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Confusões cronológicas

 

Rigorosamente, quando o amável leitor e a encantadora leitora lerem no jornal de hoje que algum fato se dará amanhã, estarão lendo uma mentira, não importa a veracidade da notícia. A mentira se encontra na feitura da matéria, porque o redator a escreve, por exemplo, na quinta, para que ela seja publicada na sexta. Portanto, para ele é quinta, mas, como o jornal sai na sexta, escreve “amanhã”, referindo-se ao sábado. Quando eu escrevo “hoje” aqui, claro que não é o hoje do dia em que escrevi, mas o hoje de hoje, domingo. Parece e é simples, mas, pelo menos no tempo em que não havia escolas de comunicação e a profissão se aprendia no tapa, sob a orientação nem sempre carinhosa de veteranos, muitos focas — ou seja, calouros — caíam nessa. Eu mesmo, vergonha mate-me, caí e acho que o trauma da gozação subsequente nunca foi inteiramente superado. Minha matéria tinha um “realizou-se hoje”, ou equivalente, mas, para os leitores, seria “realizou-se ontem”.

Outro dia, esteve um técnico aqui em casa, para resolver uns probleminhas de televisão. Muito simpático, fez questão de cumprimentar-me com efusão. Pessoalmente, não era dado à leitura, mas na família dele havia vários fãs meus, tinha realmente grande prazer em me conhecer, era uma honra. E aí, com boa vontade e competência, ajeitou todos os pepinos encontrados. Muito grato, resolvi pegar dois livros meus que estavam por aqui à toa, para dar de presente a ele. Ele ficou comovido, pediu dedicatórias para o pessoal da família. Enquanto eu fazia as dedicatórias, me perguntou, com admiração:

— O senhor leva mais de um dia para fazer um livro destes, não é, não?

— Levo, levo — disse eu.

Portanto, concluo que haverá quem pense que, minutos antes do fechamento da edição, me dirijo a este computador, encaro o teclado como um pianista virtuose iniciando um concerto e, em poucos instantes, dedilho um texto prontinho para ser publicado. Ai de mim, já se disse mais de uma vez que escritor escreve com dificuldade, quem escreve com facilidade é orador. Além disso, o fato de eu ser acadêmico me rende uma fiscalização zelosa e irritadiça. Um dia, em 2012, eu me distraí e escrevi “asterisco” em vez de “apóstrofo” e até hoje padeço por isso. Mas, mesmo que não fosse assim e eu fosse o Flash, a triste situação em que me meteram os fados cruéis não seria resolvida.

O primeiro clichê do jornal de domingo, como sabem os mais impacientes, começa a chegar às bancas no fim da tarde do sábado. Ou seja, praticamente tudo já estará pronto, quando acabar o jogo de ontem. Vejam que frase esquisita acabo de escrever: quando acabar o jogo de ontem, estranhíssima contradição em termos, pois é óbvio que o jogo de ontem só pode ter acabado, tudo de ontem já acabou. Hoje (hoje hoje) já sabemos o resultado do jogo com o Chile, mas hoje (o dia em que escrevo) isto não é possível. Não é possível nem ter certeza absoluta de que o jogo de ontem realmente aconteceu. Situação diabólica, isto não se faz.

Neste caso, por que não escrever sobre outro assunto que não a Copa? Também não é possível. Ninguém, a começar por mim, está interessado em outra coisa. Além disso, seria correr da raia sem explicação, já que venho escrevendo sobre a Copa nas últimas semanas e, apesar de não entender nada de futebol, sempre tive a fantasia de ser comentarista esportivo. Mas me sobra o quê? Apesar de entender ainda menos de odontologia ou de canibalismo humano, podia talvez discorrer sobre a mordidona aplicada pelo jogador Luis Suárez num italiano. Baixei aquela tomada do “lance” em câmera lenta e a dentada em zoom, já a vi diversas vezes e, de fato, foi uma dentada crocodilesca, capaz de abocanhar um megahambúrguer num só golpe. Os dentes dele, enormes, parecem os de um castor e creio que, se ele quisesse comer a bola literalmente, seria proeza fácil. Não sei se vocês leram nos jornais, mas um norueguês apostou num bolo que ia haver a mordida e ganhou uma graninha. O Suárez abre toda uma linha nova de apostas, que deverá incluir não somente mordidas, mas vários outros aspectos do futebol, tais como o número médio de cusparadas dadas pelos jogadores de um determinado time.

Mas continuaria a transparecer que eu, por alguma razão, estava evitando propositadamente falar no jogo contra o Chile. No desespero, é sempre tentadora a ideia de antecipar temerariamente o resultado e depois rezar para que tudo dê certo. Grande tentação. O Chile sempre foi freguês e não vejo nada de excepcional no time deles. E todo mundo sabe que o futebol enfrenta dificuldades no Chile, porque é só olhar no mapa para constatar que o país é fininho demais para ter campos na direção leste-oeste, só pode na norte-sul, o que constitui grave limitação para o preparo dos atletas. Enfim, bem que eu podia escrever hoje (o dia em que escrevo) como se o jogo de ontem (o ontem deste domingo) já tivesse sido ganho pelo Brasil. Mas os riscos são em demasia e, além de tudo, sei que qualquer coisa que eu diga impensadamente poderá render-me uma fama de pé-frio indelével.

E, assim abatido pelas circunstâncias ingratas, resolvi ligar para velhos amigos, como Zecamunista, em quem, apesar de certas diferenças ideológicas, sempre posso confiar. Mas ele me interrompeu assim que mencionei o Chile.

— Eu sei — disse ele. — Esse jogo deve estar no papo, porque o Chile é freguês, mas aconselho você a tomar as mesmas precauções que eu. Você aposta no Chile, esquece, e continua torcendo pelo Brasil normalmente. Se o Brasil ganhar, o dinheiro não foi em vão, foi sua contribuição para a vitória nacional. Se perder, é como um seguro, pelo menos você embolsa algum e não chora de barriga vazia, é tudo dialético.

O Globo, 29/06/2014