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A língua ameaçada

 

A língua portuguesa vem ultimamente merecendo destaque especial. E, agora, ganhou as manchetes graças à aprovação de projeto de lei, por uma das comissões da Câmara dos Deputados. Na versão original, o texto previa a aplicação até de penas pecuniárias a quem se valesse de palavras ou expressões estrangeiras, quando houvesse equivalente em nosso idioma. No frigir dos ovos, prevaleceu a tese de que outra lei fixaria punições às transgressões lingüísticas, com sanções de caráter administrativo.


É manifesto o descalabro com que se vem tratando a bela língua que herdamos dos portugueses. O abuso de palavras e expressões estrangeiras e a pobreza de muitos textos que a mídia diariamente nos põe à disposição contribuem para a indigência cultural do país.


Avulta em tal quadro negro uma nova língua que invade os nossos lares: a das letras das músicas que promanam da novidade do momento, o funk. Sem falar, na utilização excessiva do correio eletrônico, em mensagens a que faltam conteúdo e estilo.


A matéria é de patente interesse nacional, e sua discussão oportuna. Primeiramente, devemos considerar que a preocupação legítima em preservar a língua portuguesa parece ignorar a distinção entre a língua comum e a nomenclatura técnica. A chamada invasão do inglês em muitos idiomas vem assinalando a presença de palavras e expressões resultantes do extraordinário avanço da tecnologia, que alcança níveis paroxísticos no grande vizinho do Norte.


A língua falada pelo povo não vem incorporando palavras oriundas do inglês com a mesma freqüência da língua técnica. E é evidente que havemos de considerar o sadio princípio do bom senso, no sentido de não nos deixarmos conduzir por impulsos, por vezes, exagerados. Há que evitar esta espécie de dom-quixotismo lingüístico.


Assim, por exemplo, a ninguém ocorreria deixar de se valer de palavras italianas no domínio musical. Scherzo, adagio comparecem regularmente em muitos idiomas sem quaisquer pruridos nacionalistas. A culinária francesa por igual impõe sua presença, sem despertar desmaios culturais.


É necessário sublinhar que a resistência à inoculação de palavras estrangeiras no falar cotidiano de vários idiomas tem origem política. Emergiu de fricções históricas. Franceses e alemães opõem obstáculo às palavras da língua do país fronteiriço em virtude das guerras havidas entre eles. A muralha erguida a expressões gaulesas pelos portugueses se origina do ressentimento português pela invasão das tropas napoleônicas.


O Brasil, no particular, não tem qualquer motivo para seguir os passos dos nossos irmãos de idioma, como ensinou José de Alencar. A língua francesa só nos trouxe riqueza cultural, sutileza lingüística e o toque civilizado da nova matriz da latinidade nos tempos modernos.


É bem de ver que o recurso abusivo aos estrangeirismos revela pedantismo injustificável, como se observa nas denominações de casas comerciais. Por toda a parte, ouvem-se palavras e expressões de origem exógena, como by the way, enough, low profile, as soon as possible, delivery, boutade, savoir-faire etc.


Que dizer da enxurrada de semi-vocábulos, meias frases, deturpações indevidas a povoar o sem-sentido das letras com que jovens abandonados à maior indigência cultural nos propõem em decibéis exagerados?


Este é efetivamente um convite endereçado com certo êxito à juventude e também - é conveniente registrar - a numerosos adultos que assim se entregam à plena vacuidade mental. Realmente, a invasão da linguagem funk não atingiria os elevados níveis de popularidade, não fora a adesão das camadas dos que já deixaram para trás a plena energia da mocidade.


Por conseguinte, se a nossa juventude e mesmo os adultos se estão deixando levar pelo jargão funk, isso significa que a sociedade se encontra no plano inclinado da carência de valores. Desde a revolução de maio de 68, em Paris, uma pedagogia do consentimento absoluto se impôs, por maneira a não deixar espaço para a fixação de regras de conduta destinadas a assegurar o convívio social, com fulcro na tese basilar da democracia: a estipulação de normas para os cidadãos que se abrem aos limites traçados ao exercício das liberdades individuais, com respeito permanente às diferenças. Isto sem mencionar a causa mais profunda do impasse da pós-modernidade: o olvido do primado do espírito, este sempre em harmonia com a corporeidade, no sentido que lhe emprestou Gabriel Marcel. O buraco negro decorrente da falta de sentido para a existência completa o quadro da negatividade em que estamos inseridos.


Há que atentar para as lições da história que nos revelam as formas com que os seres humanos reagem ao predomínio excessivo de modismos. Assim, o linguajar funk irá gerar, adiante, a busca de afirmação contrária pela tendência a marcar as diferenças e, portanto, sua breve superação por outras modalidades de presença cultural.


As línguas são organismos vivos. Em tudo participam da evolução das sociedades. Alimentam-se das transgressões contínuas que resultam de sua utilização pelos que delas se servem, e pela contribuição que, vinda do exterior, freqüentemente até as enriquecem.


Há um século, o filólogo Michel Bréal asseverou que não há línguas puras. Elas se situam no turbilhão das pressões e das interações das culturas múltiplas que bem falam da riqueza das nações. A rigor, como bem sentenciou Fernão de Oliveira, as línguas são o que os seus falantes fazem dela.


É bem de ver que os vocábulos ingleses com que a tecnologia nos presenteia acabam invariavelmente por se ajustar à nossa gramática. Deletar se impôs à nossa língua, mas teve que pagar pedágio e se conjuga como qualquer verbo da primeira conjugação. Não há por que oferecer resistência desesperada ante o inevitável: a incorporação ao nosso idioma de expressões que ganharam foros de cidadania mundial, como é o caso de check-in e de tantas outras expressões.


Existe um mecanismo natural de acolhida e rejeição às palavras importadas. A aceitação pode ser imediata, mas a permanência do vocábulo inicialmente aceito se revela, em numerosos casos, extremamente fugaz.


O tratamento dispensado à nossa língua está a merecer reflexão detida e mesmo reformulação. Medidas práticas se impõem, como o aumento expressivo do peso atribuído à língua portuguesa nos currículos escolares e universitários, nos vestibulares e nos concursos em geral. O ensino da língua portuguesa não deve ser ministrado como um caminho pedregoso, com presença única e imperial da gramática. Antes, costura-se na literatura, pois é nos textos dos escritores que se moldam esteticamente os horizontes do idioma. Língua e literatura se dão as mãos neste processo que assegura a absorção da riqueza da língua e, por seu intermédio, dos costumes e valores em que se assenta a nossa cultura




 


Publicado em 17/04/2001 em O GLOBO