Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Prioridade cultural

Prioridade cultural

 

No dia 14 de julho de 1998,a Academia Brasileira da Letras recebeu a visita de confrades da Académie Française, à qual sempre esteve ligada por profundos laços culturais. O então secretário perpétuo da congênere gaulesa, o escritor Maurice Druon, abandonou momentaneamente o texto de seu discurso para propor aos colegas brasileiros a criação do prêmio da Latinidade, a ser conferido pelas duas academias a um escritor de uma das línguas latinas. A acolhida foi imediata e plena.


Em março do ano findo, comissões das duas academias se encontraram, em Paris, para escolher o primeiro detentor da láurea literária. O nome escolhido foi o do romancista mexicano Carlos Fuentes. A entrega do galardão se deu na ABL, com a presença dos presidentes da república Ernesto Zedillo (México), Jacques Chirac (França) e Fernando Henrique Cardoso (Brasil).


Em obediência à alternância acordada, o prêmio do ano 2000 deverá ser conferido em Paris, mas a escolha se deu na ABL, no último dia 13 de março, quando a preferência recaiu sobre o escritor italiano Pietro Citati, particularmente conhecido por suas obras sibre Proust, Goethe e Kafka.


Prioridade


A criação do prêmio da latinidade certamente enseja a questão fundamental sobre o sentido de que se reveste a prioridade cultural das duas academias, agora robustecida pelo prêmio da Latinidade.


A latinidade está na origem de nossa cultura ocidental, mas se revela mais presente nos países cujas línguas têm mais a dever à sua fonte. O latim se tornou a língua universal, mas os romanos possuíam nítida consciência da diversidade de culturas com que se defrontavam em suas crescentes conquistas territoriais. Houveram por bem abrir espaço para valores de distinta procedência, assim permitindo uma saudável mistura cultural, sem o que a expansão de seu império não teria alcançado o extraordinário êxito que a história registra.


O espírito latino se foi infiltrando nos novos espaços e gerou uma pletora de belas línguas, cujos vocábulos penetraram bem fundamente nos mais relevantes idiomas. A respeito, assinala-se o livro Mots sans fronti x res, já traduzido para o português, de autoria do acadêmico Sérgio Corrêa da Costa, que logrou importante prêmio da Academia Francesa. O estudo revela, surpreendentemente e nos limites da séria pesquisa encetada, que o francês é o idioma que maior número de palavras exportou para as demais línguas, num universo inventariado das 46 línguas mais importantes, seguido pelo inglês, pelo latim e pelo italiano. E mais. A língua francesa revelou vigor incomum, pois seus vocábulos perduram através do tempo, acusando uma durabilidade superior à do inglês, até porque prioriza as idéias, os conceitos, de preferência à concretude mais presente no inglês.


Se hoje a língua inglesa permeia todos os continentes com sua presença visível e inequívoca, a cultura brasileira se estruturou, e muito, com base na contribuição maciça de autores franceses. É certo que de Portugal colhemos muitas de nossas mais importantes características como povo, em nossos hábitos, em nossas rotinas burocráticas, em nossa propensão para evitar os conflitos virulentos, em nossa tendência a reservar mais espaço para o sentimento do que para a razão, e sobretudo herdamos a bela língua que nos une indefectivelmente.


E bem de ver, porém, que a riqueza renascentista que inspirou as culturas da França, da Alemanha, da Itália e de outros países, não penetrou como seria de desejar-se no tecido cultural luso. A defasagem responde em parte pelo nosso atraso, um pouco minorado precisamente pela presença cultural gaulesa entre nós.


Nossos intelectuais de maior porte dominavam a língua de Moli x re, de Corneille e de Racine e respiravam a atmosfera cultural de Paris. Montaigne, Condorcet, Saint Simon, Rousseau e, mais modernamente, Balzac, Victor Hugo, Proust, Anatole France, Baudelaire, constituíam leituras obrigatórias no país. No domínio filosófico, sem Victor Cousin, não se explicaria o ecletismo entre nós, da mesma forma que Malebranche e Maine de Biran inspiraram o espiritualismo que vicejou e ainda está presente em nossa cultura. Sem falar no poderoso influxo do positivismo de Auguste Comte, na raiz mesma de nossa república.


Retorno


No século XX, Sartre, Merleau-Ponty, Raymond Aron, Malraux, Lavelle, Bergson, Blondel, Deleuze, Derrida, Bordieu, Baudrillard, Marcel, Maritain, Bachelard, Morin são referências constantes em obras de patrícios nossos, a ratificar a presença profunda do pensamento gaulês em nossa filosofia e em nossas ciências sociais.


As artes igualmente figuram em nosso espectro cultural, com os impressionistas Cezanne, Monet, Manet, Degas, Renoir; a escultura nos remete continuamente a Rodin, como a música nos lembra a poderosa presença de Bizet e de Débussy.


No momento em que a face oculta da cultura anglo-saxã prevalece sobre a contribuição fecunda e rica que bem poderia estar mais presente entre nós, cumpre-nos volver às nossas raízes latinas. Não se trata de discriminar outras culturas, que compõem o amplo mosaico do saber e do fazer universal, senão de atribuir prioridade ao que mais de perto nos fala à alma e acena, mais genuinamente, para o porvir de nossa identidade cultural, sem o artificialismo das caricaturas indesejáveis.


 


Jornal do Comércio - Rio de Janeiro - RJ, 22/03/2000

Jornal do Comércio - Rio de Janeiro - RJ,, 22/03/2000