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Saudade de Austregésio de Athayde

 

Austregésilo de Athayde, hoje sepultado no glorioso Mausoléu que ele mesmo, com o seu pragmatismo e vocação de grandeza, construiu para a nossa tranqüilidade pessoal, foi um acadêmico perfeito. Para ele, o ato de morrer deve ter sido uma desagradável surpresa, já que só acreditava na morte dos outros, especialmente na dos seus pares.


Tempos antes, um grupo de companheiros o procurou, reivindicando um seguro-saúde que pusesse os integrantes da Academia Brasileira de Letras que se dizem pobres ou remediados a salvo dos vexames monetários gerados pelas enfermidades. Sua mão-de-boneca, responsável pelo vigor material da ABL, enxotou a pretensão descabida, ao mesmo tempo que os tranqüilizou, dizendo-lhes: ''Não se preocupem, vocês são os meus filhos bem-amados, e haverão todos de morrer nos meus braços''.


A previsão afetuosa não se confirmou. E ficamos todos na saudade, que era, antes de mais nada, uma orfandade.


Austregésilo de Athayde se julgava eterno e imortal e, pela primeira vez, nos desapontou e nos decepcionou, não mais se sentando naquela cadeira que, vazia, nos adverte para a herança formidável amealhada em 35 anos de exercício de uma presidência que se distinguiu principalmente pela sua capacidade de acumular atribuições regimentais.


Numa paródia à frase lapidar de Flaubert, o presidente Austregésilo de Athayde podia dizer: ''A Academia sou eu''. E o era de tal modo que, ao sair dela, a levava consigo. Deixava as paredes e os livros, as cadeiras que seduzem tão variegadas ambições e vaidades e a mesa do chá, e a carregava, virtualmente, para onde fosse.


Dizia-se que ele não se permitia que a surpresa de um desenlace inesperado atropelasse o seu dever presidencial de oferecer ao companheiro recrutado pela morte uma despedida estilisticamente perfeita e com a dose certa de afeto. Espírito frugal, habituado pela contabilidade da vida a somar e a amealhar, Austregésilo de Athayde, pelo que se assoalhava à boca miúda, entesourava em sua gaveta uma média de 17 discursos de despedidas aos futuros companheiros mortos.


Presumo, porém, que há grande exagero nesse cálculo. Talvez ele se limitasse a algumas e poucas produções de oratória fúnebre, e assim mesmo para exprimir o seu zelo, ou cautela, ou talvez por motivo meramente estilístico, para exercitar a pena. Essa pena admirável que, durante 76 anos, em prosa rija e persuasiva, e quase sempre visitada por uma aragem oratória, foi produzindo diariamente uma verdadeira galáxia de artigos de jornal que o colocam no primeiro plano da imprensa brasileira de todos os tempos.


O antigo seminarista que deixou o seminário porque não acreditava em Deus, e talvez nem sequer acreditasse nos homens, propalava em sua atuação jornalística uma continuada lição de solidariedade, culto à liberdade, confiança no futuro nacional e defesa dos direitos humanos. Nesse sentido, o seu trabalho na imprensa correspondeu a uma longa e luminosa pedagogia cívica.


Conhecedor profundo da Bíblia, dos trágicos gregos e de Shakespeare, versado em grego, latim e aramaico e em várias línguas modernas, Austregésilo de Athayde trouxera do seminário a vasta cultura humanística que lhe dava autoridade e representava uma das seduções de seu convívio de grande letrado. Mas não eram apenas os seus amigos e companheiros de Academia que tinham acesso a esse rico e vistoso patrimônio espiritual. Em seus artigos de jornal, espelhos incontáveis dos dias que passam, das nossas perplexidades intestinas e das inquietações e esperanças do universo, Austregésilo de Athayde sabia utilizar-se, no instante certo, dessa larga experiência de leitura que compendiava a experiência e a imaginação dos séculos e dos milênios. O antigo seminarista se aproveitava das ocorrências mais efêmeras para difundir verdades ou ficções eternas.


Com a morte de Austregésilo de Athayde salteou-me um sentimento de orfandade - e hoje estou certo de que esse sentimento foi comum na Casa que se habituou a respirar a sua presença imperiosa, que se manifestava de forma tão determinada e mesmo autoritária.


Ainda estou a vê-lo na pequena sala do andar térreo, na gruta sempre escurecida, vestido no vetusto terno azul que era a referência mais visível do seu espírito frugal mesmo nos banquetes mais fartos, e de seu fervor pelas operações de amealhamento e poupança. O grande jornalista e cidadão eminente, que possuía duas ilhas, transitava no mundo com uma roupa só comparável ao burel de um franciscano. Aliás, antes de assumir a presidência da nossa Academia, o grão-senhor que sempre foi Austregésilo de Athayde costumava andar de sandálias.


Estou a vê-lo, na sua cautelosa entre-sombra, e me detenho diante de sua figura para mim sempre misteriosa, como se guardasse um segredo que não quisesse revelar a ninguém.


Foi à minha revelia que entrei no seu coração - no seu coração desiludido, pelo qual passara o seu grande amor por uma mulher, Dona Jujuca, e as sombras fugazes de tantas paixões menores. E a esse amor de homem cabe acrescer o seu amor pela ABL: um shakespeariano amor de Otelo que o induzia, às vezes, nas periódicas operações eleitorais que tanto desmentem a nossa imortalidade, a praticar metamorfoses que muitos alquimistas da Idade Média haveriam de invejar.


Numa carta a sua filha, Madame de Grignan, dizia essa Madame de Sevigné, que leio e releio desde a infância: ''Il vaut mieux reverdir que d'être toujours vert''.


A nossa Academia Brasileira de Letras, inspirada na longa, verde e viçosa administração do presidente Austregésilo de Athayde - que todos nós julgávamos eterno -, voltou, depois de sua morte, a reverdecer.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 05/10/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 05/10/2005