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Exemplar carnação social

 

O período que vai do final do ano ao início do outro acende nos pais de Marcantonio a chama mais viva, a saudade se faz maior, o orgulho dele se excita. Afinal de contas, a razão está com Adélia Prado ao dizer "o que a memória amou ficou eterno".

Marcantonio vive.

A recordação de Marcantonio sempre está para os da família e para os amigos quente e pronta.

Ele foi muito ousado porém maior foi a sua lucidez. Como a morte não envelhece os exemplos da sua ousadia e lucidez prosseguem.

Faz poucos dias, Beatriz Milhazes, a pintora brasileira de maior sucesso, em cenas no Exterior, disse em alto e bom som o quanto a ele devia para fazer maior a sua obra. Jornal carioca narrou com detalhes a sua declaração.

No começo de dezembro, o irmão Rodrigo Otaviano, telefona emocionado de Miami. Visitara a Art Basel Miami e se espantara ao ouvir falar dele, quase treze anos após a sua partida. Críticos de arte, dirigentes da grande Feira, galeristas, artistas pareciam afinados num coro de afetos por Marcantonio. Afetos no coração de criadores e na razão do empreendedorismo de que se necessita para também dar substância à arte.

D'Annunzio dizia que se deve amar o sonho mesmo que ele atormente. Marcantonio atormentava-se com o tempo. Parecia adivinhar a incompletude final dos seus sonhos. Se tanto conseguiu, imaginemos o que lhe restaria se o calendário de vida não lhe fosse tão breve. Rodou o mundo como cavalete humano da arte brasileira. Rodou o mundo mostrando o que entendia pre-valecente em nossa terra quanto à arte contemporânea.

Valeu a pena.

Ao selecionar o seu "team" de pintores, gravadores, escultores de arte contemporânea, muitas vezes me disse: "Vejo nesses artistas, meu pai, as curvas do barroco dos altares do Recife, as frases sonoras de Gilberto Freyre, os pulos frenéticos do Galo da Madrugada; são brasileiros, são os meus prediletos". Dizia sempre estar atento à plurietnia e ao pluriculturalismo que entendia como cânones brasileiros, a orgulharem os concidadãos.

Marcantonio recebeu dos governos Amazonino Mendes e Eduardo Braga, em Manaus, a consagração que há de ter desejado da parte dos moços.

Lá não uma só exemplar escola de ensino médio de tempo integral, mas logo duas esplêndidas escolas têm o seu nome e encabeçam exames nacionais de avaliação de desempenho em pesquisas do MEC. Os dois governadores, anote-se não conheceram pessoalmente a Marcantonio. Estivemos, Maria do Carmo e eu, repaginando o coração para as emoções imperscrutáveis, recentemente, em visita às escolas impecáveis. Os adolescentes e os professores nos submeteram a um carinhoso questionário pelo tanto que queriam conhecer da vida e da 1 obra do patrono. Não lhes bastava o conhecimento já obtido no acervo das bibliotecas de que dispunham. Queriam mais e mais devedores ficamos nós aos governantes, professores e estudantes amazonenses que descobriram no brasileiro do Nordeste uma transterritorial carnação social.

De fato, o soluço eterno fende o peito. Roberto da Matta me ensinou que há um sentido de humildade e de reconhecimento da perda, que se revela no choro, na saudade e no conforto da oração. Estamos a cuidar dessa percepção sábia e sadia.

É o que nos resta.

Mas não tem nada, não. Rilke disse que "Quando cremos em plena vida estar / Ela ousa chorar / em nós / de repente".

Jornal do Commercio (RJ), 13/12/2012