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Adereços biônicos

 

Dizem os cientistas que, num futuro próximo, teremos à nossa disposição implantes de memória e inteligência. Claro que tais novidades vão demorar a chegar aqui, nos subúrbios do Ocidente, ainda mais nas circunstâncias em que nos encontramos hoje, matando cachorro a psiu. Mas, como sofro de otimismo patológico, antecipo publicamente as minhas preferências. 

Em matéria de memória, faço questão de implantar obras completas de Machado de Assis, William Shakespeare e Johann Sebastian Bach. O resto podem distribuir entre as populações carentes de alegria intelectual, com as quais faço questão de partilhar também os meus heróis aí de cima, senão não teria com quem conversar e ficaria assobiando e falando sozinho.

Já em matéria de inteligência, gostaria de usufruir dos neurônios do Padre Antonio Vieira, o que me permitiria fazer declarações brilhantes e barrocas para defender iniciativas tão improváveis quanto a do Sermão da Quarta-feira de Cinzas, em que Vieira convence a população da Bahia a parar de pular o carnaval na quarta-feira, coisa que os pregadores de hoje nem se atrevem a tentar. 

Creio que teremos também a possibilidade de melhorar a aparência e adquirir talentos. Imagino que haverá supermercados em que vamos poder escolher muitos outros implantes para comprar, conforme o gosto de cada um. Certamente haverá consumidores em busca da voz do Danilo Caymmi, do corpo da Naomi Campbell, da inteligência cênica da Fernanda Montenegro, do senso de humor do Luiz Fernando Verissimo etc. 

Haverá talvez muita gente que desejará fazer um combo, isto é, escolherá um composto reunindo graças de todas as procedências, todos os gêneros. Pode ser até que os formadores de opinião admitam que não somos senão uma colcha de retalhos, e que esses seres compostos sejam considerados a última tendência da moda. Coitado de quem se mantiver aferrado à identidade única: será considerado um narcisista perverso ou, trocando em miúdos, tarado. 

Se for este o caso, cara leitora e caro leitor, aceitarei o rótulo de marginal, mesmo que seja recolhido a um centro de reabilitação espiritual ou a uma reserva ecológica. Contudo, sempre otimista, imagino que meu destino não seja tão radical. 

Claro que vou experimentar alguns desses implantes, sobretudo nos momentos de moral baixa, para me sentir poderoso, bonito ou brilhante. Apesar de todas essas possibilidades maravilhosas, no entanto, acho que às vezes vou querer me despir dos adereços biônicos e continuar sendo eu mesmo. 

Sei que será uma condenação à mediocridade, mas provavelmente vou sentir nostalgia do mundo antigo, onde me imaginava original sempre que era capaz de esboçar um pensamento, uma palavra de amor, qualquer coisa que me desse a impressão de que fora criação minha e que me pertencia. 

Ainda que, momentos depois, essa ilusão se desfizesse, e o Google revelasse que meu arroubo de criatividade era plágio de Montaigne, de Camões ou do Benito de Paula.

O Globo, 04/06/2017