Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Legítima defesa

Legítima defesa

 

Caiu-me nas mãos um livro fascinante, “Factfulness”. O autor, Hans Rosling, é um médico sueco cofundador do Médicos Sem Fronteiras. Um retrato surpreendente do mundo em que vivemos, segundo Bill Gates, que vem usando sua fortuna no enfrentamento de problemas globais.

A tese é simples: estamos viciados no negativismo e temos dificuldade de acreditar em boas notícias. Achamos que o mundo vai de mal a pior, o que a olho nu parece verdade. Só que os números nos desmentem. Baseados em dados das Nações Unidas e do Banco Mundial, ficamos sabendo, por exemplo, que a pobreza extrema no mundo foi reduzida em 50% nos últimos 20 anos.

O livro nos conta que 93% das meninas estão matriculadas na escola fundamental e que a diferença de escolaridade entre rapazes e moças é de apenas um ano. Que as mulheres têm direito de voto em todos os países do mundo. Em escala global, a chamada condição feminina está mudando para muito melhor.

Há outras boas notícias na vida das mulheres que o livro não conta. São fatos ainda não percebidos em sua relevância. A história tem seus ritmos, corre em veios subterrâneos que subitamente vêm à tona. São revoluções invisíveis que, inesperadas, brotam como fonte.

Em tempos de comemorações do cinquentenário de Maio de 68, um êxtase na história, na feliz expressão de Edgar Morin, impressionam a extensão e a profundidade das transformações que vêm acontecendo na vida das mulheres.

Herdeiro de Maio de 68, o movimento de mulheres, que sacudiu o Ocidente nos anos 70, em meio século ampliou-se nas mulheres em movimento, insubmissas às desigualdades, à violência, aos espancamentos, ao assédio sexual e ao estupro. Seu impacto, hoje, é global.

A consciência despertada, por obra das próprias mulheres, da necessidade imperiosa de pôr fim à violência contra o sexo feminino onde quer que ela ocorra, seja na Real Academia Sueca ou na casa do representante do Brasil na Comissão de Direitos Humanos da OEA — uma vergonha para o nosso país —, é um fato histórico que marca a segunda década do século XXI e muda a sua face.

A contemporaneidade com os fatos históricos banaliza seu porte. No futuro saberemos que a condenação de um comportamento abjeto, até agora mundialmente aceito, terá sido uma cesura espetacular nas mentalidades, traçando a fronteira de um novo tempo. Mais uma boa notícia, um aspecto a mais em que o mundo terá melhorado.

Um movimento global contra o assédio e outras agressões sexuais, como o #Metoo, liderado por celebridades do mundo do espetáculo, usando as redes sociais, tornou pública uma denúncia coletiva que expôs a amplitude do problema. E o que já se descobriu é apenas a ponta de um iceberg de barbárie com que convivíamos como fato banal e, porque banal, impune. Desnaturalizou-se um dos aspectos mais aviltantes das relações humanas.

A denúncia pública, a superação da humilhação e da vergonha, a quebra do segredo, com espantoso efeito de contágio, vêm se mostrando mais eficazes do que tudo que tinha sido dito e feito até então contra a violência. Os agressores vêm sendo punidos com interrupções de carreiras, perdas materiais, condenações criminais e a marginalização social adequada a seu comportamento de marginais.

A denúncia tem sido uma forma de legítima defesa das mulheres agredidas. Anos atrás, no Brasil, um assassino confesso, que alegadamente matara por ciúmes, foi absolvido em nome da legítima defesa da honra. Tamanha injustiça não se repetiria hoje. Um assassino é um assassino, nada tem a ver com honra, como um agressor é um criminoso. As agressões sexuais nada têm a ver com o desejo, e sim com o exercício de um poder ancestral e discricionário que lhes teria sido conferido sabe Deus em que testamento de Adão.

O Brasil precisa de boas notícias. A esperança por aqui anda escassa e esquiva. A melhor notícia seria que, nas eleições de outubro, as mulheres brasileiras, maioria do eleitorado, maciçamente negassem seu voto a qualquer candidato a cargo eletivo que tivesse, por palavras ou atos, ofendido as mulheres. Assim estariam demonstrando que o respeito às mulheres é, para a democracia, uma questão tão importante quanto o combate à corrupção e à violência nas ruas.

Negar o voto a esses candidatos seria um gesto coletivo de legítima defesa contra quem direta ou indiretamente agride todas nós. Uma contribuição exemplar das mulheres brasileiras não só ao seu próprio futuro e ao de suas filhas, mas também ao movimento global de denúncia da violência que mundo afora fere as mulheres. E a #nós também.

O Globo, 19/05/2018