Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Nova Era de esperança

Nova Era de esperança

 

Às 6 h da manhã da última quarta-feira, um carro saiu de Nova Iguaçu e levou três horas para me pegar em Ipanema e me levar para um programa, digamos, sui generis: participar do ato Ocupa Literatura na Biblioteca Comunitária Zuenir Ventura em Jardim Nova Era, um bairro na periferia daquele município fluminense, que já foi famoso pela violência e hoje é uma referência por desenvolver uma política pioneira que considera, por lei, a leitura como “Direito Humano”.

O evento faz parte do movimento Baixada Literária, promovido pela Rede de Bibliotecas Comunitárias espalhadas pela região com apoio do Programa Prazer em Ler, do Instituto C&A. Através de atividades como jogos literários, contação de histórias, conversas com autores, concursos de poesia, crianças e adolescentes são motivados por uma espécie de pedagogia lúdica que tira da leitura o caráter de obrigação, de dever: ela vira um grande divertimento. 

Dessa vez o Ocupa Literatura aconteceu na “minha” biblioteca, que existe há 20 anos, graças à dedicação de Edilso Maceió, um incansável animador cultural da ONG Cisane (Centro de Integração Social Amigos de Nova Era). Dizem lá que ele é capaz de “tirar a camisa do corpo” pela causa (não há testemunho disso, mas há de que já deu a própria geladeira para uma senhora que perdera a sua numa enchente). 

Para mim, a visita foi uma festa em que a criançada se divertiu com as várias atrações. Havia a “chuva de poesia”, um guarda-chuva do qual pendiam fios com versos escritos em pequenos cartões pendurados nas pontas. Ou “Poesia ao pé do ouvido”, um comprido canudo de papelão que se colocava no ouvido e escutava o texto de um autor lido por alguém do outro lado do tubo. Num varal estavam penduradas mensagens curtas de grandes escritores, a começar por Shakespeare.

Conduzindo e animando o espetáculo, um grupo de mediadores/as de leitura que impressiona pelo entusiasmo. Na hora do bate-papo, aquela criançada sentada no chão não se cansava de fazer perguntas. Queriam saber, por exemplo, onde se busca assunto para escrever crônica (quase disse que podia ser em eventos como aquele, mas não quis criar expectativas), como é ser jornalista-escritor. Ficaria lá o dia inteiro se não tivesse outros compromissos. 

Ainda bem que o Rio guarda surpresas. Quando se pensa que não há mais razão para a esperança, que está tudo perdido, eis um movimento como esse, praticamente desconhecido pela cidade do lado de cá. Há muito eu não vivia uma manhã tão prazerosa. Nova Era não é apenas o nome de um bairro — é também uma promessa.

Interceptei uma carta de minha neta de 8 anos para um conhecido acadêmico: “Vilaça, te adoro, mas não pra namorar kkkk. Alice”. Não sei o que ele fez para merecer a advertência.

O Globo, 16/12/2017