Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > A arte do medo

A arte do medo

 

Ao contrário de muitos, nunca havia sido assaltado. Volta e meia presenciava uma briga, algumas cadeiradas dentro daqueles botequins sórdidos. Mas o seu grande pavor era a navalha –o aço brilhando no escuro, repentino e fatal, a caminho de uma carótida que podia ser a sua.

Era tão intenso esse pavor que ele nunca se barbeava em salões: não suportava o fio da navalha de encontro à pele. Como era prevenido, andava sempre com o lenço de seda no bolso superior do paletó. Aparentemente, o lenço servia de enfeite: Geraldo zelava sempre no vestuário, nunca deixava de combinar a cor da gravata e das meias com a do lenço de seda.

Mas a finalidade era outra. Sabia que a melhor defesa para a navalhada era a seda: ao contato com o tecido, a navalha perdia instantaneamente o fio. Os malandros do morro usavam o lenço de seda em torno do pescoço, onde o risco era maior: o lenço ficava onde devia ficar.

Como maestro, ele não podia usar um lenço de seda no pescoço. Usava no bolso e assim sentia-se protegido. Sim, bastante protegido: além do revólver, que podia falhar, ou cair ao chão na pressa defensiva, havia o lenço, pronto para um corpo a corpo com o assassino que nunca chegava.

Certa noite, acompanhando-o naquele trajeto, eu ri de tantos cuidados, de tantos riscos imaginários. Comparei-o a um personagem –Tartarin de Tarascon– que dispunha de todo um arsenal para atravessar o jardim de sua residência.

Geraldo respondia:

– Você nunca viu o que eu já vi!

Contava casos, agressões e mortes, quem levava a pior geralmente era um passante ocasional. Ele tinha sido campeão de tiro num torneio amador –e, na realidade, em tudo o que dependesse de suas mãos,mãos de pianista, seria bem-sucedido. Recusara uma turnê na Europa. Preferia a emoção de receber uma navalha no pescoço

Folha de São Paulo (RJ), 13/10/2015