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Meus encontros com Bandeira

 

Estava nos meus 15 anos. Parecia, porém, ainda mais novo, porque era franzino e frágil. Sabia de cor a metade dos versos de Bandeira, que tinha então 60 anos, mas parecia também mais jovem - um quarentão que os cuidados impostos pela tuberculose conservaram desde a adolescência.


 


Estávamos em fins de 1945, no Rio de Janeiro. Fomos, Antônio Carlos Vilaça, o fotógrafo Aldir Vieira e eu, entrevistar o poeta para um jornalzinho de estudantes. A visita fora marcada pelo telefone e a voz que me chegara pelo aparelho era amável e alegre. O poeta abriu a porta com um sorriso largo. E entramos em seu apartamento da Avenida Beira-Mar, cheio de livros, quadros, um bronze de Bandeira feito, se não me engano, pelo Dante Milano, e dois retratos que Portinari pintara.


 


Bandeira acolheu-nos de pijama e chinelos, magro, moreno e encurvado, e assim deixou-se fotografar. Levantara havia pouco da sesta e foi-nos fazer um cafezinho. Conversamos longamente e ele, no íntimo, a achar imensa graça naqueles três meninotes. Levou, contudo, a entrevista a sério. Declarou-nos as coisas de costume: que sua maior aspiração era a de viver em paz; que Mário de Andrade fora a calva mais inteligente da sua geração; que a poesia devia descer até o povo; que começara a escrever aos 12 anos (o que fazia a gente se sentir como colega); que Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Ribeiro do Couto, Raul Bopp, Augusto Frederico Schmidt, Pedro Dantas, Dante Milano, Jorge de Lima e Cecília Meireles eram os autores contemporâneos de sua predileção.


 


Disse-nos considerar o equatoriano Jorge Carrera Andrade superior a Pablo Neruda, cujo nome surgira na conversa por causa de duas bandeiras, a do Chile e a do Brasil, que o chileno havia desenhado numa das paredes do apartamento. Mais tarde, entristecido com Neruda, mandou cobrir de tinta o desenho.


 


Guardo desse dia o autógrafo de Desencanto, e, sempre que o leio, volta-me a voz pausada, quase rouca, de Bandeira, a dizer-nos com indisfarçável emoção: "Eu faço versos como quem morre..."


 


Voltei, algumas poucas vezes, a ver o poeta. Ele emprestou-me, certo dia, o seu exemplar com dedicatória de O empalhador de passarinhos, de Mário de Andrade, livro que lhe devolvi religiosamente, no prazo certo, para grande surpresa sua. E não me arrependo de ter sido um dos cento e poucos leitores que votaram para deputado federal - não me lembro bem em que ano - num certo Professor Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho.


 


O pequeno partido que o convencera, por coerência, a candidatar-se não podia imaginar, que, discretíssimo, o grande poeta - porque ele já era então o Grande Poeta - sequer revelaria aos seus alunos de literatura hispano-americana, na Faculdade de Letras, que era candidato. Lembro-me de um encontro logo após as eleições, com ele e Osório Borba, na Rua México, e a graça enorme com que o poeta voluntariamente derrotado contava como fizera a campanha eleitoral em silêncio, trancado no seu quarto.


 


O Bandeira, porém, que hoje freqüenta a minha memória é o daquela tarde dos meus 15 anos, na Avenida Beira-Mar, desengonçado e paciente, a resvalar de vez em quando para a melancolia.


 


Foi em 1954 que conversei com ele pela última vez. Levei-lhe um livro. Bandeira já se mudara para outro apartamento no mesmo edifício. E, se conservava o grande sorriso de nove anos antes, desta vez não me falou de poesia, mas da morte, "indesejada das gentes", que, contudo, esperara desde a mocidade e continuaria a esperar até 1968. Esta a impressão que sempre me deu: a de serenidade, coerência, ordem e limpeza, qualidades que nele se casavam com a bondade, a paciência e o enternecido bom humor.


 


Foi, talvez sem o desejar, o mestre de todos nós. E ninguém como ele, no Brasil do século 20, soube tão bem escrever poesia.


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 16/08/2006

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 16/08/2006