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O saber e o falar

 

Vocês sabem o que é “ fileiros”? (Esse neologismo, “fileiros”- os que fazem fila - não fui eu quem o inventei, já vem fazendo carreira entre os próprios, quer dizer, os fileiros). Aliás, neologismos, principalmente os de gíria, têm quase sempre nascimento humilde. As pessoas mais cultas, ou escutam as palavras difíceis na sua própria casa ou as consultam no dicionário. O ignorante comum tem o próprio dicionário na cabeça, restrito, é verdade, muito faltoso na conjunção dos verbos, mas dono de um toque pessoal inclusive.


Foi um assunto que sempre me impressionou, como é que nasce uma linguagem. Quando eu era ainda menina e começaram a me ensinar o francês, o grande mistério para mim era: como será que eles deram para falar desse jeito? Inventaram primeiro as palavras todas e desandaram falando, ou foram inventando as palavras de uma em uma?


Devemos confessar que, a essa altura do mundo, ainda sabemos muito pouco da invenção da linguagem. Claro que os especialistas explicam tudo a respeito, mas quem é que acredita em especialistas? Por exemplo: na nossa língua se diz menino-menina. De repente veio alguém que inventou “criança”, uma palavra só para dizer, no lugar das duas. E afinal, todas essas minhas hipóteses são justas, pois ninguém sabe mesmo como é que nasce um idioma. Descartando-se a origem bíblica do par inicial, Adão e Eva, que já nasceu gordinho e falando tudo, como é que começa uma língua? Tudo virá mesmo de um casal inicial? Por que, em resumo, a indagação inicial é esta: agente provém de um par humano único, ou da lenta transformação de macacos em homens? E, mesmo dentro dessa hipótese, como começou o primeiro casal de macacos? Os livros de História não nos ensinam nada disso. Será que a princípio foi uma bolha e dentro dessa bolha havia um ponto de vida e esse ponto virou um animáculo, e o animáculo foi se dividindo em duas e depois suas metades se dividiram em duas e, de divisão em divisão chegaram ao homem? No Colégio da Imaculada, quando estudávamos para normalistas, o nosso professor, um médico ateu, citou as diversas hipóteses para a criação da vida e o seu desenvolvimento e nos disse sorrindo: ”Escolham a melhor que lhes parecer dessas hipóteses, mas não contem as irmãs que eu desdenhei de Adão e Eva”.


Vocês já pensaram o que seria essa frase do professor ou, antes, essa dúvida para um auditório de meninas, composto de adolescentes como eu, que era a mais nova, mulheres já feitas, muitas delas se preparando para o noviciado religioso?


Bem, para as postulantes, as quase freiras, não havia problema, já estavam encartadas no papel, tinham ouvidos moucos para tudo que fugia à doutrina. Mas o meu time fervia, cada uma inventava a sua teoria da criação e da reprodução, mas éramos tão “menino de cinco anos nu” que, de certa forma, era defeso ao nosso olhar. Menina, desde pequenina, não se misturava com meninos. Maria Vivência, uma das nossas auxiliares de disciplina, nos obrigava a tomar banho de chuveiro vestidas em camisolões, e uma das auxiliares da disciplina ensinava às pequenas a se enxugar e mudar de roupas. Nós que nos virássemos, protegidas pela toalha que se destinava originalmente não só a nos enxugar como a nos cobrir. Curioso é que jamais discutíamos em casa a obsessão de modéstia imposta no internato. Em casa víamos nossas tias jovens e as primas passeando pelo quarto em trajes menores sem qualquer curiosidade de nossa parte. Talvez obscuramente pensássemos que as mulheres de casa compunham um núcleo especial.


Engraçado é que, da adolescência à velhice, a gente evolui muito menos do que pensa. Mesmo depois de tanta idade, ainda temos uma vasta cópia de curiosidades reprimidas. Talvez as moças de hoje já procedam diversamente. Mas nós, coitadas, vamos morrer mesmo como espécies de uma raça extinta.


 


Correio Braziliense - Brasília - DF, 12/02/00