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De conversa em conversa

 

Com o segundo turno das eleições municipais, vai se encerrando o mandato de Eduardo Paes, e o Rio se prepara para ter novo prefeito. Vamos trocando de mãos. Prossegue a mudança do elenco que costumávamos ter nos últimos anos. Dilma e seu Ministério foram substituídos por Temer e seu gabinete. Em vez de Ricardo Levandowski na presidência do STF, agora temos a ministra Cármen Lúcia. Na presidência da Câmara, Eduardo Cunha e Waldir Maranhão deram lugar a Rodrigo Maia — empenhado em marcar um estilo diferente, com o qual aguarda até ter um quorum significativo para votar decisões importantes (como fez na cassação de Cunha) ou ensina a seus pares que o calendário e o relógio não esperam nem recuam (jogando no colo da oposição a responsabilidade pela retirada de pauta do projeto de repatriação de capitais).

Com novos atores em cena, mais uma vez é hora de lembrar que convém baixar o tom belicoso e tentarmos nos entender. De conversa em conversa. Num esforço coletivo no sentido de não contribuir para o empobrecimento do debate nacional, bem que se podia abandonar a tática sistemática de não ler a proposta do outro, inventar o que se quer a seu respeito, e transformar essa falsidade numa palavra de ordem a ser carimbada e repetida a torto e a direito. Como se andou (e anda) fazendo a proposito da PEC sobre o limite de gastos do governo, a MP da reforma da educação, as ideias sobre a flexibilização da legislação trabalhista, as sugestões para a reforma da Previdência. E até mesmo nas reações ao STF, em franco desacordo com a máxima antes arraigada que preconizava que decisão do Supremo não se discute, cumpre-se. Pois agora, xinga-se — como se viu em certos setores, depois que veio a confirmação da prisão após condenação em segunda instância.

Numa época em que torrentes de informação se despejam sobre nós a todo instante, nem sempre é fácil buscar o equilíbrio de um pensamento crítico. Por isso mesmo, torna-se ainda mais importante tentar. O filósofo e pedagogo americano John Dewey, estudioso do processo que leva à formação desse tipo de pensamento, resumiu o que é essencial para que se possa pensar bem, ao aconselhar que se alimente um estado de dúvida e se procure desenvolver uma atitude de investigação contínua e sistemática. 

Ou seja, desconfiemos de nossas certezas automáticas e excessivas que resistam ao confronto com visões alheias. Podem estar escondendo uma recusa em pensar criticamente. Isso não é crime, pecado, nem sacrilégio. Apenas insistência no autoengano, uma falsa esperteza que faz parte da natureza humana e já foi exaustivamente estudada, dos mais diversos ângulos. Mas tem consequências que podem ser danosas. Como as que sofreu Galileu Galilei, cientista que Brecht ergueu à categoria de ícone do pensar por conta própria, perseguido pela Inquisição, defensor da verdade frente à ignorância, questionador do antropocentrismo, responsável pelo que talvez seja a revolução científica mais significativa da história da humanidade. No livro que alimentou seu processo por heresia, um dos personagens de Galileu afirma:

“A longo prazo, minhas observações me convenceram de que alguns homens, raciocinando de modo ridículo, primeiro estabelecem em suas mentes a conclusão que, seja por ser sua mesmo ou por ter sido recebida de alguém em quem confiam plenamente, os impressiona de modo tão profundo que acham impossível que jamais saia de suas cabeças. Aceitam e aplaudem imediatamente os argumentos que apoiam essa ideia fixa a que chegaram ou que ouviram dos outros, por mais simplória ou estúpida que seja. Por outro lado, por mais engenhoso e conclusivo que seja, o argumento que se apresente contra ela será recebido com desprezo ou raiva inflamada — se não os deixar doentes. Fora de si com a paixão, alguns deles nem mesmo hesitariam em fazer o possível para suprimir e silenciar seus adversários.”

Isso foi escrito por Galileu há cinco séculos. Faz lembrar o recente comentário do jornalista J. R. Guzzo, segundo o qual Lula vem com a moral antes de contar a fábula. Mas é apenas coincidência na observação de um tipo de raciocínio, que se recusa a deixar espaço para o entendimento amplo da situação e para o desenvolvimento de uma análise matizada, que permitam críticas em relação ao próprio pensamento anterior.

No século XX, uma observação irônica do psicólogo Carl Gustav Jung vai além e nos belisca: “Pensar é difícil, e é por isso que a maioria das pessoas se limita a julgar.”

Se quisermos ajudar o Brasil a ser mais democrático e a diminuir nossas desigualdades, cada um de nós precisa conversar mais, ouvir mais, ler mais, abandonar a preguiça de pensar, acolher em si diferentes pontos de vista. Isto é, se acharmos que podemos deixar o palanque para a rua e ir além do discurso rasteiro e do deboche, em discussões primárias sobre a camisa polo do Doria ou a renda do vestido de Marcela Temer ou em chamar de ladrão quem se veste de vermelho. Nosso futuro e nossa gente merecem mais. 

O Globo, 15/10/2016