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Pátria ausente

 

Passei a Semana Santa com as cartas de Sêneca. Faminto de consolo e esperança, suas palavras brilham como Sol, depois de vinte séculos. Livres de ilusão, as cartas não cultivam dissabores, antes produzem um sentimento de autonomia e liberdade diante dos reveses destino e da humana condição.

Uma filosofia sem arroubos, madura, pronunciada a meia voz, ensaiando um repertório de escolhas capazes de nos libertar da dispersão e da tristeza de que somos presas. E impedir nossa entrada num labirinto de dor e aflição, de onde mal conseguimos sair, tão prisioneiros nos sentimos.  

As cartas de Sêneca podem servir como guia de sobrevivência ao Brasil atual, ao profundo mal-estar que nos fere a cada dia, com seu instinto de ódio e guerra, dos súditos da cólera e das paixões tristes, movidos por slogans e ações políticas que redundam em teatro de bonecos.  As cartas oferecem um sabor de exílio, no entanto para dentro, como quem tempera seus instintos, num alternar-se de triunfo e desventura, que foi quanto vivemos nos últimos vinte anos, em compasso de espera de novas eleições.  

Passeio no jardim, com minha velha pastora alemã, de olhos cansados e audição precária, enquanto leio Sêneca para esconjurar o travo amargo que nos cerca e não dá trégua. A carta sobre a virtude traz uma leveza singular, assim como aquela sobre o uso do tempo e ainda outra acerca das vantagens da vida solitária. A conclusão da carta sobre as paixões diz: “amamos nossos vícios, preferimos defendê-los e desculpá-los.” Fecho suas páginas, expulso, de repente, de uma impossível harmonia.

Porque o Brasil é uma ideia fixa, rumor de fundo, paixão e desengano, dolorosa ferida, hábito feroz. Como desligar-se de seus reveses e rupturas, esse meu vício cruel, que desculpo e defendo. Talvez porque não aceite uma cidadania “in vitro”, separada por estamentos, redimida tão somente pela força das armas quando assassinam uma vereadora e atiram na caravana de um ex-presidente, sem contar as mortes no morro e no asfalto, insultos aos direitos humanos, vergonha da sociedade civil.
     
Longe de seus destinos, uma parte do Brasil vai à deriva, enquanto outra parte, ativa, silenciosa e resiliente não perde o norte. Setores do campo e da escola, da periferia e da universidade sentem as dores do parto. Um Brasil a contrapelo, maior que seus representantes, centrado na ética do trabalho e da palavra, radicado em práticas mutualistas, já se tornou irreversível, desde as camadas populares.   
       
As cartas de Sêneca dirigem-se hoje para uma ideia republicana em ato, concreta e cidadã, com um profuso sentimento de paz, construído passo a passo com a simetria de oportunidades iguais para todos. 

Como disse Sophia de Mello Breyner: “Quando a pátria que temos não a temos, perdida por silêncio e por renúncia, até a voz do mar se torna exílio, e a luz que nos rodeia é como grades.”

O Globo, 04/04/2018