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Morte e vida da política

 

Só desviando o olhar do Congresso, em que corrupção e poder celebram uma união perversa e viscosa, é possível enxergar nossa sociedade.

A votação do processo de impeachment da presidente da Republica na Câmara dos Deputados foi ao mesmo tempo um momento de alta dramaticidade, que abriu uma nova etapa na vida do país, e uma demonstração explícita do estado de decomposição da política partidária. Essa decomposição ameaça o desejo de mudança que multidões exprimiram, nas ruas, pedindo honestidade e respeito ao interesse publico.

O ritual constitucional, validado pelo STF, foi cumprido à risca, assegurando legitimidade ao processo. Mas o espetáculo de personagens grotescos que, com discursos impostores, se sucederam para votar a favor ou contra a abertura do processo foi incapaz de despertar emoção cívica. Antes, justificada preocupação com o estado terminal da democracia representativa. O que não autoriza a presidente a falar a jornalistas estrangeiros de golpe parlamentar. Para negar o crime de responsabilidade a presidente comete, agora, o pecado da irresponsabilidade. 

“O Brasil é isso aí”, dizem os que se intitulam realistas. Pessoas bizarras que desfilam embrulhadas em bandeiras, invocando, em vão, o nome de Deus, pátria e membros da família, foram, sim, eleitas pela sociedade brasileira.

Contrariando as aparências, o Brasil não é “isso aí”. Se fosse, não haveria o estranhamento e a perplexidade da população que não se reconhece em seus representantes. Os deputados não refletem nossa sociedade senão como um espelho de circo que deforma as imagens. Não vivemos em uma sociedade inspirada pela divisa integralista Deus, Pátria e Família.

O país não é essa mistura de hospício com circo. Se a democracia representativa está em estado terminal, a sociedade não. Busque-se a explicação desse paradoxo no sistema político, no processo eleitoral, no peso do poder econômico e do marketing que comprometem a relação do eleitor com os candidatos, sobretudo em eleições proporcionais. 

O sistema político é ao mesmo tempo incontornável e insustentável. Apodrecido na lógica da compra e venda, dos mensalões, da chantagem, do leilão de cargos e ministérios, esse sistema tem pouca chance de autorregeneração. A economia em escombros pela incúria do governo não é a maior ameaça à estabilidade democrática. Pode ser salva pela competência e a verdade sem fraudes. Risco maior é o esfarelamento do sistema político.

Só desviando o olhar do Congresso Nacional, em que corrupção e poder celebram uma união perversa e viscosa, é possível enxergar a sociedade complexa em que vivemos.

A democracia contemporânea é muito mais do que a soma de suas instituições e procedimentos — eleições livres, alternância de poder, multipartidarismo, liberdade de expressão e organização. Esses, sendo essenciais, não a esgotam. Ela vem sendo construída em um processo constante de ampliação de direitos e liberdades que a própria sociedade, mais informada e afeita ao debate, impulsiona. A sociedade cria o espaço em que ela mesma vai se expandindo. É no cotidiano das pessoas que defendem seus direitos e exercem suas liberdades que a democracia se enraíza. 

Essa sociedade que olha com desprezo os políticos mantém o apreço pela democracia que constrói. Trabalhadores, mesmo os mais humildes, conhecem seus direitos e sabem como reivindicá-los. Os gananciosos planos de saúde temem a defesa do consumidor. Famílias, religiosas ou não, se dão novas configurações ao sabor da verdade amorosa. As mulheres recusam a violência. Aposentados e idosos se organizam pelo direito a bem viver vidas mais longas. Cientistas vão ao Supremo pelo direito de pesquisar e obtêm ganho de causa. Procuradores e juízes inauguram uma Justiça que promete passar o país a limpo. São exemplos de ações que transformam a realidade do país, que vertebram a democracia contemporânea.

É esta sociedade que reage com asco à provocação torpe do deputado Bolsonaro, que homenageou um torturador. Em boa hora, a OAB do Rio, partidos e milhares de cidadãos, nos quais me incluo, pedem a cassação de seu mandato em um movimento que se amplia. 

A cicatriz que desfigura a democracia é o abismo entre um tecido vivo, a sociedade, e uma estrutura morta, o Congresso Nacional. Ora, só o Congresso pode votar a reforma política. Vai matar a galinha dos ovos de ouro? 

A ciência política só encontra o que procura, o que não procura não vê ou desqualifica. A ampliação de direitos e liberdades passa despercebida quando toda a cena é ocupada pela política partidária. Mas é desse tecido vivo que vêm as energias e as pessoas capazes de revitalizar uma estrutura morta.

O Globo, 23/04/2016