Vietnã ou o físico denuncia a política nuclear das grandes potências, eles estão saindo de sua competência e metendo-se em assuntos que não são de sua conta. Isto não significa que não exerçam uma função. Somente, não é mais uma função sociológica. É uma função política, além da divisão social do trabalho.


O que leva os trabalhadores não-manuais a saírem dos seus respectivos nichos para se transformarem em intelectuais? Partindo do princípio de que em sua maioria esses especialistas são de origem burguesa, Sartre pensa que eles são movidos pela contradição entre seus métodos universais de pesquisa e trabalho e o particularismo da sociedade de classes, entre a universalidade dos seus fins e as formas particularistas de apropriação pela burguesia do saber gerado. A contradição, em suma, é entre o universalismo de sua profissão e o particularismo de sua ideologia e de sua situação de classe. Diante dessa contradição, o especialista do saber prático assume a perspectiva da classe explorada, transformando-se em intelectual. Sua função é contribuir para que a sociedade progrida em direção à universalidade, abandonando suas características particularistas.


Depois de maio de 1968, o pensamento de Sartre se radicaliza. Adepto do maoísmo, declara que mesmo o intelectual identificado com os fins históricos da classe operária está a serviço do status quo. É um intelectual, porque defende causas de esquerda, mas é um intelectual clássico, porque se limita a lutar pela eliminação da contradição na sociedade, em vez de eliminá-la. Sabendo-se ao mesmo tempo funcionário do universal e trabalhador assalariado de uma sociedade negadora do universal, o intelectual clássico se contenta em viver a contradição, no sofrimento, mas também na euforia, porque o reconhecimento por parte do sujeito de que é uma alma dividida pode ser uma fonte de prazer. Ele tem má consciência por receber um salário da sociedade repressiva, e boa consciência por ter tido má consciência, provando com isso não estar irremediavelmente corrupto. Mas suprimir a contradição em si mesmo deve levar, logicamente, à supressão do intelectual, já que o intelectual se define precisamente pela consciência dividida.


Essa estratégia do suicídio revolucionário não parece muito atual em nossa época pós-maoísta. Em compensação, a teoria exposta no Japão contém elementos que podem ajudar-nos a repensar a natureza do intelectual.


Primeiro, podemos concordar com Sartre em que o intelectual é um especialista do saber prático que sai de seu estatuto social para bater-se politicamente na esfera pública. Sim: os intelectuais são os que abandonam seu estatuto sociológico para exercerem uma função política, isto é, para se meterem com aquilo que não lhes diz respeito. Os que viveram a ditadura militar brasileira sabem do que estamos falando. Todos se recordam da ira sagrada do regime contra os professores universitários que iam além das suas funções estritamente acadêmicas, fazendo política.


E, segundo, podemos concordar com Sartre em que o intelectual atua no universal e está a serviço do universal. Ele atua no universal, porque fala em nome de princípios e valores universais e distancia-se de qualquer perspectiva particularista, que tenha como foco exclusivo uma nação, uma cultura, uma classe ou um partido. E está a serviço do universal, porque vive numa sociedade particularista, com gritantes assimetrias de riqueza e poder. Vive num sistema mundial também particularista, com brutais disparidades entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, e em que o poder está de tal maneira concentrado no país hegemônico que o restante da população do planeta é forçado a sofrer o efeito de decisões para cuja adoção ele não contribuiu, como foi o caso da invasão do Iraque. O trabalho do intelectual, nos dois casos, visa à eliminação dos particularismos repressivos.


Creio que a definição ''sartreana'' corresponde de perto às expectativas da sociedade brasileira com relação ao intelectual: a de que ele seja politicamente ativo e a de que ele pense e atue em termos universalistas. Mas três reservas se impõem.


