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Missa de Réquiem

 

Não me alegra a ideia de perdedores na política, nem me rejubilo com a epidemia prisional que se abate no país. Seja no cumprimento da justiça ou como irresistível ânsia predatória, diante de uma Suprema Corte altamente politizada ou partidária. Tampouco festejo o impeachment considerado como antídoto de nossa imensa crise, segundo pregam partidos de exuberante narcisismo.

A demonização da política interrompe fluxos de diálogo e produz uma democracia de baixo impacto.  O combate à corrupção, contudo, deveria ser feito nos limites do estado de direito. Trata-se de razão necessária, mas insuficiente para mudar o país. 

A saída do senhor Temer, no entanto, é um imperativo moral, ação de legítima defesa. A acusação da Procuradoria Geral da República de crime de corrupção passiva sela o deplorável buraco negro em que se afoga o inquilino do Jaburu com seu “ministério de notáveis”. Sobram razões para imediato afastamento.  Ocasião para esclarecer a extensão de possíveis malfeitos. Seus aliados poderão avaliar, então, os dividendos políticos do irrestrito apoio que lhe deram, liderados pelo senhor Eduado Cunha, alter ego e iminência parda do senhor Temer.     
     
Ainda que fosse varão de pureza proverbial, como Lohengrin, as manobras na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e a compra acintosa de votos demonstram cabalmente a espessura do horizonte ético de certa vida política e de sua relativa precificação. A paz romana de que o senhor Maia é depositário não seria capaz de iluminar o fim do túnel. A unção das urnas jamais se mostrou, nesses últimos anos, tão dramática e urgente.    

Uma democracia de impacto minimamente razoável depende de uma instituição invisível e progressiva: a confiança. Como diz Pierre Rosanvallon, em “A Contrademocracia”, a confiança não apenas amplifica o valor da legitimidade, mediante um acréscimo de ordem moral, como também “pressupõe o caráter da continuidade no tempo dessa legitimidade ampliada". A confiança é fator de equilíbrio institucional, capaz de poupar todo “um conjunto de mecanismos de prova e verificação”.  

A confiança, bem entendido, não é milagre, mas fruto da mediação do diálogo dos agentes da República, sem excluir sua extrema capilaridade. Resulta de um concerto republicano, de um pacto negociado em torno de um núcleo duro capaz de amalgamar aspirações da retomada do crescimento e o combate à desigualdade.

Não poderemos ampliar a ação eficaz da confiança, como legitimação de nossa democracia, se não atacarmos as estruturas de nossa desigualdade, agora que voltamos ao mapa da fome e aos números estratosféricos de desempregados.  As reformas não dependem apenas da força dos tratores da base aliada na tramitação dos projetos de lei. Quando um governo não se envergonha de seus atos, não se defende das acusações delituosas e não dialoga com a sociedade é porque está morto. Não  merece uma pálida missa de réquiem.   

O Globo, 02/08/2017