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Um político de verdade

 

Em programa sobre Ulysses Guimarães na GloboNews, o jornalista que mais sabe sobre ele, Jorge Bastos Moreno, repetiu frase minha dizendo que o silêncio e o olhar de Ulysses pesavam mais do que a pata de um elefante, tal era a liderança e o respeito de que gozava. Ulysses representou, literalmente, o que é ser um político, um líder. Tinha coragem. Há episódios que ilustram esta virtude. Seja o ousar chamar os generais da trinca que mandava no Brasil de “os três patetas”, quando fizeram por sua conta e gosto um reforma nas regras eleitorais, seja o haver desempenhado o papel de anticandidato à Presidência, quando esta era decidida pelos votos controlados pelo governo no Colégio Eleitoral, seja o ter enfrentado a polícia baiana que, com com cães, buscou impedi-lo de ingressar na sede do MDB em Salvador.

Recordo-me do Ulysses anterior aos tempos de glória. Conheci-o (mas não ele a mim) quando de sua candidatura frustrada ao governo de São Paulo, na década de 50, pelo PSD. Meu pai era deputado federal pelo PTB-SP, aliado ao PSD. A seu pedido, para apoiar Ulysses, inscrevi-me no diretório do PSD de Ponte Grande-Ponte Pequena. Segui-o em suas peregrinações. Figura esbelta, desprovido de cabelos, os olhos verdes penetrantes e o linguajar erudito causaram-me impressão marcante.

Ele de mim só tomou conhecimento na década de 70. Lembro bem da visita que me fez com João Pacheco Chaves na instituição em que então trabalhava, o Cebrap, núcleo de intelectuais resistentes aos arbítrios do regime. Pediram-nos ajuda na preparação de um programa para a campanha que se avizinhava, em 1974. Alguns se dispuseram a cooperar. Feito o programa (matriz para vários posteriores) fomos a Brasília apresentá-lo ao MDB. Aprovaram-nos. O programa, encapado de vermelho, serviu para agitar a campanha eleitoral. Em outubro de 1974, o MDB ganhou surpreendentemente as eleições legislativas. Virtude do programa? Não, de Ulysses. 

Ulysses não era um político comum. Sabia que ganharia ou perderia pela voz e pelo gesto. Mas queria construir um partido e este se faz com homens (bastam uns poucos, decididos, dizia ele), mas só se mantém no poder democrático com ideias. Sabia que a vitória sem rumo leva ao caos. Acreditava na política com compromissos, a serem assumidos com responsabilidade.

Conto outro episódio. Em 1978, Severo Gomes e eu fomos à casa do general Euler Bentes Monteiro. Em outubro, o Colégio Eleitoral elegeria novamente o presidente pela via indireta. Para nossa surpresa, o general se dispunha a aceitar uma candidatura pela oposição. Severo enviou-me a São Paulo célere para que transmitisse a nova ao doutor Ulysses. Ele ouviu-me, nada disse. Dias depois, chamou-me à sua casa da Rua Campo Verde. Perguntou minha opinião. Disse-lhe que era favorável. Por quê?, indagou. Porque é a primeira vez que vejo uma divisão de monta no regime militar. Sozinhos, não os venceremos, estamos demorando demais em assumir a candidatura Euler. Foi quando me olhou com a expressão pesada (que qualifiquei de olhar de jacaré) e ficou em silêncio. Depois disse: “Uma decisão desta responsabilidade tomo sozinho. Você sabe que São Paulo é civilista.” Para quem não o conhecesse pareceria arrogância. Não era. Era senso de responsabilidade. Sentia que perante a História quem seria julgado pela decisão e por suas consequências seria ele, o chefe das oposições. Se há alguém na política recente do Brasil que foi engrandecido pela História, e não apenas absolvido, foi Ulysses Guimarães, um político de verdade.

O Globo, 07/10/2016