A primeira é que a tarefa de universalização ultrapassa a força conjunta de todos os intelectuais do mundo. Não podemos, por isso, repetir o velho erro de dar uma estatura heróica ao intelectual. Temos que aceitar com equanimidade a imagem que Sartre faz dele, a de um homem dividido, sujeito ao que Hegel chamava ''consciência infeliz''. Ele é dividido por seu estatuto, ao mesmo tempo com um lugar e fora de todo lugar, ocupando um lugar enquanto especialista do saber prático, e sem lugar quando se coloca em situação de extra-territorialidade, agindo politicamente. Ele é dividido em sua própria sociedade, porque é ao mesmo tempo beneficiário de um sistema injusto e partidário de uma ordem social que visa à eliminação de todos os privilégios. Enfim, ele é dividido no plano internacional, pois tem uma dupla cidadania, a que exerce em sua comunidade de origem e a que resulta de sua condição de participante virtual de uma sociedade civil ainda inexistente - a mundial. Por tudo isso, o intelectual é o homem da Spaltung, como diria Lacan, da cisão, da incompletude. Isso não impede que possa dar importante contribuição ao processo de universalização, se reconhecer os seus limites.


A segunda reserva tem a ver com a ação política. Não penso que se deva patrulhar um escritor, exigindo que ele seja sempre ''engajado'', como propunha Sartre em O que é a literatura? Não se pode exigir de Guimarães Rosa senão que escreva Grande Sertão: tudo o mais é stalinismo. Não é fácil concordar com Sartre quando ele considera Flaubert e os Goncourt como responsáveis pela repressão que se seguiu à Comuna, por não terem escrito uma linha para impedi-la. Daí a distinção, para a qual o próprio Sartre apontou o caminho, entre o escritor (no sentido amplo do termo) que ocupa um lugar na divisão social do trabalho e que não precisa ser politicamente ativo, e o intelectual, que é também um escritor, mas que se desprende do seu lugar social para agir como intelectual. Quem precisa ser engajado é o intelectual. Quem faz uso de sua liberdade para escolher a condição de intelectual não pode ser passivo em política, nem aderir a uma lealdade meramente particularista. Para dizer tudo, e para voltar a nosso ponto de partida, o intelectual não pode silenciar, mas será que o silêncio realmente existe? A resposta está em Sartre: ''O silêncio é um momento da linguagem; calar-se não é ficar mudo, é recusar-se a falar, e portanto é ainda falar.''


A terceira reserva tem a ver com a questão da democracia. Sartre foi um intelectual exemplar, segundo sua definição. Ele cometeu alguns equívocos, como sua posição incondicional a favor da União Soviética, mas quase sempre se bateu em nome de valores universais. Foi o que fez em defesa do casal Rosenberg, em crítica do colonialismo francês na Argélia, em denúncia dos crimes de guerra dos EUA no Vietnã, em apoio à revolta estudantil de 1968, em manifestação a favor do grupo Baader-Meinhof, e em intervenção a favor dos fugitivos do regime comunista de Hanói. Ocorre que todas essas iniciativas foram possíveis porque ele vivia num estado democrático de direito. Cidadão de um país em que esse regime era óbvio, Sartre nunca deu importância especial à defesa da democracia. No Brasil, a democracia está longe de ser óbvia. No passado, tivemos pensadores que formulavam políticas, achando que elas podiam ser executadas sem passarem pelos procedimentos democráticos. É o que não podem fazer mais em nenhuma hipótese os pensadores que escolheram ser intelectuais. Sabem que não há caminhos fora da democracia. Suas críticas, análises e propostas não são receitas de iluminados, mas elementos destinados a alimentar processos públicos de debate. Se suas idéias não forem aceitas, o intelectual apaga-se diante do povo soberano, única fonte de legitimidade numa sociedade civilizada.


E eis como o encontro fortuito de uma crise e de um centenário pode ajudar-nos a devolver sua voz ao intelectual, salvando-o da mudez a que ele parecia condenado.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 22/10/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 22/10/2005