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'Coronel, coronéis' após 40 anos

 

A complexidade do Brasil não lhe nega a unidade em que língua e religião reforçam o tecido do país. Assim, a palavra Nordeste vinca seu perfil numa identidade forte e, por vezes, fagueira, a nos mostrar um Brasil plantado no solo, onde é marcante a presença de um humanismo próprio, como a dizer que os avanços da tecnologia não nasceram para desmentir o que há de humano no homem. A poeira das caatingas do solo nordestino nos fala ao imaginário e à consciência de que a realidade jamais se cristaliza, mas desliza nas conversas ao pé do ouvido. É certo que o folclore nos dá conta das tradições que por lá campeiam, mas tudo feito de leveza e de comunicação. O ruído das vozes cantantes, as cantigas improvisadas, as danças regionais, as manifestações religiosas estão a revelar uma inegável especificidade.


Pois é de Nordeste que falamos quando o olhar se volve para o coronelismo particular da região. Aí Marcos Vinicios Vilaça e Roberto Cavalcanti de Albuquerque se esmeraram em Coronel, coronéis: apogeu e declínio do coronelismo no Nordeste, uma obra de 1965 que já nasceu clássica pela sua permanente vigência, por uma atualidade advinda do cuidado em perscrutar a alma humana e o fenômeno do coronelismo, definindo o coronel como ''instrumento dialético de seu próprio ocaso''.


Cabe referir alguns personagens pinçados na obra dos dois ilustres pernambucanos, como Chico Romão, longe do retrato de um vaqueiro, antes um político de urbs, e Chico Heráclio, síntese dos mundos rural e citadino, é havido como homem de palavra solta ao vento, segundo Veremundo Soares, este mais lido e viajado. Católico, distancia-se da confissão e se apega à sua padroeira, Nossa Senhora da Conceição. José Abílio é um ser cordial, sem armas para se impor, numa adaptação aos novos tempos.


Mas o que instiga no livro é seu estilo literário, em que a narrativa é delineada sem artificialismos. É a vida que emerge com sua força natural, tendo como epicentro a figura do coronel que, antes, tudo dominava com sua autoridade indiscutível, mas que, aos poucos, vai cedendo ao imperativo da mudança social, política e econômica. Assim se esvai a centralização política dos coronéis que prevê nova era de feição democrática a ser construída sobre as ruínas de um tempo cediço, mas que teve seu apogeu e dias de glória nos fatos da história do Nordeste.


Ao narrá-la, os autores souberam manter o ritmo da história, respeitando-lhe a temporalidade e deixando espaço para a emergência de um novo mundo empurrado pelo progresso. A obra acerta contas com a história e aponta para um futuro que oferece uma falsa solidez em sua construção coronelesca deste Nordeste de Vilaça e de Roberto.


Até 1945, ainda vigorava a presença incontestável do coronel. Aos poucos, a burocracia do Estado, com seus tentáculos, redireciona a sociedade e novos líderes apontam no horizonte. De meros subalternos da chefia personalista passam a disputar o poder. O caminhão que percorre estradas que unem o hinterland aos centros urbanos de maior expressão, as assembléias legislativas, os juizados, a mídia, as empresas, tudo contribui para reduzir sem piedade o mando primitivo. Alguns caciques buscam adaptar-se à nova realidade. Outros preferem ocultar-se nas gerações de seus descendentes, mais afeitos a mudanças.


O poder, que explica e justifica o comando dos coronéis, atrai também outros caciques em potencial e assim há que se adaptar ou deixar um vácuo político logo preenchido. Barbosa Lima Sobrinho cuida que há uma certa forma paralela de messianismo na obra celebrada. Antônio Olinto compara o livro da dupla pernambucana a Os sertões e a Casa grande & senzala. Gilberto Freyre afirma que a contribuição de Vilaça e Roberto é, ''sob certos aspectos, brilhante''.


O leitor é representando pelos autores abrindo espaço para julgar e denunciar. Vilaça e seu colega desenham a decadência do coronelismo, avançam para a modernidade e timbram em nos ofertar os novos caminhos do Nordeste que eles mesmos souberam trilhar com talento e arte.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 28/12/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 28/12/2005