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Bem longe dos dois lados

 

Para se ter ideia do clima de Fla x Flu que estamos vivendo, aí vai uma pequena amostra de como a paixão política distorce a visão das pessoas. Esta semana, recebi ao mesmo tempo, por coincidência, duas cartas pouco amigáveis, de um leitor e uma leitora. Ele, me acusando de apoiar “essa corja toda do PT, mentirosos e ladrões”. Ela, me xingando pelo motivo oposto: “Você e seu veículo são desavergonhados golpistas”. Os envelopes trouxeram também recortes de matérias para reforçar os argumentos. Um juntou o xerox da seguinte manchete do exemplar de um jornal que não existe mais, a Última Hora, de 1964: “Sublevação em Minas para depor Jango”. Outro trazia a foto de um famoso ex-presidente do FED americano com declarações desairosas ao nosso país e o comentário do missivista: “Veja só, até o Paul Volcker acha que o Brasil tá uma bagunça, kkk”.

Os dois leitores concordavam em um ponto: o inimigo comum é a “mídia”. Nenhuma palavra contra a corrupção, mas tanto para uma parte quanto para a outra, nós, jornalistas, é que somos culpados das consequências, isto é, dos escândalos. Um artigo anexado chega a dizer que o papel dos militares nos golpes do século XX “foi substituído pela cumplicidade da imprensa”. Ou seja: pecamos por excesso e por omissão. O mais curioso é que tudo o que vem sendo dito contra a imprensa é o mesmo que se dizia nos anos de chumbo. E foi por isso, para corrigir nossos desvios, que se implantou a censura, uma proverbial medida que muitos gostariam de adotar também agora, mas não têm coragem de confessar.

Os autores das mensagens terminam reclamando do país. Para ela, as instituições democráticas não estão funcionando, e é esse “justamente o problema”. Para ele, que se diz velho, o arrependimento é não ter deixado o Brasil, um “país de merda”, quando ainda era jovem. Sabem o que eu fiz? Coloquei o conteúdo de um envelope no outro e vice-versa, devolvendo-os com as cartas trocadas e informando aos remetentes o que eu fizera. E fiquei me divertindo imaginando a cara dos dois antagônicos — de mim e deles mesmos. Num momento como este de tanta polarização e maniqueísmo, em que não se sabe quem odeia mais, o bom senso recomenda tentar manter equidistância: o melhor ainda é desagradar aos dois lados.

 

Justiça seja feita. A rápida decisão do Ministério da Cultura de quitar velhas dívidas, como fez com a artista plástica Thereza Miranda, que finalmente recebeu o Prêmio Marcantonio Vilaça, concedido pela Funarte há oito meses, dá a impressão de que as providências demoraram tanto porque, na verdade, faltava mais vontade do que dinheiro.

O Globo, 25/06/2016