Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Dante 750

Dante 750

 

A obra de Dante permanece viva, com uma notável atualidade.  O poeta florentino tornou-se, ao mesmo tempo, autor e personagem de uma obra que navega no imaginário de línguas e povos, como se fosse um fantasma vivo, no palácio da luminosa metáfora que é a Divina Comédia. Seus cantos foram escritos no exílio, subindo e descendo escadas que não eram as de sua própria casa e comendo o pão salgado longe de sua amada Florença. Trata-se de uma grande poesia, como sabemos todos, não apenas teológica ou filosófica, mas igualmente política, vivida com ardor e esperança, ódio ostensivo e um tênue desejo de reconciliação. Se você desceu até o último canto do Inferno, continue a leitura pelas escarpas do Purgatório e mergulhe, de óculos escuros, na luz imaterial do Paraíso, que continua até hoje como um programa de vanguarda poética.

Dante tomou para si a tarefa de julgar amigos e inimigos, legislando sobre o lugar no outro mundo e o tipo de pena ou fruição. Ele próprio temia ficar provisoriamente entre os soberbos do Purgatório.   

Seria aconselhável a leitura dos 34 primeiros cantos no Inferno a certos políticos irresponsáveis de nosso tempo, a certos magistrados, que perderam a lucidez, movidos por interesses partidários, aos fascistas aguerridos, que assumem a linguagem da violência física e verbal, aos irresponsáveis que antepõem seus projetos pessoais em detrimento do país, e a todos os que promovem o ódio, encontrem-se onde estiverem. 

Os que não querem opinar, os que não tomam partido, terão lugar certo na antessala do Inferno, correndo nus pela eternidade, atrás de um símbolo, que nunca poderão alcançar.  Tenham cuidado certos líderes religiosos iracundos, sem falar da lavagem de dinheiro, porque viverão submersos no pântano da própria raiva. Aos corruptos, uma boa natação na piscina de pez ardente. Aos hipócritas, penso em certas figuras da Câmara, com passos lentos, sob pesadas capas de chumbo. Aos ladrões, disfrutem da rude metamorfose, amarrados por serpentes, e por elas picados, reduzindo-se a cinzas e retomando a forma originária.  Saibam que os traidores ocupam a zona mais baixa do Inferno, dentre eles Cássio e Brutus, traidores da república, macerados eternamente na boca do príncipe dos demônios. 

Na quadra presente seria difícil julgar, dada a sobreposição de crimes praticados. Dante reservou também um confortável apartamento para os semeadores de discórdia,  mutilados, com as vísceras à mostra, eles que dividiram, causaram escândalo, trazem no corpo a marca de seu crime.   

Mas a Divina Comédia não é somente uma obra marcada por um severo sentido de justiça. É uma viagem para Beatriz, na dimensão da esperança.  E também sinal de dias melhores, sem patéticos salvadores, porque não há nada que se deva salvar na democracia, pois nada está perdido, mas sim aprofundar, com serenidade, a confiança no futuro.

O Globo, 02/09/2015