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Às favas, a biografia

 

Se não me falha a memória do Google, só dois presidentes deixaram o cargo por vontade própria em pouco mais de meio século: Getulio Vargas, em 1954, por suicídio, e Jânio Quadros, em 1961, por renúncia. Dos quatro que não puderam terminar o mandato, um, João Goulart, foi deposto por golpe militar; Tancredo Neves, por ter morrido antes de tomar posse, e os outros dois, retirados por impeachment: Fernando Collor e Dilma Rousseff. Pelo que afirmou — “nada nos destruirá” — Temer está disposto a cantar “daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Ele conhece a Câmara que tem e confia nela. 

Mas por que tanto apego e tanta insistência em ficar, se moralmente o seu governo acabou? Será porque, como se diz, o poder é afrodisíaco? Não haverá outra motivação que não passe, digamos, pela libido? Também se diz que o poder corrompe, mas falar em corrupção soa como gafe no momento em que, pela primeira vez na História do país, um presidente da República é denunciado por tê-la praticado — e como! Corrupto, não como xingamento irresponsável de um opositor, mas como acusação oficial de outro poder da República, a Procuradoria-Geral. E tendo ainda que pagar uma indenização de R$ 10 milhões. 

O mistério continua. Acusado pelo Ministério Público, investigado pela Polícia Federal, rejeitado pela opinião pública, perseguido por gritos de “Fora Temer” até na Noruega, qual é a graça de chefiar uma nação sem poder sair à rua, ir ao teatro ou a um jogo de futebol para não ser vaiado, pois de cem pessoas, só sete (os 7% da pesquisa Datafolha) apoiam seu governo? Nem Dilma (10%) foi alvo de tanta recusa. A comparação mais humilhante, porém, é com Itamar Franco, um vice que também chegou à Presidência depois de um impeachment, mas que saiu com 40% de aprovação.

Não se tem certeza do que vai acontecer. Há possibilidade de recurso, manobras, filigranas jurídicas em favor do acusado. Mas uma coisa pelo menos é certa. O destino ofereceu a Temer a oportunidade de entrar para a História com um gesto de grandeza: retirar-se antes de ser escorraçado. Ao recusar essa chance, porém, ele está mandando às favas sua biografia política. Será lembrado não por algumas boas intenções reformistas, mas pelos malfeitos, cujo símbolo é aquela imagem inesquecível: um ex-assessor, homem de sua confiança, correndo e carregando numa mala R$ 500 mil que, segundo o procurador Rodrigo Janot, seriam de propina do corruptor Joesley Batista para o próprio Temer. 

É outro episódio inédito. Acho que ninguém em tempo algum presenciou uma cena como essa na nossa História. O que leva um ambicioso homem público a jogar no lixo desse jeito sua carreira? Chamem um psicanalista com urgência.

O Globo, 28/06/2017