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O realismo mágico

 

As próximas cenas do drama político brasileiro em curso terão o Supremo Tribunal Federal como protagonista, seja na definição de punições rigorosas aos irmãos Batista e seus delatores, um bando de caipiras metidos a espertos que tentaram desfazer do sistema jurídico brasileiro, quanto na decisão sobre o prosseguimento de processos contra o presidente Michel Temer baseados nas delações da JBS.

A defesa do presidente já entrou com um pedido, mesmo antes que a segunda denúncia se materializasse, para que ela não seja aceita enquanto não houver uma definição sobre a validade como prova do primeiro áudio. Tudo indica que há uma tendência majoritária no STF a favor da manutenção das provas, o que não quer dizer que uma eventual segunda denúncia venha a ser aceita pelo Congresso.

Já era muito difícil que isso acontecesse mesmo sem esse novo áudio que reproduz “uma conversa de bêbados”, na definição do próprio Joesley. A Operação Lava Jato, por sinal, está servindo, entre outras coisas, para revelar as entranhas de nossas elites dirigentes em linguagem crua e vulgar.

Já tínhamos ouvido diálogos inacreditáveis envolvendo Lula e seus petistas prediletos, com o mesmo tipo de machismo presente na “conversa de bêbado”. Ouvimos também trocas de palavrões e impropérios em conversas entre políticos, entre políticos e empresários, com uma falta de educação apartidária comum a todos.

E vimos, estarrecidos, como os personagens desse dramalhão que mais parece saído das páginas de realismo mágico de Gabriel Garcia Marques podem chorar de um falso arrependimento, podem se rebaixar diante de um Juiz, podem mentir para se safar, podem omitir informações para proteger seus protetores e a si mesmos. Nada mais devastador do que as malas e caixas com dinheiro vivo encontrados no apartamento de Geddel Vieira Lima, o mesmo que dias antes chorara feito criança para sair da cadeia.

Nada mais patético do que ouvir aquela “conversa de bêbados” e saber que ela se dá entre o proprietário e executivos de uma das maiores empresas brasileiras, fundada em valores como os revelados, guiada por espertezas como as bravateadas entre ruído de gelo nos copos.

O sucesso desse tipo de empresário é fruto direto do capitalismo selvagem à custa da proteção estatal que vigora há muitos anos no país, aprofundada, e por isso mesmo desmoralizada, nos governos petistas.

O depoimento do ex-todo-poderoso Antonio Palocci, desnudando conversas de bastidores entre Lula e empresários como Emilio Odebrecht ( que também já dera mostra de uma insensibilidade notável em depoimento anterior) onde a sorte do país estava sendo jogada, é exemplar do momento decisivo em que o delinqüente escolhe entre contar tudo ou mofar na cadeia.

Um militante político como José Dirceu, ou João Vaccari num plano hierárquico inferior, jamais abrirá o jogo. Vaccari provavelmente por equívocos ideológicos próprios, Dirceu na doce ilusão de manter para a posteridade uma lenda em torno de sua atuação, a única esperança que lhe resta de não passar para a História como um relés ladrão, de sonhos e de pecúnia.

Palocci, um ex-trotkista tomado pela ganância que o tirou duas vezes de governos e encerrou a possibilidade de vir a ser presidente da República, foi bastante sincero em seu depoimento. Estava ali para se aproveitar dos benefícios que a lei outorga aos colaboradores.

Uma passagem digna de registro é quando ele se desculpa com Moro por não chamar propina de propina. Ele diz que está acostumado a esconder na linguagem essas ações transgressoras, e resolve chamar as coisas pelos nomes. “Lula recebia propina da Odebrecht”, falou a certa altura, escandindo as palavras como se as vomitasse.

Se, como tudo indica, o império petista ruir, estará a salvo com sua delação premiada. Se porventura Lula voltar ao poder, o que a cada dia está mais difícil, bastará que Palocci confirme o que os petistas mais renitentes estão alegando. Que sofreu tortura psicológica na prisão e inventou tudo para se livrar das garras de Moro.

Como sua história coincide com dezenas de outras e é corroborada por fatos e provas abundantes, é mais provável que um político arguto como Palocci já notou que a brincadeira chegou ao fim.  

O Globo, 08/09/2017