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O carnaval dos livros

 

A Quarta-Feira de Cinzas é, por tradição, o dia em que guardamos a máscara e damos fim ao livre comércio das palavras. Cessam a legítima inversão de papéis e a crítica impiedosa dos costumes, como quem volta do espaço dionisíaco ao mundo geométrico de Apolo. E, no entanto, a folia persiste, ultrapassando, Brasil afora, o antigo limite quaresmal.

É o que faço hoje, ao levar para a biblioteca um estranho carnaval dos livros. Nada de novo, pois a ideia da vida autônoma dos volumes possui já muitos séculos. Gosto da famosa guerra noturna entre os livros antigos e modernos, deflagrada pela vizinhança num mesmo território cartáceo, como se fazia no século XVIII.

Livre, portanto, de tentações eruditas, apresento apenas máscaras de livros especialmente confeccionadas para o presente que nos cerca. Quem sabe não venham todos a sair por uma nova editora, cujos títulos seguem abaixo, obra coletiva de irreverentes foliões:

— “Arte do perdão: o caixa dois como instrumento de alta política e motivos imperiosos para a sua urgente descriminalização”;

— “Manual de teologia para uso restrito das prefeituras messiânicas do Brasil”;

— “Tratado da perfeita modéstia: elogio ao enriquecimento exponencial dos gestores da coisa pública”;

— “O impedimento como excelso princípio de paz e diálogo institucional”;

— “Relatório sobre a fome de visibilidade como dependência química sofrida por alguns membros do Judiciário”;

— “O Estado mínimo e a privatização radical: projeto de lei para substituir a Carta Magna pelo moderno Código do Consumidor”;

— “A delação premiada enquanto primeiro passo para se atingir a santidade”;

— “A suprema vantagem da estagnação econômica para conter a espiral inflacionária”;

— “Propinópolis: glossário ilustrado sobre pseudônimos poéticos na lista das empreiteiras”;

— “O garantismo como entrave ao bom funcionamento da Justiça”;

— “Estudos sobre a ampliação da longevidade para fazer frente aos benefícios da reforma da Previdência”;

— “Como romper a Constituição de 1988 mediante nobres argumentos do ‘é dando que se recebe’ e outras negociações igualmente republicanas”;

— “Manual de blindagem seletiva dos citados na Lava-Jato pela Suprema Corte, ilustrado com um conjunto de súmulas desvinculadas”;

— “A impopularidade como alavanca das grandes reformas e a banalização do debate nas modernas democracias”.

Esses livros, menos que arlequins, não passam de monstros bifrontes, entre o real e o imaginário. Para combatê-los, é preciso voltar a ler George Mosse, que apontava, desde os anos 80, para a fragilidade de nossa democracia e suas derivas autoritárias, com o termômetro da classe média, a espessura da burocracia e a garantia do bem-estar social.

Hoje de tarde, as cinzas, da quarta-feira, as da fênix, que se traduzam na esperança de uma reforma política séria, depois de 2018, pois agora seriam desacreditadas e aumentariam o baixo impacto da democracia.

Como ainda acredito no Brasil, permaneço obstinado na trincheira do diálogo.

O Globo, 01/03/2017