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Guimarães Passos: poeta e boêmio

 

Nas suas definições, Manuel Bandeira relaciona Guimarães Passos entre os ''são do Norte que vêm.'' No discurso em sua sucessão na cadeira 26 da Academia Brasileira de Letras, Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio, conta, com a graça costumeira dos seus textos, como se deu a vinda desse alagoano para o Rio: ''Por uma certa manhã dos fins do século passado - quase quatro lustros antes da terminação desse memorável século da ciência, da luz e do positivismo - um jovem poeta de Maceió resolveu acompanhar a bordo três amigos, que de viagem se faziam para a Corte, capital do império. O poeta era belo mancebo tropical. Alto, elegante, bíceps gigantes, largo busto, com o desabrocho da cintura estreita, longas mãos, cabeleira crespa formavam-lhe a beleza máscula; e quando ria, um riso jovial, entre a ironia satisfeita e a ingenuidade irônica, mostrava aos que o ouviam uma esplêndida dentadura de trinta e dois belos dentes. Era forte, era são, esse mancebo amável. Chamava-se Sebastião Cícero dos Guimarães Passos''.

O moço poeta entrou para o navio com as melhores disposições de voltar a terra uma hora após. Como sempre foi e ainda é costume, apenas nas viagens por mar, afogar as despedidas numa bebida, qualquer bebida em comum, o poeta e os três viajantes abancaram no convés em torno a uma pequena mesa. A conversa animou-se.

Quando ela ia mais animada, Sebastião dos Guimarães Passos ergueu-se, estreitou nos braços os três amigos e, com o seu passo solene - o passo heráldico, como vieram depois denominá-lo -, encaminhou-se para o portaló. Aí viram seus olhos mover-se à paisagem e no oceano. O navio singrava havia meia hora e dentro em pouco estaria em alto-mar. Sebastião sorriu e voltou aos amigos.

Esse poeta da boemia, da época áurea da boemia dos cafés, integrante do grupo onde se alinhavam Paula Ney, Bilac, Coelho Neto, Luís Murat, José do Patrocínio e Artur Azevedo, tem vida e morte divididas em quatro navios: esse que o levou de Maceió para o Rio; aquele que o deixou no exílio em Buenos Aires, para se livrar de Floriano Peixoto; o terceiro, que o conduziu à Ilha da Madeira em busca de curar a tuberculose, que o mataria em Paris, a 9 de setembro de 1909, aos 42 anos, pois nascido em 22 de março de 1867; o quarto, e último navio, que repatriou os seus restos mortais, em 1922, por iniciativa da Academia Brasileira de Letras.

Desses três embarques e desembarques, João do Rio dizia ser o mar, ao qual sempre o prendeu um secreto amor, que levava Guimarães Passos, sem nada planejar. Depois de fechar o ciclo mais alegre da sua existência, que foi a primeira temporada carioca, sucederam-se viagens ao Prata e a derradeira para a Europa.

''O oceano marcou, de fato, as três grandes partidas em que se dividiu essa vida: a partida para a alegria radiante, a partida para a tristeza solidária, a partida para a morte'', disse João do Rio, no discurso de posse.

Quando ele chegou à Corte, estava no fecundo calibre dos 19 anos para a boemia, para escrever em jornais, para fazer versos e para ser, por algum tempo, arquivista da Secretaria da Mordomia da Casa Imperial.

Fiel boêmio, convidado para ser um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, fez seu patrono outro boêmio, o poeta Laurindo Rabelo. E acabou por ter agora, no presente, um sucessor - que lástima! - nada boêmio. Muito pelo contrário. Faltam-me talentos para tanto.

A esse poeta parnasiano, mais ou menos pessimista, não faltou a veia humorística que está na colaboração para O Filhote, depois reunida no livro Pimentões, publicado em parceria com Olavo Bilac.

Todos os que estudamos a vida e a obra de Guimarães Passos temos necessidade de citar José Veríssimo, que encontrou nele, ao tratar de Versos de um simples, ''um poeta delicado, de emoção ligeira e superficial, risonho, de inspiração comum, mas de estro fácil, como o seu verso, natural e espontâneo, poeta despretensioso, poeta no sentido popular da palavra.''

Veja-se como Veríssimo está certo nessa quadrinha de Guimarães Passos:

''No momento em que te deixo

Deixa-me toda a alegria;

A porta dos olhos fecho

Porque não vejo o que via.''

No jornalismo brasileiro, colaborou em A Semana, Gazeta da Tarde e Gazeta de Notícias. Na Argentina, em La Nación e La Prensa. Também se assinava Filadelfo, Gill, Floreal, Puff e Fortúnio.

O poeta incursionou pelo tom pessimista, mas logo se embeiçou pelo tema do erotismo, coerente com o seu embeiçamento vário e constante pela mulheres, atraídas pelo belo homem que ele era.

Além do já referido Versos de um simples, que é de 1891, são obras desse filho de um tabelião alagoano: Hipnotismo, uma comédia em versos, Tratado de versificação e Dicionário de rimas, ambos em co-autoria com Bilac.

Meio contra a vontade, deixo de lado o anedotário do que Guimarães Passos aprontou, até mesmo na misteriosa luz que arredonda as noites inquietas de um exilado.

Mesmo sem chegar à idade de espreitar a morte, sem ser velho mas ganhando a velhice por conta de ser doente, o poeta e boêmio serviu-se dos restos de vida a fim de, em apenas oito dias, tentar viver em Paris. E morrer ali, conforme desejou, segundo relato dos contemporâneos.

João do Rio fala dessa Paris, como se ''enfarinhada de neve'', o que parece de liberdade poética, pois nevar ali em setembro, há de, antes, confirmar com a meteorologia.

Guimarães Passos foi o último poeta romântico, retrato fiel de uma época, até mesmo ao escrever O corno da cabra Amaltéia, um livro de anedotas, que lhe foram abundantes na sua existência de irregularidades.

João do Rio pinta dele este retrato:

''Morreu quase jovem de corpo e com a alma de uma época que não envelhece, mas se classifica. Era egoísta fantasista, era o egoísta bom.''

Estou de acordo.

Jornal do Brasil, 27/04/2005