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Contra o baixo astral

 

Os palcos do Rio estão oferecendo muita coisa boa para se ver em matéria de peças e shows. O problema é que chegar a eles é uma perigosa aventura diante dessa crescente onda de assaltos. A pé, não se recomenda ir nem até a esquina. E, mesmo de táxi, temos que esperá-lo do lado de dentro, atrás da grade do prédio. Por isso eu, como muita gente, tenho evitado sair à noite e, assim, não sou uma boa referência crítica.

Mas esta semana, aproveitando a estada dos amigos Lucia-Luis Fernando Verissimo, que têm o gosto apurado pelo que viram ao longo da vida nos melhores teatros de Paris, Londres e NY, tomamos coragem, minha mulher e eu, e curtimos juntos alguns excelentes espetáculos. O primeiro foi o despretensioso "Plantão de notícias", uma comédia em que Mauricio Menezes e Lula Vieira provocam incontidas gargalhadas ao contar casos de erros, gafes e distrações cometidos pelos meios de comunicação. Recomendado contra os males do fígado.

Depois vimos "O escândalo Philippe Dussaert" do francês Jacques Mougenot, com o genial Marcos Caruso. Que ator! Que peça! Durante 80 minutos, ele, sozinho, como se fosse um conferencista, faz rir e pensar, ao mostrar o embuste e a mentira que envolvem o mercado de arte contemporânea. É uma peça originalíssima com um final surpreendente.

Na quarta, foi a vez do 28° Prêmio da Música Brasileira, que homenageou Ney Matogrosso e cuja realização foi um feito de seu idealizador, José Maurício Machline, que este ano não conseguiu patrocínio. Só foi possível graças à solidariedade e ao apoio tios próprios artistas. A festa no Municipal contou com um desfile de cantores interpretando sucessos do homenageado, mas o grande momento, a apoteose, foi Ney cantando clássicos como a comovente “Rosa de Hiroshima”. Não sei se existe no mundo alguém que, aos 76 anos (faz no dia 1º) num corpo de 30, tenha um timbre de voz e uma expressão corporal como Ney Matogrosso. Acho que não.

Encerramos o nosso agradável périplo assistindo ao musical sobre Dalva e Herivelto, cujo roteiro é do Artur Xexéo, na sua terceira ou quarta bem-sucedida incursão no gênero, e essa é a má noticia: significa que o jornalismo periga perder para o showbiz um de seus mais criativos talentos. O final é empolgante, com a plateia toda cantando "Bandeira branca" uma espécie de hino da reconciliação, de que precisamos tanto.

Eu disse que terminava aqui? Mentira: amanhã vamos ver "Selfie" que vem sendo muito elogiada. Essa foi só uma amostra de nossa oferta cultural. Para ver o que ainda vale a pena, teríamos que segurar os Verissimo aqui por mais uns 20 dias.

O melhor antídoto contra o baixo astral que assola a cidade e o país ainda é a arte, que os governos desprezam tanto. 

O Globo, 22/07/2017